EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Gripe, máscara e a saúde pública (de novo) politizada


De repente, como se o calendário tivesse recuado para 2020, regressam as máscaras. Não porque novos estudos tenham demonstrado eficácia miraculosa contra a gripe, não porque a ciência tenha produzido um súbito consenso, não porque a evidência epidemiológica o exija. Regressam porque é o gesto mais fácil, mais barato e mais politicamente cómodo para mostrar que “se está a fazer alguma coisa”. É um símbolo — nada mais do que isso. Símbolo de zelo higiénico, de submissão à autoridade sanitária ou de pseudociência travestida de ciência: cada um escolhe o que quer ver.

Desde a pandemia da covid-19 que a máscara se tornou um objecto estranho, simultaneamente fetiche e culpa. Fetiche, porque as autoridades a erguem como instrumento de salvação colectiva — mesmo quando os melhores ensaios clínicos apontam para benefícios residuais ou inexistentes no uso comunitário. Culpa, porque sempre que um surto cresce, o argumento é o mesmo: a culpa é de quem “não usou”, “não colocou bem”, “não cumpriu”. A máscara tornou-se o bode expiatório pré-fabricado das políticas públicas de saúde: se tudo correr bem, foi mérito dela; se correr mal, foi insuficiência do povo. Eis a alquimia política mais perfeita que alguma vez um pedaço de tecido conseguiu produzir.

man in gray crew neck t-shirt covering his face with white textile

É neste contexto que vemos agora a Unidade Local de Saúde da Região de Leiria a decretar o uso obrigatório de máscara nas unidades de saúde e a suspensão da actividade não urgente, enquanto a ministra Ana Paula Martins recomenda o seu uso em espaços fechados e vaticina oito semanas “exigentes”. A narrativa é a mesma: aumento de infecções respiratórias, pressão nos hospitais, a gripe que “chegou mais cedo” e uma solução que, apesar de pouco eficaz, soa familiar. A ciência, propriamente dita, é tratada como nota de rodapé.

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A gripe, recorde-se, não é a covid-19. Tem uma carga viral que atinge o pico muitas vezes antes dos sintomas, um período de incubação curto, uma elevada capacidade de transmissão por aerossóis finos e um padrão sazonal recorrente. As máscaras comunitárias — e mesmo as cirúrgicas — nunca demonstraram capacidade substancial para travar a transmissão da influenza.

Em termos estritamente científicos, existe plausibilidade mecânica para que uma máscara reduza a emissão e a inalação de partículas respiratórias — algo demonstrado em estudos laboratoriais realizados em condições controladas. Contudo, quando se avalia o impacto em situações reais, o benefício clínico demonstrado é fraco ou modesto: antes do SARS-CoV-2, os ensaios comunitários sobre gripe revelavam pouco ou nenhum efeito robusto; durante a pandemia da covid-19, os ensaios mais rigorosos apontaram para reduções pequenas e frequentemente não significativas, sem prova sólida de um impacto populacional relevante. As máscaras de maior desempenho (como as FFP2/N95) podem ter utilidade em contextos de alto risco e exposição prolongada, como hospitais ou lares, mas isso não justifica a sua aplicação genérica à população.

Por isso, posições absolutas não são compatíveis com a evidência. Não é correcto afirmar que “as máscaras nunca funcionam”, porque há sinais de benefício em situações específicas com uso consistente e adequada adaptação ao rosto; mas também não é correcto afirmar que “as máscaras são altamente eficazes para controlar epidemias na comunidade”, porque tal não é sustentado pela melhor ciência disponível.

A formulação mais honesta é esta: as máscaras podem reduzir modestamente o risco individual de infecção em circunstâncias particulares, mas a evidência de um benefício substantivo e consistente em contexto comunitário é limitada e incerta, sendo o seu impacto populacional isolado provavelmente pequeno.

Mas as autoridades agem agora como se a máscara fosse um talismã. Não porque desconheçam a evidência, mas porque a psicologia política é mais poderosa do que a Epidemiologia. Em momentos de tensão, governa-se primeiro pela percepção; depois, pelo conhecimento. A máscara é visível, teatral, fácil de implementar e — para muitos — ainda transporta a aura messiânica da pandemia. É o instrumento perfeito para o “gesto político de contenção”: aquele que nada resolve estruturalmente, mas transmite solenidade e acção.

black and gray stethoscope

Há também outro elemento que começa a instalar-se sub-repticiamente no discurso público: a nostalgia reguladora. A pandemia lançou uma geração política e administrativa que encontrou no controlo sanitário um mecanismo de poder. Confinamentos, certificados, cancelamentos, recomendações permanentes: tudo isso criou um imaginário de governação onde a acção se mede pela capacidade de restringir. Hoje, as máscaras surgem como último reduto dessa pulsão. Não se confina, não se suspende circulação, não se fecha comércio — mas ressuscitam-se pequenos rituais que lembram tempos de autoridade reforçada. A máscara tornou-se, assim, uma miniatura de confinamento psicológico.

Nada disto significa que a gripe seja irrelevante ou que os hospitais não estejam sob pressão — estão, como sucede ciclicamente nos picos invernais. A situação actual é agravada pelo facto de se verificar uma efectividade vacinal reduzida, consequência de um desajustamento entre a estirpe do vírus influenza A actualmente predominante (H3N2) e as estirpes incluídas na formulação vacinal desta época, fenómeno conhecido como mismatch antigénico, que diminui a protecção conferida pela vacina.

person holding orange and white toothbrush

A diferença é que, desta vez, a resposta institucional parece querer reenquadrar a gripe na gramática da pandemia da covid-19: dramatização antecipada, medidas de visibilidade imediata e um apelo quase moral à obediência sanitária. Mas a gripe não precisa de dramaturgia; precisa de capacidade assistencial, planeamento e comunicação honesta.

Honestidade — eis a palavra que falta no discurso público. Quando se impõe o uso de máscara, mas não se explica que a sua eficácia para influenza é limitada; quando se recomenda o seu uso indiscriminado, mas não se diz que o efeito real depende quase exclusivamente da qualidade (N95/FFP2) e da adesão perfeita; quando se promove o ritual em vez da medida eficaz, isso não é ciência: é política mascarada de ciência. E quando a política se disfarça de ciência, o resultado não é confiança — é superstição institucionalizada.

Ao contrário da covid-19, que chegou sem manual e exigiu decisões numa névoa de incerteza, a gripe é velha conhecida. Tem décadas de estudos, modelos e vigilância. A sua dinâmica é conhecida dentro da imprevisibilidade: pode iniciar-se mais cedo, manifestar-se tardiamente, apresentar picos múltiplos até Março ou manter uma circulação contínua ao longo do Inverno.

Aquilo que se exige não é uma resposta dramatizada, mas sim um controlo assistencial rigoroso, especialmente dirigido aos lares de idosos, onde a combinação de idade avançada, fragilidade imunológica e múltiplas comorbilidades aumenta substancialmente o risco de complicações, designadamente pneumonias bacterianas secundárias e outras infecções oportunistas. Nestes contextos, a vigilância clínica, a identificação precoce de agravamentos e a gestão das recaídas têm maior impacto sanitário do que medidas simbólicas aplicadas à população em geral.

person wearing red jacket

Durante a pandemia, o discurso sanitário descobriu que a máscara é, acima de tudo, um marcador de alinhamento: os bons usam, os maus resistem. Essa dicotomia — infantil e, sobretudo, científica e politicamente fraudulenta — está a ser, de forma discreta, recuperada.

É por isso que, quando vejo a máscara voltar, não vejo ciência; vejo nostalgia regulatória e falta de coragem política para dizer o essencial: a gripe é sazonal, aumenta todos os anos, pressiona sempre os hospitais — em especial numa população envelhecida — e não há solução simples. A máscara nada vai resolver: serve apenas para mostrar movimento, com a ciência a ser reduzida a uma coreografia.

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