ESTÁTUA DA LIBERDADE
A greve de um país que não trabalha
Quinta-Feira, 11 de Dezembro de 2025. Doze anos depois da última greve geral, Portugal voltou a parar – ou, mais precisamente, voltou a fingir que parava. O motivo invocado foi o costumeiro: alterações à lei laboral.
Desta vez, as palavras-chave repetidas até à náusea foram três: despedimentos, contratos a prazo mais longos e reintrodução do banco de horas individual. O cenário montado foi o habitual: proclamações inflamadas, discursos morais, cartazes indignados e uma narrativa simples, infantil, mas eficaz – a de que o trabalhador português estava, mais uma vez, à beira de ser atirado para a fogueira do “capitalismo selvagem”.

Nada de novo, portanto. O novo – e verdadeiramente revelador – esteve em quem protestou e em quem ficou em casa. ↓
O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.
Porque há um facto que ninguém ousou sublinhar com clareza: as alterações ao Código do Trabalho não se aplicam aos trabalhadores da função pública. Não se aplicam aos professores, aos funcionários das repartições, aos quadros do Estado, aos empregados das empresas públicas, aos que vivem directa ou indirectamente do Orçamento. E, no entanto, foram precisamente esses os que fizeram greve, os que saíram à rua, os que empunharam cartazes e deram entrevistas. Estranha-se – ou talvez não. Protestam os não afectados. Os que não correm risco. Os que não podem ser despedidos. Os que nunca enfrentaram o consumidor. Os que nunca tiveram de fechar uma empresa, despedir um colaborador, assumir um prejuízo.
Os directamente visados pelas propostas – empregadores e trabalhadores do sector privado – esses trabalharam. Abriram portas. Produziram. Pagaram impostos. Não se manifestaram. Estavam ocupados a sustentar o espectáculo.

Mas o mais fascinante desta greve geral não foi apenas a sua sociologia. Foi a sua unanimidade ideológica. Descobrimos, com espanto apenas aparente, que todas as soluções políticas em Portugal são socialistas – quando não abertamente marxistas. Da extrema-esquerda à suposta extrema-direita, todos falam a mesma língua, usam os mesmos conceitos, partilham os mesmos dogmas.
André Ventura, apresentado pela imprensa como o líder da “extrema-direita”, declarou que não queria “uma lei laboral que seja um bar aberto para os despedimentos”. Uma frase feita digna de qualquer congresso da CGTP.
Bruno Fialho, líder do ADN – partido rotulado como “negacionista” e “chalupa” – afirmou, com solenidade, que “se os salários fossem dignos e se a maioria do patronato respeitasse verdadeiramente os trabalhadores, não seriam precisas manifestações”. Nem Álvaro Cunhal teria dito melhor.

O almirante das “vacinas”, Gouveia e Melo, elevado a herói nacional durante a putativa pandemia, brindou-nos com a pérola final: a lei laboral não deve “atacar o núcleo essencial dos direitos dos trabalhadores” e deve procurar um “equilíbrio entre protecção social e flexibilidade económica”. Marxismo de farda branca, com galões.
O diagnóstico impõe-se: Portugal é um país marxista, onde as divergências são apenas estéticas. Todos aceitam o mesmo pressuposto falso – o de que existe um conflito estrutural entre empregador e trabalhador, o de que o salário é uma variável política, o de que o contrato livre é uma ameaça, o de que o Estado é o árbitro moral da economia.
Quem são os autores deste teatro? Uma casta política que nunca arriscou um cêntimo do seu bolso, que nunca contratou ninguém, que nunca teve de despedir, que nunca enfrentou uma folha salarial sem saber se haveria receitas no fim do mês. Uma casta que não conhece o risco, não conhece o mercado, não conhece a incerteza. Vive do pote do saque, esse manancial inesgotável chamado Orçamento do Estado, onde se pode debitar atoardas ideológicas sem qualquer consequência.

Importa, pois, clarificar o essencial. Não existe qualquer conflito natural entre empregador e trabalhador. Não deveria existir. A relação laboral é – ou deveria ser – uma relação contratual livre e voluntária entre adultos.
O verdadeiro conflito não é entre quem contrata e quem é contratado. O verdadeiro conflito é entre pagadores líquidos de impostos e receptores líquidos de impostos. Entre os que produzem e os que vivem do que é produzido. Entre o sector privado – empregadores e trabalhadores – e o Estado e os seus dependentes. Os que ontem protestaram pertencem, quase sem excepção, ao segundo grupo. Os que não protestaram pertencem ao primeiro.
Para perceber a fraude intelectual que sustenta todo este debate, é preciso explicar conceitos simples, que o ensino oficial evita cuidadosamente. Produzir implica utilizar recursos escassos: trabalho, capital e tempo; este último é o mais ignorado – e o mais decisivo. Sem capitalismo, surgem perguntas insolúveis. Como se reparte o produto final entre os factores produtivos? Em igualdade? Em função do esforço? Da necessidade? Mais importante ainda: como se vive enquanto o produto não é vendido?

Consideremos uma vinha. Entre plantar e vender vinho passam-se anos. Durante esses anos, os trabalhadores precisam de comer, vestir, viver. De onde vem esse rendimento? A resposta marxista é o silêncio. A resposta capitalista é clara: vem das poupanças de alguém.
O capitalismo resolve este problema com um contrato simples e genial. O trabalhador vende bens futuros – o vinho que ajudará a produzir daqui a cinco anos – para poder consumir no presente. O empregador adianta poupança, arriscando-a, na esperança de ser compensado no futuro. Não há exploração. Há troca. Há risco de um lado e segurança do outro. É uma relação contratual que só deveria interessar às partes envolvidas.
Quando o Estado intervém, tudo se corrompe. Se o produto não se vende, se o mercado rejeita o bem, o empregador sofre o prejuízo. Se não pode ajustar a estrutura de custos, se não pode despedir, o que lhe é imposto é um confisco. Uma obrigação de pagar indefinidamente por um erro empresarial ou por uma mudança no mercado.

Portugal construiu um sistema onde é quase impossível despedir. Na prática, só há três vias: mútuo acordo – isto é, pagar para sair; extinção de posto – quase sempre chumbada em tribunal; despedimento colectivo – um ritual kafkiano. O resultado é previsível: salários mais baixos, para compensar o risco. Depois, protesta-se contra os salários baixos.
A hipocrisia é total. Discutimos um Código do Trabalho que não deveria existir. Ninguém se deve intrometer numa relação voluntária entre quem quer contratar e quem quer ser contratado. O Estado cria conflitos artificiais para se legitimar, alimenta a ideia falsa de expropriação do valor, enquanto é o maior expropriador.
Por fim, convém distinguir papéis que o discurso dominante mistura propositadamente: o capitalista, que arrisca poupança; o trabalhador, que troca bens futuros por consumo presente; o empresário, que coordena recursos; e o consumidor, o verdadeiro soberano. Todos servem alguém. Excepto a casta parasitária – funcionários públicos, empresas resgatadas, imprensa subsidiada, projectos dependentes da publicidade institucional e do dinheiro jorrado pela impressora do BCE, esse imposto invisível chamado inflação.

Nada disto é acidental. Não foi por acaso que o partido Nazi se chamava Partido Nacional Socialista. Da direita à esquerda, todos idolatram o bandido estacionário, o Estado, porque todos querem viver do saque. Para que o saque seja fácil, é preciso dividir. Criar conflitos imaginários. Alimentar greves gerais encenadas por quem não trabalha, contra leis que não os afectam, em nome de um conflito que nunca existiu.
Portugal não parou. Portugal fingiu, mais uma vez, que luta contra fantasmas para não enfrentar a realidade.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
