VALORES EM VEZ DE IDEOLOGIAS: ENSAIO (V)

Contra a ideologia da indiferença


1 – A moral líquida: relativismo e abdicação do juízo

Vivemos hoje num tempo em que já não se distingue com clareza entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, entre a virtude e a conveniência. Pior ainda: não foi apenas a distinção que desapareceu — desvaneceu-se também a própria ideia de que tais distinções devam ser feitas. Questionar a legitimidade de certos actos ou políticas, emitir juízos morais fundamentados, reivindicar critérios éticos universais tornou-se, em larga medida, gesto suspeito, sinal de intolerância, prova de rigidez.

A recusa de julgar, sobretudo os poderes ou narrativas, foi elevada a virtude cívica, enquanto a indiferença acabou promovida a síntese superior da convivência democrática. Aquilo que hoje se aplaude não é o juízo esclarecido, mas a abdicação cerimoniosa de qualquer análise ou avaliação. O dogma do nosso tempo é o de que todos os pontos de vista são equivalentes — e que pretender o contrário é arrogância, fundamentalismo ou, na pior das hipóteses, uma violência simbólica.

Este é o triunfo cultural do relativismo moral — não como posição filosófica minoritária, mas como doutrina hegemónica disfarçada de tolerância. Já não se ensina a julgar, mas a aceitar. Já não se educa para discernir, mas para “compreender”. As noções de bem, de verdade, de justiça passaram a ser vistas como construções culturais, sempre relativas ao tempo, ao lugar, à identidade. E, por isso mesmo, sempre sujeitas à suspeita. A dúvida sobre o valor das coisas tornou-se uma espécie de higiene intelectual obrigatória. Não se tolera quem afirma — apenas quem hesita mas termina a aceitar. Aquilo que se venera não é a coragem de pensar, mas o recato de não afirmar.

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Esta moral líquida — para usar a imagem do sociólogo polaco Zygmunt Bauman — apresenta-se, irónica e lamentavelmente, como um avanço civilizacional. Porém, na prática, representa uma rendição ao caos normativo, uma recusa de critérios objectivos em nome da pluralidade de percepções, uma dissolução da exigência ética em favor da harmonia social. O problema é evidente: ao eliminar os critérios, elimina-se também a possibilidade do juízo. E sem juízo, resta apenas o gosto pessoal, a emoção imediata, o imperativo identitário ou o apelo sentimental. Substitui-se a razão moral pela reacção afectiva, o critério pelo impulso, a justiça pela sensibilidade.

Não é por acaso que a cultura dominante substituiu a ideia de virtude pela ideia de inclusão. A virtude implica esforço, medida, distinção. Já a inclusão, tal como é hoje formulada, implica apenas aceitação automática, ausência de conflito, diluição de diferenças. O homem virtuoso desapareceu do léxico cívico, substituído que foi pelo cidadão “consciente”, “sensível” ou “empático” — isto é, incapaz de recusar, de excluir, de julgar. Esta moral de superfície, centrada em palavras suaves e afectos visíveis, torna-se profundamente hostil à ideia de verdade ou de bem: não porque as negue explicitamente, mas porque as declara irrelevantes, ultrapassadas, potencialmente opressivas.

Ora, como bem viu o recém-falecido sociólogo Alasdair MacIntyre, sem critérios objectivos — mesmo que debatíveis, mesmo que imperfeitos —, a vida moral torna-se incoerente. Cada acto passa a ser justificado apenas pela sua intenção subjectiva ou pelo contexto cultural que o enquadra. E a consequência inevitável é o colapso da possibilidade de debate moral. Não há como discutir aquilo que é certo ou errado quando tudo depende do ponto de vista. Resta-nos, então, a convivência superficial dos indiferentes: assim, ninguém se atreve a dizer que algo é errado — apenas que é “problemático”. Já não há condenações, apenas “desconfortos”. O mal deixou de ser reconhecido como tal: é apenas uma “narrativa” divergente.

Esse colapso ético tem consequências políticas, sociais e culturais devastadoras. Uma sociedade que recusa julgar perde não apenas o senso do bem, mas a coragem de resistir ao mal. Quando se aceita que tudo é relativo, tudo se torna admissível — desde que envolto na linguagem correcta, na boa intenção presumida, ou no direito identitário invocado. As piores derivas do poder contemporâneo — censura informal, vigilância digital, manipulação linguística, imposições burocráticas absurdas — passam impunes precisamente porque não são reconhecidas como moralmente erradas. São apenas “desafios”, “instrumentos”, “necessidades” — e quem as critica é imediatamente acusado de ser “radical”, “intransigente” ou “sem empatia”.

Esta abdicação moral tem-se infiltrado em todos os níveis da vida pública. Nos parlamentos, o debate já não gira em torno do justo, mas do eficaz. Nas escolas, já não se ensina a distinguir, mas a acolher. Nos media, já não se investiga a verdade, mas legitima-se uma versão oficial. Nos tribunais, já não se protege a justiça, mas a conformidade processual. A abdicação do juízo converteu-se numa estratégia transversal — não apenas intelectual, mas institucional. O Estado já não é árbitro de conflitos éticos: é gestor de consensos morais simulados, de harmonias construídas, de pacificações fictícias.

Considere-se, a título de exemplo, o uso generalizado do termo “direito à sua verdade” em debates públicos e mediáticos. A frase, aparentemente inofensiva, esconde uma capitulação do espaço comum do juízo. Se cada um tem a sua verdade, não existe verdade nenhuma — apenas a convivência estratégica entre discursos imunes ao escrutínio. A consequência mostra-se visível no quotidiano: os factos cedem perante as percepções, a autoridade epistémica dissolve-se em emotividade, a mentira torna-se aceitável se servir a sensibilidade dominante. O mesmo se aplica à linguagem jurídica, cada vez mais refractária à ideia de justiça substantiva, e cada vez mais submissa à formalidade processual e à jurisprudência adaptável.

A consequência última desta moral líquida é uma sociedade sem gravidade moral nem orientação cívica. Nada é grave, porque tudo é explicável. Nada é condenável, porque tudo é compreensível. Nada é permanente, porque tudo é “contextual”. E, no entanto, essa leveza ética não produz liberdade: produz apatia, resignação, desmobilização. Quando tudo é permitido — e nada é exigido —, o indivíduo deixa de ser cidadão e converte-se num consumidor de emoções públicas, num espectador de narrativas concorrentes, num sujeito sem critério.

Contra esta corrente, mostra-se necessário um regresso corajoso à distinção. Voltar a distinguir é o primeiro gesto da liberdade. Dizer “isto é certo” ou “isto é errado” pode ser incómodo — mas mostra-se necessário. Não se trata de regressar aos moralismos nem de impor ortodoxias — é sim a recusa ao colapso do juízo; à reabilitação dos critérios; à afirmação que há valores e há actos que merecem ser louvados, enquanto outros merecem ser condenados. E é nesse discernimento, nesse juízo, nessa coragem ética que se forma a condição primeira de qualquer vida cívica digna.

2 – A ascensão do niilismo simpático: entre o desdém e o hedonismo

Torna-se cada vez mais frequente cruzarmo-nos com uma forma de indiferença polida, suavemente irónica, que não se assume como posição filosófica, mas que, no quotidiano, funciona como tal. Uma atitude que não hostiliza valores nem se confronta com eles; limita-se a esvaziá-los de significado com um encolher de ombros e um sorriso ensaiado. Aos poucos, essa disposição discreta, quase encantadora, acaba como a variante dominante de um certo espírito contemporâneo.

Não se trata de um niilismo bruto e incendiário — daquele que fez história em manifestos e barricadas. Aquilo que agora medra é mais subtil: não quer derrubar nada, apenas não reconhece motivo para sustentar coisa alguma. É um niilismo doméstico, socialmente aceite, que se move com naturalidade em universidades, jantares institucionais e redes sociais. Não proclama o fim dos valores —considera simplesmente que já não têm relevância prática. A sua força vem precisamente da suavidade: nada impõe, apenas insinua; não combate, somente relativiza; nada exige, bastando comentar.

Esse silêncio, porém, não é uma ausência — é ruído que se apresenta como lucidez. A cultura digital tornou-se o laboratório perfeito para este niilismo simpático que o filósofo norte-americano Alexander Rosenberg identifica como consequência de um mundo sem finalidades últimas. A sua tese, despojada de sentimentalismo, lembra-nos que a dissolução dos grandes sentidos não precisa de produzir desespero: pode, pelo contrário, gerar uma forma amável de desligamento, uma leveza cómoda que dispensa o incómodo de pensar. E é precisamente esse desprendimento que a esfera pública contemporânea acolheu com entusiasmo, transformando-o em estilo de comunicação, critério de pertença e mecanismo de imunização contra qualquer exigência moral.

A ironia total, o sarcasmo instantâneo, a estética do meme como comentário político e a retórica pseudo-crítica das redes sociais funcionam hoje como protocolos de sobrevivência anímica, fingindo consciência cívica, quando na verdade instauram apenas um ciclo fechado de reacção e esquecimento. A agilidade do riso substitui a lentidão da reflexão; o escárnio, mais cómodo do que o juízo, ocupa o lugar da responsabilidade; e o gesto simbólico — leve, partilhável e imediatamente descartável — converte-se na nova gramática da participação pública.

Este ambiente confirma aquilo que Rosenberg enuncia no plano filosófico: quando nada parece carregar peso ontológico, tudo se pode tratar como jogo. O problema é que a vida política, ao contrário do universo físico, não tolera o vazio prolongado. A ausência de sentido, convertida em entretenimento, degenera rapidamente em indiferença cívica. A cultura digital, ao confortar-nos com a ideia de que nada é muito sério, cria cidadãos que apenas reagem, nunca respondem; que apenas comentam, nunca deliberam; que apenas mostram indignação, nunca assumem consequências. Em vez de uma esfera pública exigente, temos um painel luminoso de impulsos.

E é aqui que o niilismo simpático deixa de ser apenas um diagnóstico filosófico e se transforma num problema político. A democracia não morre pela violência, mas pela leveza: pela substituição do compromisso pela irrelevância, do debate pelo sarcasmo, do dever pela pose. O riso, esse derradeiro álibi moral, tornou-se uma forma de capitulação tranquila. E se não formos capazes de recuperar o peso das palavras — a sua gravidade, a sua responsabilidade —, acabaremos a aceitar que a liberdade é apenas mais um scroll infinito, tão brilhante como inconsequente.

Nas plataformas digitais — sejam estas arenas de opinião, espectáculos de auto-representação ou mercados de indignação — tudo se transformou em performance efémera. A denúncia é instantânea, a adesão superficial, o impacto nulo. O algoritmo premeia o gesto, mas não a ideia; glorifica a reacção, mas não o argumento. A ironia digital, frequentemente celebrada como inteligência crítica, nada mais é do que uma forma de conformismo travestido de irreverência. A cultura do ripostar, do comentar com emojis, do ridicularizar o outro sem expor uma proposta assume-se, afinal, como um parque de diversões para o ego, não uma praça pública para o pensamento.

A própria política institucional foi, aliás, também colonizada por esse niilismo performativo. Governantes que se parodiam a si mesmos em programas de entretenimento, ministros que se mascaram no Dia das Bruxas, eurodeputados que se pavoneiam em vídeos para redes sociais enquanto ignoram os dossiês, todos concorrem para a dissolução do estatuto da autoridade pública e da gravidade institucional. Quando tudo é tratável com leveza, nada é levado a sério. A ironia passou a ser um escudo para a irresponsabilidade, um álibi para a ausência de princípios.

Mas esse processo não decorre apenas de uma degradação espontânea da cultura: trata-se também de uma estratégia de poder subtil, que favorece aqueles que pretendem manter o status quo. O niilismo simpático impede a construção de alternativas justamente porque deslegitima a própria ideia de alternativa. Se tudo é relativo, se toda convicção se apresenta risível, se todo valor é questionável e toda certeza é suspeita, então qualquer proposta transformadora será sempre vista como risível, ridícula ou perigosa.

Mesmo no campo do activismo, este niilismo infiltrou-se sob a forma de causas instantâneas, indignações coreografadas e slogans vazios. Assim, temos movimentos que nascem, explodem e desaparecem em três semanas; hashtags que substituem estratégias; campanhas que querem ‘sensibilizar’, mas não pretendem responsabilizar.  Na verdade, o sujeito niilista deseja que “as coisas mudem” — mas sem esforço, sem dor, sem renúncia. Quer sentir-se do lado certo, mas não quer pagar o preço da acção. A justiça transforma-se assim num estado de espírito, não numa prática exigente.

Por vezes, este niilismo assume formas paradoxalmente sofisticadas, como sucede nas universidades que criam centros de ‘pensamento crítico’ — onde o pensamento é, afinal, moldado por protocolos de linguagem inclusiva —, ou nas fundações, que organizam ‘fóruns de futuro’ sem permitir qualquer juízo moral firme sobre o presente. Tudo acaba debatido com palavras suaves, diagramas fluidos, equipas interdisciplinares — mas nunca se sai da superfície, nunca se formula um valor inegociável, nunca se afirma uma linha divisória. O niilismo simpático ama a ambiguidade porque teme o compromisso.

Este niilismo sorridente não se limita à linguagem: infiltra-se na arquitectura da cultura dominante, sobretudo através do culto do entretenimento. A programação mediática substituiu já o pensamento pela emoção rápida, o conhecimento pela opinião ligeira, a reflexão pela repetição de fórmulas. Os chamados programas de informação já não informam, mas entretêm — e o fazem com a conivência do público, que se habituou a ser tratado como consumidor e não como cidadão. Aliás, aquilo a que se pode chamar jornalista niilista é aquele que ri da política, zombando de todos os lados para manter intacto o seu lugar de suposto cronista neutro — ou melhor, cúmplice decorativo da decadência.

A própria linguagem institucional tem sido desenhada para impedir o surgimento de qualquer ruptura significativa. Os organismos europeus, por exemplo, converteram a vacuidade em gramática normativa: redige-se em função da inofensividade, delibera-se em função da conciliação, publica-se em nome da “coesão”. Actualmente, a União Europeia, já longe de representar uma síntese de valores comuns, tornou-se um pináculo da gestão moralmente neutra: uma maquinaria tecnocrática onde qualquer juízo de valor é imediatamente suspeito de populismo. Este é, enfim, o niilismo em versão burocrática — não o que nega, mas aquele que nunca chega a afirmar.

Mais ainda: o niilismo simpático também foi colonizando o ensino e até a educação na infância. A escola contemporânea hesita agora em transmitir valores, com receio de ofender, doutrinar ou parecer autoritária. O resultado é a substituição do conteúdo pelo método, da exigência pela “inclusividade”, da autoridade pela recreação. Ensinar é agora entreter, enquanto educar é proteger da frustração. E o aluno aprende assim ser tudo relativo, que todos os pontos de vista são iguais, que não há verdades — só “narrativas”. E assim se forma uma nova cidadania: leve, líquida, vulnerável à manipulação e incapaz de sustentar qualquer princípio até às últimas consequências.

Similar desgraça se passa na cultura artística e literária. As grandes obras, que exigem paciência, esforço e confronto interior, são abandonadas em favor de conteúdos de consumo imediato. Os clássicos tornam-se “problemáticos”, os autores incómodos são cancelados, e a ideia de beleza — ligada desde sempre à verdade e à transcendência — acaba substituída pela provocação vazia ou pelo conforto emocional. O niilismo cultural alimenta-se de obras que nada exigem e nada perturbam: não há catarses, apenas identificação superficial; não há sublimação, apenas repetição de arquétipos anestesiantes.

Importa também notar que esta lógica se estende mesmo ao discurso da saúde mental, frequentemente invocado para justificar a evasão sistemática de conflitos morais. A ideia de que tudo o que causa desconforto é tóxico, de que toda exigência é opressiva, de que toda norma é um acto de violência simbólica, tem conduzido a uma normatividade afectiva que protege a fragilidade mas destrói a maturidade. O niilismo simpático apresenta-se sempre como empático, mas é no fundo uma recusa ao crescimento. E essa recusa, legitimada pelas instituições, gera adultos infantilizados, incapazes de distinguir entre a dor do mundo e a sua própria sensibilidade ferida.

Ora, este cenário não é apenas patológico: é funcional. Uma sociedade que relativiza tudo, que evita o conflito moral e que substitui a acção pela exibição simbólica, torna-se fácil e passivamente governável. Os poderes instalados já nem têm de censurar — basta-lhes promover a distracção, a leveza e o riso desmobilizador. E, em simultâneos, criar zonas seguras — não apenas físicas, mas cognitivas — onde ninguém ouse dizer o que pensa com clareza, por receio de ser “intenso”, “agressivo”, “problemático”. A paz social é assim garantida pela ausência de pensamento incómodo.

O niilismo simpático é, pois, um novo modo de submissão. Já não impõe o silêncio: torna a fala inócua. Já não proíbe os valores: transforma-os em memes. Já não combate a verdade: dissolve-a num mar de pequenas verdades pessoais, igualmente respeitáveis, igualmente descartáveis. Já não queima livros: prefere que ninguém os leia. Já não fere a consciência: entorpece-a com suavidade.

O resultado disto tudo é um mundo cívico cada vez mais povoado por vozes que falam para não dizer, por instituições que actuam para nada decidir, por cidadãos que se expressam para não se comprometerem. A democracia sobrevive enquanto ritual — mas o seu conteúdo esvazia-se em cada nova cedência à leveza e à despolitização. E essa sobrevivência ritual, como já se viu em tempos históricos menos ingénuos, pode durar bastante — até o vazio moral se tornar irreversível.

Em todo o caso, ainda nada há de inevitável neste cenário. O antídoto não é, porém, a brutalidade das certezas fanáticas, mas a coragem do discernimento. Dizer que algo é verdadeiro não é ofender o pluralismo — é permitir que ele exista. Dizer que algo é injusto não é arrogância — é fundamento da justiça. O juízo moral não é opressão — é condição de cidadania. E a recusa de julgar, quando elevada a virtude, é apenas a máscara da desistência.

É, pois, necessário restaurar o valor do juízo. A ironia pode ser arma do espírito, mas nunca pode ser o único idioma da consciência. O humor pode salvar-nos do fanatismo, mas não deve impedir-nos de nomear o mal. A leveza é qualidade estética, mas não virtude política. A democracia precisa de sarcasmo — mas não de cínicos. Precisa de humoristas — mas não de bufões oficiais. Precisa de espírito crítico — mas não de relativismo letárgico.

Contra o niilismo simpático, propõe-se a gravidade: não como tristeza, mas como forma de lucidez. A gravidade daquilo que importa. A gravidade de saber que há coisas pelas quais vale a pena pensar com rigor, agir com coragem e falar com clareza. Mesmo que isso custe seguidores, amigos ou aplausos. Porque, como disse Albert Camus, o escritor — e, por extensão, o cidadão — está do lado daqueles que sofrem e da verdade. O resto é performance.

3 – O centro como bunker da cobardia

Nas democracias modernas, falar de “centro político” tornou-se uma comodidade discursiva que dispensa pensamento. O centro, esse espaço nebuloso entre convicções, é vendido como a morada da ponderação, da moderação, da racionalidade. Mas raramente se questiona o que verdadeiramente significa essa posição: será um lugar de síntese virtuosa ou apenas um recuo estratégico? Será um ponto de equilíbrio entre extremos ou uma zona-tampão para os que receiam decidir?

O mito do centro começa por ser funcional. Ao declarar-se “nem de esquerda, nem de direita”, o político contemporâneo escapa à responsabilidade de tomar posição sobre os grandes eixos do debate político. A sua neutralidade autoproclamada confere-lhe uma aura de sensatez, mesmo quando essa posição nada mais é do que ausência de pensamento. Como escreveu no século passado o filósofo francês Julien Benda, “a traição dos intelectuais” nasce, na verdade, desse esvaziamento moral em nome de uma racionalidade supostamente superior. O centro não reúne o melhor de dois mundos — limita-se a amputar as suas convicções.

Este centrismo tem também uma genealogia cultural. Desde o fim da Guerra Fria, o mundo ocidental habituou-se à ideia de que os extremos são perigosos e que o progresso reside na gestão tecnocrática e no consenso. Outro filósofo francês, Raymond Aron, defensor do espírito crítico contra os simplismos ideológicos, já advertia para os riscos de uma democracia esvaziada de conflitos, onde o debate se torna mera coreografia. Porém, aquilo que Aron não anteviu, talvez, foi o triunfo absoluto da indiferença como forma de governo: um sistema onde o desacordo é diluído em fórmulas consensuais que esvaziam o conteúdo político das decisões.

O centro, nesta perspectiva, torna-se uma trincheira da irrelevância activa — os seus ocupantes não mostram projectos, apresentam programas; não têm ideais, esbracejam propostas; não possuem coragem, apenas prudência. E, sobretudo, têm medo: medo de serem confundidos com os que pensam, com os que criticam, com os que agem. O centrismo é hoje o reduto do marketing político:  vive de sondagens, não de ideias. E, como bem notou o estadista francês Alexis de Tocqueville, no século XIX, a tirania da maioria é menos a opressão dos fortes sobre os fracos do que a uniformização do pensamento — um domínio exercido pelo conforto do previsível.

O centro tem-se tornado também um refúgio ideal das elites mediáticas e culturais. Apresentar-se como “moderado” ou “equilibrado” é, para o comentador moderno, uma forma de garantir lugar em todos os palcos, de ser convidado por todos os lados, de parecer razoável sem nunca se comprometer. Esta figura do comentador centrista é o novo sacerdote do conformismo: tem opiniões sobre tudo, mas certezas sobre nada; elogia o pluralismo, mas nunca põe em causa os fundamentos do sistema que o acolhe. A sua função é garantir que nada muda, enquanto tudo parece estar a ser discutido.

Este centrismo é, portanto, um produto histórico e funcional. Num mundo onde a discórdia e o confronto real é punido com ostracismo social ou mediático, o centro oferece a ilusão de liberdade sem os custos da responsabilidade. Coloca-se voluntariamente na zona cinzenta onde se pode dizer tudo — desde que nada seja levado demasiado a sério. Ocupa assim um espaço de enunciação que se legitima por contraste: “não sou como os extremistas”. Mas essa autojustificação apenas revela a pobreza intelectual e moral do discurso centrista. O verdadeiro extremismo hoje é dizer a verdade com clareza.

Este centro não se limita a evitar os conflitos morais — transforma-os em temas de gestão. Questões como a eutanásia, a identidade de género, a soberania nacional, a censura, a liberdade de expressão ou a justiça social não são enfrentadas com clareza, mas diluídas em relatórios, comissões, quadros regulamentares. O centrismo não é uma posição: é uma técnica de dissolução. Diante de um dilema, não escolhe — comissiona. Diante de uma injustiça, não denuncia — relativiza. Diante de uma verdade, não afirma — equilibra.

Ora, essa complexidade, frequentemente invocada como prova de maturidade política, nada mais é, muitas vezes, do que um véu para ocultar a recusa em agir. Como bem explicou Julien Benda, o intelectual que abdica de julgar em nome de um suposto realismo está a trair a sua vocação. O mesmo se aplica ao político centrista: ao recusar qualquer juízo definitivo, torna-se cúmplice do status quo. E quando este é injusto, a sua moderação acaba por ser, de facto, imoral.

O centrismo contemporâneo possui, em abono da verdade, uma dimensão psicológica: oferece conforto. Não exige rupturas, não convoca sacrifícios, não pede coragem — é a ideologia da segurança emocional. Os centristas não querem ser odiados — querem ser aceites por todos. A sua maior angústia é perder a respeitabilidade. Por isso, evitam qualquer frase que possa parecer demasiado dura, qualquer ideia que possa parecer demasiado clara, qualquer posição que possa parecer demasiado firme. Mas uma democracia não se sustenta na ambiguidade — precisa de pilares, não de almofadas.

Não se pretende lançar um apelo à radicalização cega, mas sim apelo à coragem— à coragem de nomear, de escolher, de tomar partido. Contra o mal, contra a mentira, contra a cobardia travestida de ponderação. Não se trata de trocar o centrismo pelo fanatismo, mas de recuperar o sentido do compromisso moral. De compreender que há momentos na História em que o centro já não é um ponto de equilíbrio, mas um buraco negro de sentido.

Para compreender o triunfo do centrismo enquanto bunker da cobardia, importa também observar o papel que este desempenha na arquitectura da União Europeia. O projecto europeu, com a sua teia institucional complexa e linguagem deliberadamente opaca, transformou-se num espelho do centrismo em estado puro: governa sem comoção, decide sem rosto, age sem responsabilidade directa. Os comissários europeus não são eleitos por sufrágio universal, mas por arranjos entre partidos transnacionais, os quais, na prática, já quase se confundem num pântano cinzento de declarações neutras e decisões inodoras. Esta estrutura institucional reflecte e reforça o ethos centrista: a governação sem conflito, a política sem povo, a decisão sem paixão.

A imprensa, cúmplice involuntária ou não, também encontrou no centrismo uma fórmula segura de sobrevivência. O jornalismo que se apresenta como “equilibrado” raramente questiona o que deve ser equilibrado, entre a verdade e a mentira, entre o justo e o injusto, entre a opressão e a liberdade. A moderação tornou-se uma estética redaccional, não um critério de verdade. As reportagens são limadas para não ferirem susceptibilidades institucionais, os colunistas praticam o malabarismo da linguagem para parecerem imparciais, e os leitores são tratados como consumidores de impressões, não como cidadãos informados e em formação.

Do ponto de vista cultural, o centrismo é inseparável da estetização da política. O político centrista adopta um discurso redondo, vazio de arestas, formatado para o consumo imediato nas redes sociais ou nos noticiários televisivos. O seu léxico é previsível: “ponderado”, “dialogante”, “reformista”, “pró-europeu”, “moderno”. Mas nunca é “convicto”, “intransigente” ou “revolucionário” — palavras que hoje cheiram a enxofre. A linguagem do centro é uma gramática da fuga: fala muito, mas não diz nada. E quando diz, diz para não se comprometer.

Importa ainda notar que o centrismo contemporâneo é, muitas vezes, o resultado da capitulação de antigos valores considerados inegociáveis. Partidos outrora com identidade doutrinária clara — liberais, sociais-democratas, democratas-cristãos — acabaram a convergiram para esse centro amorfo, onde a competição se faz não por ideias, mas por lugar na discussão do orçamento, por tempo de antena, por marketing eleitoral. O centro é, nos tempos hodiernos, a zona franca onde se podem fazer acordos com qualquer um, desde que nada essencial mude.  Na verdade, é o ponto de encontro daqueles que, por conformismo ou comodismo, já desistiram de mudar o mundo — mas ainda não o admitiram.

Mas este deserto de ideias, que o centrismo ajuda a manter, não é um espaço neutro: é um campo de dessensibilização moral. O cidadão que se habitua ao discurso centrista aprende a desconfiar da convicção, a rir da paixão, a suspeitar da verdade. A ironia é a sua nova fé, o sarcasmo a sua forma de resistência. Mas uma democracia não se salva pela troça. A crítica sem juízo, a ironia sem fundamento, o cepticismo sem coragem — são formas sofisticadas de abdicação. E é essa abdicação que o centro perpetua.

Contra esse panorama, não se propõe uma nova ortodoxia, mas um regresso à verticalidade dos valores. Raymond Aron também disse que a tarefa do pensador político não era dar receitas, mas oferecer critérios. Pois bem: entre o compromisso e a evasão, entre a responsabilidade e o consenso vazio, entre a verdade e o cálculo — deve escolher-se sempre o primeiro termo, abandonando o bunker, porque não estar de lado nenhum, quando tudo está em jogo, é estar do lado errado.

4 – O eufemismo como doutrina: a nova linguagem do poder

O poder contemporâneo já não se impõe pela força bruta, nem sequer pela persuasão explícita. A sua ferramenta mais eficaz é a linguagem — não aquela que comunica, mas a que ofusca. A política transformou-se numa oficina de eufemismos, onde as palavras não dizem o que significam, mas o que convém. Já não se trata de convencer, mas de neutralizar. A linguagem, longe de ser instrumento de clareza, tornou-se arte de dissimulação.

Basta observar a proliferação de termos como “resiliência”, “transição”, “narrativa”, “sustentabilidade”, “governança”, “inclusão”. São palavras omnipresentes em relatórios públicos, discursos institucionais, campanhas partidárias. Têm aparência técnica, aroma progressista, mas raramente definem com precisão o que significam. Servem antes como códigos de afiliação e instrumentos de neutralização do conflito político. Quem questiona o seu uso, arrisca-se a ser rotulado de retrógrado, reaccionário ou ignorante.

A palavra “resiliência”, por exemplo, invadiu todos os campos do discurso público: económico, sanitário, ambiental. Mas o seu uso raras vezes corresponde à sua definição original — a capacidade de recuperação ou adaptação face à adversidade. Em muitos contextos, resiliência significa apenas resignação. É a virtude passiva de quem aceita políticas arbitrárias, restrições de direitos, colapsos institucionais, desde que adornados com promessas de superação. O cidadão resiliente é, no fundo, o cidadão domado.

A expressão “governança” representa outro caso de eufemismo institucionalizado. Invocada como marca de boa gestão, ela substitui o velho termo “governo”, mais comprometido com responsabilidade política. A “governança” dissolve a imputação: não há governantes, apenas gestores de processos. Não há decisões, apenas procedimentos. O poder torna-se anónimo, despolitizado, protegido pelo verniz da eficiência técnica. E quanto mais opaca a decisão, mais pomposo o vocabulário: “estratégias de capacitação”, “modelos participativos”, “alavancagem de recursos”.

“Narrativa” é talvez o termo mais perigoso do léxico contemporâneo. Tudo passou a ser “narrativa”: os factos, as leis, as políticas, a própria realidade. Ao reduzir a verdade a uma história — e todas as histórias sendo equivalentes — dilui-se o critério. O debate não é mais sobre o que é verdadeiro ou falso, mas sobre o que é mais convincente, mais mediático, mais emocional. A linguagem torna-se arena de manipulação. E quem insiste em factos é acusado de ingenuidade, ou pior, de fanatismo.

“Inclusão”, por seu lado, converteu-se num mantra incontestável, muitas vezes desprovido de conteúdo concreto. Inclusão de quem? Em quê? A que custo? Em nome da inclusão, impõem-se normas culturais, censuram-se vozes dissidentes, multiplicam-se quotas e programas que mascaram discriminações inversas. A palavra serve de escudo moral para políticas que evitam o mérito, a responsabilidade ou o debate aberto. O eufemismo torna-se aqui ortodoxia emocional.

O mesmo se aplica à “transição”, sobretudo nos domínios energético e digital. “Transição ecológica”, “transição digital” — expressões que evocam progresso inevitável, mas que escondem perdas, custos, rupturas, sacrifícios impostos sem debate. São mudanças decididas por cima, por entidades tecnocráticas, onde o cidadão é reduzido a espectador obediente de uma inevitabilidade. O eufemismo aqui cumpre o seu papel máximo: tornar o poder invisível enquanto actua.

Mas talvez o exemplo mais gritante do poder eufemístico seja a designação de “fact-checking” — uma actividade apresentada como neutralidade epistémica, mas frequentemente usada como instrumento de validação do discurso oficial. O que é considerado “desinformação” tende a coincidir com o que contraria os interesses de organismos públicos, patrocinadores privados ou consensos mediáticos. Assim, em nome da “verificação”, impõe-se uma ortodoxia: a linguagem é o pretexto para definir os limites do dizível. George Orwell teria dificuldade em conter a náusea.

A União Europeia é talvez o laboratório mais avançado desta engenharia semântica. Os tratados, as resoluções e os programas comunitários estão pejados de terminologia burocrática que neutraliza o conflito. Um corte orçamental torna-se uma “racionalização dos recursos”. A vigilância digital massiva, uma “estratégia de segurança cibernética”. A imposição de metas externas, uma “convergência estruturada”. Tudo soa técnico, ponderado, inquestionável. Mas o que se esconde é poder: o poder de decidir sem ser questionado.

Na pandemia de covid-19, esta linguagem eufemística atingiu um novo patamar. O confinamento foi designado “medida de protecção”, a suspensão de liberdades foi rotulada de “ajuste temporário”, a coacção à vacinação tornou-se “promoção da saúde”. O uso de expressões como “imunidade de grupo”, “passaporte sanitário” e “desinformação perigosa” serviu não apenas para gerir a saúde pública, mas para criar um vocabulário consensual onde discordar era sinónimo de irresponsabilidade. O eufemismo operou como censura tácita.

O filólogo Victor Klemperer, um judeu alemão que estudou a linguagem do Terceiro Reich, notava como o totalitarismo não se impõe apenas pela força, mas pela infiltração na linguagem quotidiana. A repetição de termos, a reconfiguração dos significados, a criação de clichés — tudo isto molda o pensamento. Hoje, o fenómeno repete-se: palavras como “sustentabilidade”, “tolerância” e “igualdade” são convertidas em mantras despolitizados. Usadas em excesso e sem definição, deixam de significar qualquer coisa concreta — e passam a funcionar como marcadores tribais.

É neste contexto que o filósofo norte-americano Eric Voegelin advertiu para o risco da “imunização contra a realidade” — um processo em que a linguagem se torna um véu sobre o mundo, e não uma janela. A política contemporânea vive mergulhada nessa imunização semântica. Já não se enfrenta o real: estiliza-se. E com isso, retira-se ao cidadão a possibilidade de compreender, de julgar, de agir. A linguagem do poder não quer ser entendida — quer ser aceite. E é precisamente por isso que recuperar o sentido das palavras se tornou um acto revolucionário.

No domínio da educação, os eufemismos também se impõem com subtileza disciplinadora. A expressão “aprendizagem ao longo da vida”, por exemplo, sugere um ideal nobre de curiosidade permanente. Mas na prática, tem servido como cortina para políticas de precarização do ensino, onde o conhecimento deixa de ser estruturante e emancipador para se tornar um produto flexível, adaptável, descartável — sempre em mutação, como o próprio sujeito pós-moderno. Expressões como “competências transversais” ou “cidadania digital” escondem o abandono do conteúdo e do rigor.

Na justiça, fala-se cada vez mais de “reeducação” e “reintegração” em vez de punição e responsabilidade. Embora haja mérito em recuperar certos princípios humanistas, o uso indiscriminado dessas palavras contribui para uma diluição do valor simbólico e pedagógico da justiça. Um sistema judicial que se refugia em eufemismos evita confrontar-se com a ideia de culpa, de limite, de reparação. O criminoso torna-se “sujeito em transição”; a pena, um “percurso restaurativo”. O discurso escamoteia a exigência de justiça para não perturbar consciências.

Na política externa, a duplicidade linguística atinge o paroxismo. As guerras são designadas “operações de estabilização”; bombardeamentos, “intervenções humanitárias”; sanções económicas, “instrumentos de pressão normativa”. A linguagem é cuidadosamente calibrada para impedir o juízo moral. Não se diz que se mata — diz-se que se promove a paz. Não se diz que se impõe sofrimento — diz-se que se alavanca a democracia. As palavras convertem-se em escudos morais para actos politicamente inconfessáveis.

Os meios de comunicação social desempenham aqui um papel central. São, em muitos casos, os principais agentes da difusão desta linguagem maquilhada. Muitos jornalistas repetem termos técnicos e slogans institucionais sem os interrogar: “bazuca europeia”, “pacote de estímulo”, “transição justa”, “novo normal”. A função crítica deu lugar à função reverberante. A imprensa torna-se caixa de ressonância do léxico oficial, e os cidadãos, incapazes de distinguir entre o substantivo e o adjectivo retórico, acabam por adoptar o idioma do poder como seu.

O sociólogo alemão Jürgen Habermas já advertira para o risco de colonização do mundo da vida pelo sistema: quando os imperativos administrativos e financeiros invadem o espaço da linguagem comum, deteriora-se a capacidade comunicativa genuína. E o seu compatriota Peter Sloterdijk, por seu lado, notou como o cinismo pós-moderno transforma os cidadãos em sujeitos que já não acreditam, mas continuam a repetir — como actores num teatro esvaziado de sentido. A linguagem deixa de ser veículo de entendimento para se tornar ferramenta de resignação.

Por fim, a erosão semântica também afecta os próprios valores: “liberdade”, “justiça”, “direitos”, “verdade” — tudo se torna plástico, moldável, susceptível de ser invocado por qualquer facção, para qualquer fim. O valor torna-se rótulo, e o rótulo, moeda de troca discursiva. Quando tudo é liberdade, nada é liberdade. Quando tudo é verdade, ninguém exige provas. E quando tudo é inclusão, o dissidente é automaticamente o excluído.

Por isso, resistir à nova linguagem do poder não é apenas um acto estilístico — é um dever ético. Recuperar a precisão das palavras, recusar o cliché institucional, expor o eufemismo onde ele opera como anestesia política, são gestos de liberdade. Tal como a vigilância do poder se faz através da acção, também se faz pela linguagem. O primeiro passo para pensar diferente é falar diferente. E o primeiro passo para falar diferente é chamar as coisas pelo seu nome.

5 – A cultura do simulacro: instituições como fachada

Vivemos num tempo em que a forma persiste, mas a substância esvai-se. As instituições que outrora estruturavam a vida colectiva — escolas, parlamentos, tribunais, meios de comunicação — sobrevivem formalmente, mas estão muitas vezes esvaziadas do seu conteúdo ético e funcional. A indiferença contemporânea não é apenas uma atitude moral: tornou-se uma arquitectura — uma arquitectura do simulacro.

Esta arquitectura assenta numa engenharia de aparência: tudo parece funcionar, mas nada verdadeiramente opera com autenticidade. As estruturas continuam erigidas, os rituais são cumpridos, os discursos são proferidos, mas por detrás da fachada, reina a estagnação, a automatização e o vazio. Aquilo que o pensador francês Guy Debord denunciou como “sociedade do espectáculo”, tornou-se o modo operativo da democracia liberal degenerada. Não se tratou de um colapso visível, mas de uma dissolução invisível.

Paradoxalmente, quanto mais se enfraquecem as funções substantivas das instituições, mais se investe na sua mise en scène. Por exemplo, o Parlamento transmite em directo os seus trabalhos, mas os debates carecem de densidade e os interlocutores são figurantes de uma dramaturgia partidária repetitiva. A escola ostenta projectos pedagógicos vanguardistas, mas ignora o saber estruturante e o pensamento crítico. Os media exibem grafismo sofisticado e pluralismo aparente, mas reciclam as mesmas fontes oficiais, os mesmos sound bites, a mesma gramática discursiva. No fundo, quanto menor a capacidade real de produzir orientação, sentido, decisão ou conhecimento, maior a necessidade de produzir aparência, presença e espectáculo. As instituições já não são espaços de deliberação efectiva, mas palcos cuja função essencial é encenar a continuidade da normalidade democrática. Criam-se assim rituais de participação que não participam, fóruns de discussão que não discutem, debates que não debatem. Tudo funciona — ou parece funcionar — porque a maquinaria performativa substituiu a substância.

A escola, por sua vez, tornou-se um dispositivo de gestão de públicos e certificação de conformidades, mais do que um espaço de formação integral. Já não se exige pensamento, mas competências; já não se cultiva a erudição, mas a adaptabilidade. Avaliam-se indicadores quantitativos, projectos “inclusivos”, competências transversais — tudo menos saber substantivo, espírito crítico, rigor intelectual. Como denunciava o pensador austríaco Ivan Illich, a escola moderna corre o risco de converter-se — ou já se converteu — num mecanismo de escolarização perpétua, produzindo consumidores obedientes de serviços educativos e não cidadãos intelectualmente livres. Ensina-se a navegar sistemas, não a interrogar fundamentos; treina-se a cumprir procedimentos, não a compreender o mundo; prepara-se para a integração social, não para a autonomia. O resultado é uma escola que forma indivíduos tecnicamente competentes, mas filosoficamente vazios — sujeitos funcionais, mas não livres. A educação transforma-se em burocracia pedagógica: abundância de metodologias, escassez de ideias.

O mesmo sucede na esfera mediática. O jornalismo, outrora vigilante, tornou-se amplificador institucional. Aquilo que se apresenta como “informação” é frequentemente apenas reprodução. A lógica do simulacro instala-se quando aquilo que conta já não é a verificação, a desconstrução ou a denúncia, mas a aparência de neutralidade, a simulação de imparcialidade, o jogo de equivalências entre todas as versões — mesmo quando uma delas é factual e as restantes são narrativas interesseiras. O jornalista “objectivo” é, hoje, aquele que abdica do escrutínio para não ofender poderes instalados; aquele que confunde equilíbrio com abdicação; aquele que descreve sem questionar, que cita sem verificar, que comenta sem investigar. A função crítica dissolve-se na função protocolar: o jornalista torna-se um mediador de comunicados, um operador simbólico que garante que a linguagem institucional circula com suavidade. Assim, a imprensa já não ilumina zonas de sombra: limita-se a dar luz às fontes oficiais. E a democracia, reduzida a espectáculo mediático, perde o seu contraditório natural.

O simulacro é ainda mais profundo nas grandes instituições internacionais. Organizações como as Nações Unidas, a União Europeia ou a Organização Mundial da Saúde mantêm um aparato normativo e discursivo assente em ideais elevados — paz, cooperação, saúde global —, mas na prática operam segundo lógicas burocráticas, interesses geopolíticos ou estratégias empresariais. As declarações são virtuosas, os relatórios são densos, os logótipos são inspiradores — mas os efeitos concretos são frequentemente inócuos, contraditórios ou subordinados a agendas invisíveis.

O discurso universalista, que deveria traduzir responsabilidade global, converteu-se em retórica legitimadora: proclama-se o multilateralismo, mas actua-se selectivamente; fala-se de ciência e evidência, mas privilegiam-se consensos políticos; invoca-se a solidariedade, mas pratica-se a gestão diferencial de riscos, benefícios e danos. Estas instituições, que nasceram para corrigir assimetrias e proteger vulneráveis, tornaram-se aparelhos de validação simbólica de decisões previamente tomadas noutros foros. O resultado é um fosso crescente entre a linguagem da missão e a realidade da acção: as organizações parecem funcionar, multiplicam documentos, normas e directrizes, mas o seu impacto efectivo desvanece-se em mecanismos de compromisso diplomático, negociações opacas e dependências financeiras. Assim se instala um niilismo institucional suave: não se nega o ideal — esvazia-se o seu conteúdo até restar apenas a cenografia do idealismo.

O filósofo e economista Cornelius Castoriadis alertava, no século passado, para o perigo de instituições autónomas se converterem em instituições heterónomas: estruturas que já não reflectem a auto-instituição da sociedade, mas servem interesses externos, agendas opacas e comandos técnicos. Quando uma instituição deixa de ser espaço de criação colectiva e se transforma em engrenagem da gestão, perde a alma e ganha protocolo — e é, nesse momento, que o simulacro triunfa: a forma subsiste, mas a substância está morta.

A indiferença contemporânea, portanto, não se limita à psicologia do cidadão: está incrustada na gramática das instituições, visível nos corredores burocráticos onde ninguém responde por nada, nas assembleias onde se fala para o vazio, nas escolas onde se certifica sem ensinar e ainda nos jornais onde se noticia sem questionar. Aquilo que se perdeu foi o vínculo entre forma e conteúdo, entre função e vocação, entre o nome e a realidade. As instituições tornaram-se fachadas que preservam o edifício do poder, mas não a sua legitimidade substancial; operam com a majestade do rito, mas sem a densidade da missão. Executam procedimentos, mas não exercem responsabilidade; produzem documentos, mas não conhecimento; afirmam autoridade, mas evitam consequências. É como se a arquitectura institucional continuasse de pé, sólida e reconhecível, enquanto o interior se esvazia de propósito e eficácia. Assim, o cidadão não abandona as instituições — apenas aprende a mover-se nelas como quem atravessa cenários: sabendo que tudo parece funcionar, embora quase nada esteja verdadeiramente em funcionamento. Neste hiato entre aparência e substância instala-se o novo niilismo, não como rebelião, mas como rotina.

Em Portugal, este fenómeno é evidente. As comissões parlamentares de inquérito multiplicam-se, mas são raramente consequentes; os relatórios sucedem-se em tom grave, mas sem efeitos práticos; os escândalos políticos provocam indignação momentânea, mas não reformam estruturas. A encenação ocupa o lugar da reforma. Fala-se de “reforçar a confiança nas instituições”, mas não se começa por restaurar a sua credibilidade. A confiança é exigida como acto de fé, não conquistada por actos de verdade.

Na União Europeia, o simulacro adquire contornos ainda mais sofisticados. As instituições de Bruxelas produzem normativos em catadupa, todos revestidos de linguagem moralizante: “valores europeus”, “transição justa”, “solidariedade climática”, “coesão territorial”. Porém, o conteúdo político é frequentemente decidido em gabinetes opacos, em compromissos entre interesses nacionais e lobbies corporativos. O Parlamento Europeu debate, mas não legisla em soberania plena. A Comissão Europeia executa, mas não responde democraticamente a um eleitorado. O Conselho decide, mas fá-lo atrás de portas fechadas, sem verdadeira responsabilização perante os cidadãos que diz representar. E enquanto cada instituição simula um poder que não possui integralmente, o próprio projecto europeu se converte num labirinto procedimental onde a forma suplanta o conteúdo e a tecnocracia se impõe ao escrutínio democrático. A União proclama transparência, mas funciona através de compromissos ilegíveis; exalta a cidadania europeia, mas distancia o cidadão das decisões; fala em solidariedade, mas distribui custos e benefícios segundo clivagens económicas e geopolíticas. A retórica permanece universalista; a prática, profundamente assimétrica.

É neste desfasamento — entre a grande narrativa da Europa e a pequena realidade dos seus mecanismos — que o simulacro se instala com toda a sua eficácia: não como fraude declarada, mas como rotina administrativa que substitui o político pelo administrativo e o ideal pelo regulamento. A função simbólica das instituições — isto é, a sua capacidade de encarnar colectivamente uma ideia de justiça, liberdade ou bem comum — está em erosão.

Hoje, o símbolo é substituído pelo logótipo; o acto fundante pela campanha de comunicação; a autoridade pelo carisma fabricado. Uma escola já não se define pelo seu projecto pedagógico, mas pelo marketing de matrículas. Um hospital já não se julga pelos cuidados, mas pelo ranking de satisfação. A aparência tornou-se critério — e esse é o sintoma mais claro de um tempo em que a legitimidade se mede pela superfície visível e não pela substância moral ou funcional. Quando a fachada substitui a fundação, o que se conserva é apenas a imagem da instituição, não a instituição enquanto tal. É esta substituição progressiva do real pelo indicador, do dever pelo formulário, do compromisso pelo protocolo, que caracteriza a nova fase do simulacro: uma ordem institucional que já não pretende transformar o mundo, mas apenas gerir a percepção de que o faz. Neste ambiente, o niilismo não surge como rejeição da verdade, mas como sua dissolução em métricas, grafismos e narrativas promocionais, até que o valor das coisas se confunda com a estética da sua apresentação.

Neste contexto, como previa Guy Debord, o espectáculo tornou-se a forma dominante da vida pública: aquilo que importa não é o que é, mas o que parece. E o que parece é determinado por quem controla a linguagem, o enquadramento e o protocolo: já não há escândalos, há “incidentes”; já não há corrupção, há “desvios”; já não há manipulação, há “narrativas concorrentes”. A gravidade é dissolvida pelo léxico e pela forma.

Por isso, a crítica às instituições não pode limitar-se a reformas técnicas: exige uma revolução simbólica, resgatando a vocação das instituições — educar, julgar, deliberar, informar — e não apenas o seu funcionamento formal. A democracia morre quando o simulacro vence: quando a aparência basta, quando o rito substitui a verdade, quando a fachada serve para ocultar a ruína. A resistência começa por dizer o óbvio: que o rei vai nu, que o debate é falso, que o jornalismo dorme, que a escola falha, que os tribunais se escondem atrás de procedimentos para evitar decisões. Só quando se nomeia o vazio é possível enfrentá-lo. A denúncia do simulacro é, assim, o primeiro gesto de reconstrução política: um acto de lucidez que recusa confundir consenso com verdade, eficiência com justiça, comunicação com legitimidade.

Recuperar o sentido das instituições implica devolver-lhes risco, responsabilidade e densidade ética — restituir-lhes a capacidade de orientar e não apenas de administrar. Sem essa coragem de reinvenção, a democracia continuará a ser um dispositivo teatral em que todos representam papéis, enquanto a substância da

Cabe, por isso, ao cidadão recusar o papel de figurante — é no seu olhar crítico, na sua exigência de substância, no seu voto consciente e na sua vigilância quotidiana que se rompe o feitiço do simulacro. As instituições só podem renascer quando confrontadas com a verdade do olhar público que não consente a mentira formal. A democracia não é apenas um regime de regras: é uma cultura de autenticidade, que começa em cada indivíduo.

6 – A resistência pelo espírito: ironia, memória e cultura

O nosso tempo já não exige barricadas nas ruas nem clandestinidade nas tipografias: exige vigilância do espírito. A resistência, neste novo milénio de simulacros, já não se expressa tanto pelo confronto físico, mas pela recusa simbólica. Não se trata de pegar em armas, mas de manter acesa a lucidez. E essa lucidez nasce do espírito — uma palavra antiga, que une pensamento, memória e sensibilidade.

Porém, o espírito — entendido como dimensão crítica, estética e moral da vida comum — é hoje atacado por todos os flancos: pela vulgaridade mediática, pela pressa institucional, pela linguagem pasteurizada, pelo desprezo pela cultura, pela amnésia histórica, pela tecnocracia sem alma. A indiferença, esse novo código de conduta, não é apenas uma disposição emocional: é uma estratégia de desmobilização cívica. E para combatê-la não bastam dados ou protestos — é preciso recuperar o espírito como forma de resistência.

A ironia é o primeiro instrumento. Não aquela ironia cínica, que apenas sorri com superioridade e se abstém de qualquer juízo — mas a ironia trágica e clarividente, que reconhece a falência das palavras oficiais e desmascara a lógica do poder. Ironizar é desmontar, desarmar, desvelar. O ensaísta e jornalista austríaco Karl Kraus fazia da ironia uma arma moral: não para entreter, mas para denunciar. Num tempo em que a retórica do bem se tornou imperativo categórico, e toda a crítica é logo rotulada como ódio ou ressentimento, a ironia resta como último reduto de liberdade expressiva, permitindo dizer o indizível, contornando a censura sem abdicar da lucidez e atingindo a verdade por um viés oblíquo.

Mas sem memória, a ironia torna-se ligeireza. Por isso, a resistência espiritual exige, em segundo lugar, o resgate da memória — essa forma profunda de responsabilidade. Não há liberdade sem memória, porque só quem conhece o passado pode resistir à manipulação do presente. Mas o esquecimento é já um projecto político: para desfazer o juízo, relativizar os crimes, dissolver os vínculos r infantilizar a comunidade. O ensaísta e crítico literário inglês George Steiner dizia que o verdadeiro intelectual é um guardião da memória trágica da Humanidade — e, por isso mesmo, um incómodo para qualquer poder, pois a memória, além de ferramenta histórica, é um antídoto contra o eterno presente da propaganda.

A cultura é o terceiro pilar da resistência espiritual. E aqui não se trata de consumo de produtos culturais, mas da apropriação crítica da herança simbólica comum. Ler um clássico, ouvir uma sinfonia, conhecer a filosofia antiga ou moderna, não é apenas, e ainda, um luxo de elites — é já um gesto de afirmação de autonomia. Contra a tirania da actualidade e do algoritmo, a cultura oferece densidade, perspectiva e relativização. Ao contrário da informação, que se acumula sem transformar, a cultura forma o gosto, o discernimento, o estilo e o critério. É a cultura que permite ao cidadão não apenas reagir, mas compreender. E compreender é resistir.

A resistência espiritual não é, pois, passividade — é acção subterrânea, sem palco, sem like, sem prémio. A imprensa amestrada, os parlamentos performativos, a escola adormecida, os algoritmos que domesticam preferências — todos eles têm horror ao espírito. E assim sucede porque o espírito é tudo aquilo que escapa, o que não se mede, o que não se submete. E é ainda o que pergunta, desconstrói e recusa. O espírito é intempestivo — e, por isso, perigoso para os poderes instalados.

Mesmo quando tudo em volta empurra para a superficialidade, o espírito e o seu gesto de escavar o sentido mostra-se como acto de dignidade. As bibliotecas, por mais ignoradas que estejam, são fortalezas. Os livros sublinhados, os filmes revistos, os poemas memorizados, são sementes plantadas na memória comum. Quando uma sociedade despreza os seus escritores, os seus músicos, os seus mestres, não está apenas a empobrecer culturalmente: está a destruir os canais de transmissão do espírito; está a renunciar ao futuro.

O filósofo e escritor britânico Roger Scruton lembrava que a beleza, longe de ser um luxo, é uma necessidade humana fundamental. A degradação estética — visível na arquitectura funcionalista, no urbanismo desumanizado, na banalização da linguagem — reflecte também uma degradação do espírito. O poder que despreza a beleza não é neutro: quer moldar um homem funcional, não um ser pensante. A estética é, por isso, uma linguagem de liberdade, porque evoca o que escapa à utilidade, à velocidade e à planificação.

A escritora e filósofa francesa Simone Weil via na beleza uma forma de atenção radical — atenção à forma, à linguagem, à música, à proporção —, enquanto Albert Camus, ao falar da arte como “negação do mundo sem renunciar a ele”, via na criação estética um acto simultâneo de resistência e amor pelo real. A cultura, nesse sentido, não é apenas memória nem ironia, mas também beleza: não como fuga, mas como fundação de sentido.

Quando se destrói a beleza, quando se perde a exigência estética, não sobra apenas fealdade: sobra indiferença. E a indiferença ao feio é um prelúdio da indiferença ao injusto. A alma embrutecida esteticamente será depois anestesiada moralmente. Por isso, resistir pelo espírito é também recusar a resignação estética — é cultivar a linguagem, o estilo e a dignidade da forma como expressões da liberdade. A verdadeira cidadania não é, assim, só um voto, uma opinião, um direito — é também uma sensibilidade. É saber distinguir entre o que eleva e o que degrada, o que ilumina e que embrutece. A beleza, no fim, é a gramática secreta da resistência.

Foi sempre assim. Quando as fogueiras da ignorância arderam nas praças, houve quem escondesse livros. Quando a censura tentou apagar ideias, houve quem sussurrasse versos ao ouvido. Quando a propaganda quis substituir a verdade, houve quem escrevesse entrelinhas. A resistência pelo espírito não tem bandeiras nem quartéis, mas tem memória, tem linguagem, tem ironia — e tem tempo. Porque, mesmo sitiado, o espírito sabe esperar. E mesmo que a indiferença convide à ruína, será o espírito a reconstruir as fundações da liberdade.

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