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‘Na ditadura era melhor’, ou A farsa do reacionarismo brasileiro

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Arthur Maximus|14/12/2025

“Na ditadura era melhor”. Enunciado com certo ar de superioridade, como se nele estivesse encerrada alguma forma de argumento de autoridade, o mote dos reacionários brasileiros ilude muita gente. Numa época em que o desconhecimento de História é ainda mais crónico do que o desconhecimento de disciplinas básicas como o Português e a Matemática, a repetição incessante dessa fórmula infelizmente ainda atrai muitos jovens.

Não que isso seja exclusividade do bolsonarismo, registe-se. A bem da verdade, o reacionarismo brasileiro deita raízes muito mais profundas na formação da nossa identidade nacional. Após a proclamação da República, saudosistas do Brasil Império bradavam contra as iniquidades do novo regime, afirmando que “na monarquia era melhor”. Já na República Velha, protestava-se contra o duopólio político de São Paulo e Minas Gerais – resumido na fórmula do café (SP) com leite (MG) –, a alegar-se que “na época da República da Espada era melhor”.

Verifica-se, portanto, que a invocação de um passado radiante, em que tudo era belo e perfeito, a contrastar com o presente duro e penoso, obedece a critérios cronológicos móveis na experiência política brasileira. Sob esse prisma, o bolsonarismo nada apresenta de novo. Ele é, talvez, apenas a formulação mais recente – e certamente a mais tosca – de um sentimento relativamente atemporal que acomete parte da população.

Foto: DR

O teste da realidade

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Mas será que isso é verdade? Será que, durante a ditadura militar, de facto o Brasil era um país melhor?

Deixemos de lado qualquer análise moral sobre as óbvias vantagens da democracia sobre qualquer regime de supressão das liberdades. Será possível aferir, com base em dados concretos, que o regime inaugurado com a Constituição de 1988 é realmente melhor – no sentido de garantir melhores condições de vida – do que o que lhe precedeu, o regime militar de 1964?

Uma vez que a moralidade está a ser colocada de lado em favor de uma análise, digamos, estritamente pragmática, vamos focar em cinco aspetos geralmente utilizados pelos reacionários para justificar a sua opção preferencial pela ditadura:

1 – “Na ditadura, a qualidade de vida era maior”;

2 – “Na ditadura, a economia desenvolvia-se bem”;

3 – “Na ditadura, a lei valia para todos e quem era bandido ia preso”;

4 – “Na ditadura, as pessoas tinham mais segurança”; e

4 – “Na ditadura, não havia corrupção”.

“Na ditadura, a qualidade de vida era maior”

Toda a gente sabe que, em alguns círculos do reacionarismo brasileiro, constrói-se uma realidade paralela, na qual a Terra é plana e o Brasil vive sob uma exótica “ditadura judicial”, comandada por Alexandre “Xandão” de Moraes”. A afirmação de que os indicadores sociais na época da ditadura eram melhores não se encontra no mesmo nível de bizarrice dessas “teorias”, mas chega perto. Sob nenhum aspeto, considerado qualquer parâmetro, o regime militar pode ser tido como melhor do que o período democrático inaugurado em 1988.

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Educação

Tomemos, primeiramente, o analfabetismo. Quando os militares saíram dos quartéis para derrubar João Goulart, 40% da população não sabia ler ou escrever. Vinte e um anos depois, quando entregaram o poder aos civis, esse índice sofreu apenas uma discreta redução de 7%, com 33% ainda iletrada. Com um detalhe: até a Constituição de 1988, analfabetos não podiam votar. Talvez esteja aí a explicação para um desempenho tão miserável.

Já a detestada democracia recebeu esse percentual e, em menos de quarenta anos, reduziu-o a 5,5%. Trata-se ainda de um patamar alto para um país rico e com as dimensões do Brasil. Ainda assim, não há comparação com o que entregou a ditadura. E, desde 1988, os analfabetos votam.

Saúde

Na área da saúde, então, a desproporção é ainda mais evidente. No amanhecer da ditadura, apenas os trabalhadores que contribuíam para o falecido Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) tinham direito a atendimento hospitalar na rede pública. Isso deixava uma parte considerável da população à margem de qualquer assistência médica.

Com a Constituição de 1988, inaugurou-se o SUS (Sistema Único de Saúde). Universal, o SUS garante atendimento gratuito a absolutamente qualquer pessoa. O indivíduo não precisa sequer ser brasileiro. Não são raros os casos de turistas norte-americanos que precisam socorrer-se de atendimento médico quando gozam férias em território nacional. Todos eles ficam espantados ao não serem cobrados à saída, quando o mesmo atendimento custaria dezenas de milhares de dólares em seu país de origem.

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Em termos estritamente numéricos, a incompetência do regime militar também fica evidente. A expectativa de vida em 1964 era de 55 anos. Nos estertores da ditadura, o total era de apenas 64 anos (9 anos a mais). Já na democracia, esse número subiu para quase 77 (13 anos a mais). E isso apesar de uma pandemia que ceifou 700 mil vidas no meio do caminho, cortesia do negacionismo criminoso de Jair Bolsonaro, que distribuía a ineficaz cloroquina até às emas do Palácio do Alvorada, em vez de comprar vacinas e respeitar o isolamento social. A extrema pobreza saiu de 22% (1985) da população para menos de 3% hoje. Quanto à mortalidade infantil, saímos do vergonhoso patamar de 94 mortes por 1.000 (1970) nascimentos para ainda insuficientes 11/1000 nascidos vivos atualmente.

“Na ditadura, a economia desenvolvia-se bem”

Outra alegação frequentemente utilizada pelos reacionários para sustentar os benefícios da ditadura face à democracia é o de que, naquela época, “a economia desenvolvia-se bem”. Sustentada pelo mito do “Milagre Económico Brasileiro”, a ditadura militar ficou marcada no imaginário nacional como um período de grande bonança económica, incensada pela parolice do “Brasil Potência”. Infelizmente, contudo, a realidade era bem mais dura do que a propaganda oficial do regime.

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A inflação

Entre as muitas causas do golpe de 1964, uma delas, sem sombra de dúvidas, foi a carestia. Naquele ano, a inflação alcançara quase 100% no cômputo de doze meses. Jamais se vira coisa igual. Algo que custava Cr$ 100,00 em 1 de Janeiro custaria, em 31 de Dezembro, o dobro. A redução do patamar pornográfico da perda do valor da moeda era uma das principais bandeiras dos militares golpistas. Entretanto, em vinte e um anos os resultados não foram dos melhores. Em 1985, o Brasil atingiria o patamar até então recorde de 235% ao ano.

Por quase uma década, economistas com prestígio inversamente proporcional à capacidade transformaram o Brasil em um verdadeiro laboratório de experimentações económicas heterodoxas. Foi somente em 1994, com o Plano Real, que enfim a ortodoxia financeira prevaleceu. Com ela, desmontou-se a armadilha inflacionária e o país pôde descobrir novamente o valor da moeda. Mas o ponto a destacar é: os militares receberam uma inflação ruim e entregaram-na em patamar duas vezes e meia pior. Foi somente na democracia que esse problema crónico foi definitivamente resolvido.

O poder de compra do trabalhador

Considerando que a maior parte da população depende do trabalho assalariado para pagar suas contas e comprar mantimentos, um bom parâmetro de comparação é o poder de compra do salário-mínimo. Criado noutro regime de exceção (a Ditadura Vargas), o patamar mais baixo de remuneração mensal assegurada pela lei ao trabalhador chegou a 1964 valendo Cr$ 42.000,00 (“impressionantes” US$ 30). Em 1985, esse valor tinha subido para Cr$ 600.000,00 (ainda ridículos US$ 43). Tudo isso, destaque-se, em termos nominais. Em termos reais, o salário-mínimo de 1985 comprava apenas metade do que comprava o de 1964.

Com a estabilização financeira promovida pelo Plano Real, o salário-mínimo foi elevado inicialmente para US$ 100,00. Hoje, ele vale R$ 1.525,00 (cerca de US$ 282). O patamar ainda é irrisório, mas representa quase três vezes o valor de 1994 e mais de seis vezes o de 1985, quando os militares voltaram para os quartéis.

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A dívida externa

Em termos puramente quantitativos, nenhum fracasso da ditadura é mais expressivo do que a dívida externa. Em 1964, o Brasil devia aos seus credores externos US$ 3 mil milhões (14% do PIB). Em 1985, ao saírem do poder, os militares legaram-nos a maior dívida externa do planeta: US$ 102 mil milhões (quase 50% do PIB). Tudo porque o mito do “Brasil Grande”, alicerçado em obras faraónicas, estava estruturado numa espécie de esquema de pirâmide, através do qual empréstimos antigos eram pagos através da contratação de empréstimos novos.

As duas crises do petróleo (1973 e 1979), juntamente com a marretada que Paul Volcker deu nos juros norte-americanos para conter a inflação, estouraram a festa no começo dos anos 80. Resultado: o Brasil faliu, declarou moratória e ficou condenado a quase uma década de crescimento económico pífio (período que ficou conhecido no país como “década perdida”). Grandes feitos económicos, como se observa.

“Na ditadura, a lei valia para todos e quem era bandido ia preso”

De todas as alegações utilizadas pelos reacionários para defender a ditadura, nenhuma é mais cínica do que a afirmação de que, naquela época, “a lei valia para todos e quem era bandido ia preso”. Para desmontar essa falsidade, nenhuma personagem é mais emblemática do que o famoso “Delegado Fleury”.

O caso Carioca

Sérgio Fernando Paranhos Fleury foi um bandido. Desde sempre. Mesmo antes de tornar-se nacionalmente conhecido como ícone da repressão torturadora dos porões, Fleury trabalhava a vender “proteção” a quadrilhas de tráfico de drogas. Numa briga, digamos, “societária” entre dois barões do tráfico, Juca (José Iglesias) e Miroca (Waldemiro Maia), Fleury tomou o partido de Juca e foi em busca de Luciano (Domiciano Antunes Filho), que tinha consigo a caderneta de contabilidade da propina distribuída aos bófias.

Fleury e mais quatro capangas encontraram Luciano e levaram-no até o quilómetro 32 da rodovia Castello Branco. Fizeram-no sair do carro e metralharam-no, deitando fora seu cadáver numa vala comum. Qual o problema? Carioca (Odilon Marcheroni de Queiróz), que denunciara a localização de Luciano, contou tudo à polícia. Por via das dúvidas – seguro, afinal, morreu de velho –, resolveu contar o que vira também à televisão.

Duas semanas depois, logo após a edição do AI-5, a repressão prendeu Carioca e entregou-o a Fleury. O delegado levou o preso até à casa de Fininho (Adhemar Augusto de Oliveira), um investigador da Polícia Judiciária. No dia seguinte, Carioca deu uma entrevista aos jornais paulistas, a renegar tudo o que dissera. Depois disso, nunca mais se ouviu falar da figura.

Tempos depois, Fininho contou a um jornalista que matara Carioca com um fio de náilon passado pelo pescoço. Como “prémio”, carregava parte da língua do defunto no seu chaveiro. Uma “lembrança” para quem se aventurasse novamente a denunciar os desmandos dos meganhas.

Sérgio Fernando Paranhos Fleury, policial considerado um dos lideres do Esquadrão da Morte durante a ditadura brasileira. Fonte. DR.

A morte de Marighella

Fleury fez-se famoso sobretudo depois do assassinato de Carlos Marighella. Fundador da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Marighella era um dos inimigos públicos número 1 do regime. Comunista e guerrilheiro, Marighella cabia perfeitamente no figurino da “ameaça vermelha” que os milicos usavam para vender a tortura e a repressão como preço a pagar pela “segurança da família brasileira”.

Numa emboscada noturna, o próprio Fleury saiu das sombras disparando seu .38 contra Marighella. Desferiu-lhe cinco tiros. No estádio do Pacaembu, no intervalo de uma partida entre Corinthians e Santos, o alto-falante anunciou: “Foi morto pela polícia o líder terrorista Carlos Marighella”. Peça útil do esquema de repressão, Fleury foi subitamente alçado à condição de herói do regime. Como o regime sabia premiar quem lhe prestava serviços, chegaria o momento em que o Delegado Fleury cobraria a sua fatura.

A “Lei Fleury”

Depois de anos de batalha árdua e solitária, Hélio Bicudo, um promotor obstinado, encurralara o ícone da meganha. Com dezenas de acusações de tortura e de assassinatos do seu esquadrão da morte, era apenas questão de tempo até que o Delegado Fleury passasse para o outro lado do balcão e fosse finalmente preso.

De acordo com o texto original do Código de Processo Penal, sempre que um indivíduo fosse acusado de homicídio, encerrada a primeira fase do rito do júri, o juiz, ao pronunciar o réu, “recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura” (CPP, art. 408, §1º). Preso, Fleury certamente colocaria a boca no trombone.

A hipótese de ver um de seus agentes mais prestimosos ser enviado para detrás das grades era um risco grande demais para os militares correrem. Sabendo disso, os milicos correram para livrar o delegado da cadeia. Veio, então, a famosa “Lei Fleury”. Agora, se o réu fosse “primário e de bons antecedentes, poderá o juiz deixar de decretar-lhe a prisão ou revogá-la, caso se encontre preso” (CPP, art. 408, §2º, com a redação da Lei nº. 5.491/73).

Carlos Marighella foi assassinado em 1969. Foto: DR.

Não bastou ao regime apenas proteger um notório facínora. Foi necessário mudar a lei para garantir a sua impunidade. Subvertendo o brocardo jurídico de que dura lex, sed lex, na ditadura vigorava o dura lex, sed látex (“a lei é dura, porém, por ser de borracha, também estica”).

“Na ditadura, o povo tinha mais segurança”

Se há um ponto em que, estatisticamente, a comparação parece ser favorável aos saudosistas da ditadura é a relacionada à segurança pública. Embora seja impossível comparar metodologias diferentes de épocas distintas, um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) chegou à conclusão de que, em 1980, a taxa de homicídios era de aproximadamente 11,7 por 100 mil habitantes. Hoje, a mesma taxa representa quase o dobro desse número: 21 homicídios por cada 100 mil habitantes. Há, porém, duas ressalvas importantes a se fazer.

A primeira delas diz respeito à natureza da violência. No final dos anos 1960 e por todos os anos 1970, a maior parte das causas de letalidade estava relacionada à violência política praticada por agentes do Estado. A segunda diz respeito à sensação de segurança imposta pelo medo generalizado às ações ilegais da ditadura militar. Uma vez que não havia liberdades civis nem meios para obter dados ou questionar as políticas de segurança pública, mesmo os crimes que aconteciam não eram objeto de debate público. Se algo por acaso escapasse, a censura à imprensa encarregava-se do resto.

A génese das facções criminosas

Convém, contudo, ressaltar que a maior parte da violência urbana vivenciada hoje no Brasil conhece sua génese nos governos militares. Com efeito, a repressão política levou ao cárcere inúmeros militantes de esquerda. Uma parcela considerável dos presos políticos havia sido treinada em táticas de guerrilha, com o propósito de derrubar pela força a ditadura dos generais. Ocorre, todavia, que não havia separação nas cadeias entre presos políticos e presos comuns. Resultado: com essa “convivência forçada”, criminosos comuns começaram a desenvolver a noção de estrutura e organização hierárquica. Foi através da fusão entre as atividades criminosas ordinárias e o conhecimento técnico de redes associativas que nasceu a primeira facção criminosa organicamente estruturada no país: o Comando Vermelho (CV).

Foto: DR.

Com o CV, os outros grupos criminosos passaram a usar a sua estrutura como “exemplo” para organizarem-se. Bastava replicar o modelo instituído pelo Comando Vermelho para que a lógica de incremento contínuo e organizado de poderio bélico e controle territorial se impusesse às forças de segurança pública. Se hoje a população sofre não só com o CV, mas com facções rivais, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), é aos militares da ditadura que devemos “agradecer”.

“Na ditadura não havia corrupção”

“Na ditadura não havia corrupção”, propalam os apologistas do regime.

Será?

Para além do facto de ser inexplicável um governo de “honestos” estar associado a figuras como José Sarney, António Carlos Magalhães e, crème de la crème, Paulo Salim Maluf, o grande ícone da corrupção do nosso país, apenas dois episódios são capazes de desmontar mais essa falsidade:

A construção de Itaipu

Maior hidrelétrica do mundo até à construção de usina de Três Gargantas, na China, Itaipu foi a maior obra de todos os governos militares. Sem sombra de dúvidas, trata-se de uma maravilha da engenharia mundial, em geral, e um orgulho para a engenharia brasileira, em particular. São 14 mil gigawatts de potência, geradas através de 20 turbinas.

Ninguém se lembra, todavia, de que, para construí-la, foi necessário “afogar” Sete Quedas debaixo do seu lago. Se hoje os turistas apinham-se para visitar as famosas Cataratas do Iguaçu, pouca gente recorda-se de que ali perto havia uma maravilha da natureza que era treze – isso mesmo, treze – vezes maior do que as Cataratas. Com algumas quedas de mais de 40m de altura, Sete Quedas era considerada a maior queda d’água em volume do planeta. Visitantes do Brasil e do mundo inteiro vinham a Foz do Iguaçu apenas para conhecer essa maravilha da natureza.

A tragédia ambiental

Pelo projeto original, a construção de Itaipu implicaria um reservatório de absurdos 1.350 km². Pela altura da barragem, dentro dessa imensa área alagada submergiria, sem direito a defesa, o Salto de Sete Quedas. Ambientalistas da época argumentaram que, caso o trajeto da represa fosse alterado, ou mesmo a barragem não tivesse um pé direito tão alto, o alagamento de Sete Quedas poderia ser evitado.

Mas, como sabemos, o Brasil vivia uma ditadura. E, numa ditadura, mandam os burocratas. O restante cala a boca ou enfrenta as consequências, incluindo perseguição, tortura e morte. Durante mais ou menos uma década, Itaipu foi sendo erguida naquele ponto específico do rio Paraná, ao sul de Sete Quedas.

Barragem de Itaipu construída no rio Paraná, entre o Brasil e o Paraguai. Com uma capacidade instalada de 14.000 MW, a sua produção daria, em condições normais, para o consumo eléctrico de Portugal durante cerca de dois anos. Foto: DR.

Quando a construção foi finalizada e as comportas da usina iam se fechar para represamento da água, a comoção foi geral. Milhares de pessoas acorreram para Foz do Iguaçu, na esperança de ver pela última vez a maravilha das Sete Quedas. No meio do tumulto, muita gente se aglomerou em uma das pontes que permitia a visão das cachoeiras. A ponte rompeu pelo peso e trinta e duas pessoas morreram depois de caírem no rio. À tragédia ambiental somava-se a tragédia humana.

A morte para abafar a corrupção

Como se isso não bastasse, a construção de Itaipu não ficou marcada apenas pela morte metafórica de Sete Quedas. Outra morte – essa literal – marcaria a obra. E, assim como outros escândalos da ditadura militar, esse também foi convenientemente varrido para debaixo do tapete.

Orçada inicialmente em US$ 2,5 mil milhões, Itaipu saiu ao final pelo décuplo desse preço. O embaixador José Jobim reuniu diversas provas sobre a corrupção na construção da usina. Após correrem rumores de que denunciaria o escândalo, José Jobim foi “suicidado” em 1979. Os documentos que ele mantinha desapareceram após agentes do regime vasculharem a sua casa.

O caso Alexander von Baumgarten

De todos os casos de corrupção na ditadura, nenhum é mais intrigante do que aquele que levou à morte de Alexander von Baumgarten. Agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), o braço de Inteligência do regime militar, Baumgarten era também jornalista e escritor. Valendo-se dos seus dotes literários, Baumgarten resolveu publicar uma “novela” ficcional. Intitulada Yellow Cake, Baumgarten relatava a suposta venda ilegal de urânio extraído de minas brasileiras para abastecer reatores nucleares no Iraque, comandado à época por Saddam Hussein. Organizada pelo SNI, a venda teria a participação do então governador de São Paulo, Paulo Maluf.

O nível de profundidade da obra e a riqueza de detalhes descrita por Baumgarten sempre pareceu muito suspeita. Para piorar, Baumgarten também teria descoberto o desvio de US$ 10 milhões da venda de madeira ilegalmente extraída após a construção da usina hidrelétrica de Tucuruí. Entre os beneficiários do desvio, estariam oficiais do SNI e um dos próceres do regime: o general Newton Cruz, chefe da Agência Central do SNI em Brasília. Resultado: em 25 de Outubro de 1982, o corpo de Alexander von Baumgarten foi encontrado na Praia da Macumba, no Rio de Janeiro, com três tiros na cabeça e um no abdómen. Ambos os casos – o desvio de dinheiro e a morte de Baumgarten – foram abafados pelos militares.

Quanto à trama de Yellow Cake, somente depois de inspetores da ONU irem inspecionar as instalações nucleares iraquianas após a primeira Guerra do Golfo (1991), foi possível constatar que o tráfico de urânio foi real.

Em conclusão:

Em menos de quarenta anos de democracia, o Brasil ostenta índices muito superiores aos da ditadura militar. Não só isso. Conseguimos superar problemas que nem sequer existiam, ou que tinham dimensão diminuta no período pré-64 (como a dívida externa), sem que para isso tivéssemos de romper com a legalidade. A violência e a tortura ainda existem, mas, pelo menos, pode-se dizer que não constituem mais política de Estado. Há muita coisa ainda a melhorar? Sem dúvida. Mas não será através do fechamento do regime que chegaremos lá.

A saber de tudo isso, chega a ser cómico ver gente até hoje defender que “na ditadura era melhor”. Quem fala uma parvoíce dessas vive numa fantasia em que a memória é seletiva e a corrupção usa farda. Não se sabe se o sujeito que propala semelhante asneira anseia pelo papel de vilão ou de vítima, mas, seja como for, trata-se de um saudosismo doente por um passado que nunca existiu.

A farsa do “na ditadura era melhor” só se sustenta, portanto, com a cumplicidade de ignorância. Toda vez que você  vier a ouvir algo semelhante, a primeira pergunta a ser feita é:

“Melhor pra quem?”

Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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