ANÁLISE DE JOHN IOANNIDIS MOSTRA 'AMBIENTE DE OBSCURANTISMO' NA CIÊNCIA DE TOPO
Farmacêuticas: revistas científicas omitem falhas em ensaios detectados pelo regulador europeu
Sobretudo nos últimos anos, e mais recentemente durante a pandemia, consolidou-se a ideia de que a publicação de um ensaio clínico numa grande revista científica constituía um selo máximo de fiabilidade do conhecimento médico — e que jamais se deveria questionar a validade dessa ciência. E, por isso, geralmente um estudo publicado em revistas conceituadas como a New England Journal of Medicine, a Lancet, a Nature ou a JAMA passa automaticamente a integrar orientações clínicas, revisões sistemáticas, decisões políticas e narrativas mediáticas. Ou seja, a publicação funciona como certificado de validade científica, raramente questionado fora de círculos altamente especializados.
No entanto, um estudo publicado este mês na revista científica BMC Medicine demonstra que essa confiança repousa sobre uma base institucional frágil: a literatura científica não reflecte, em regra, aquilo que os reguladores sabem sobre a qualidade real dos ensaios clínicos.

O artigo, intitulado “Concordância entre as inspecções de Boas Práticas Clínicas da Agência Europeia do Medicamento e a literatura médica” [Concordance between European Medicine Agency Good Clinical Practice inspections and medical literature: a meta-research survey, no original], tem entre os seus autores John Ioannidis, professor da Universidade de Stanford e amplamente reconhecido como um dos mais conceituados epidemiologistas mundiais. Ioannidis construiu a sua reputação científica precisamente por demonstrar, com dados empíricos, que uma parte substancial da investigação biomédica publicada sofre de enviesamentos, exageros estatísticos, fragilidades metodológicas ou falhas institucionais profundas. A sua presença como co-autor confere a este estudo um peso particular: trata-se de mais um passo na desmontagem da ilusão de que a ciência se autocorrige automaticamente apenas por estar publicada. ↓
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O objectivo deste estudo — que tem como co-autores três investigadores franceses de ciências médicas, Alexandre Terré, Ondine Becker e Florian Naudet — é simultaneamente simples e perturbador: comparar as avaliações da Agência Europeia do Medicamento (EMA) resultantes das inspecções relativas às Boas Práticas Clínicas (Good Clinical Practice, GCP) com aquilo que é efectivamente comunicado nos artigos científicos correspondentes.
As inspecções GCP não são exercícios burocráticos: tratam-se de auditorias presenciais realizadas nos centros onde os ensaios clínicos decorrem, avaliando aspectos essenciais que nenhuma revista científica, através das edições e do peer review, consegue verificar à distância: a existência e validade do consentimento informado dos doentes; a correspondência entre os registos clínicos originais e os dados reportados; a integridade das bases de dados; o registo completo de efeitos adversos; a manutenção do cegamento dos ensaios; o cumprimento dos protocolos e, em casos extremos, indícios de fraude ou manipulação deliberada.

Os resultados dessas inspecções constam dos Relatórios Públicos Europeus de Avaliação (EPAR), documentos técnicos que fundamentam as decisões da EMA sobre a autorização — ou não — de um medicamento no mercado europeu. Os autores analisaram 285 EPAR relativos a medicamentos cujo pedido foi recusado ou retirado. Em 57 desses relatórios, a EMA mencionava explicitamente a realização de inspecções GCP. Esses 57 EPAR referiam-se a 74 ensaios clínicos, dos quais 58 tinham sido publicados em revistas científicas, dando origem a 61 artigos.
É aqui que surge o dado central do estudo: apenas um desses 61 artigos (2%) mencionou os problemas detectados pelas inspecções da EMA. Mais grave ainda, em 26 dessas publicações (43%), a própria EMA concluiu que as falhas encontradas colocavam em causa a fiabilidade dos dados apresentados. Apesar disso, nenhum desses artigos foi posteriormente corrigido, retractado ou acompanhado de uma expressão de preocupação editorial.
Os próprios autores sintetizam esta conclusão de forma inequívoca: “Esta análise de meta-investigação indica que as inspecções de Boas Práticas Clínicas realizadas pelas autoridades de saúde não se reflectem na literatura médica, mesmo quando essas inspecções colocam em causa a fiabilidade dos dados.”

Em termos simples, coexistem duas versões da realidade científica: uma, conhecida pelos reguladores; outra, apresentada ao público através das revistas científicas. Importa sublinhar que não estamos perante estudos obscuros ou marginais. Pelo contrário. A análise de John Ioannidis e dos seus colegas franceses mostra que as únicas revistas com múltiplas publicações deste tipo — isto é, baseadas em ensaios que levantaram dúvidas de fiabilidade na EMA — foram precisamente a New England Journal of Medicine, a Lancet e a Annals of Oncology. Ou seja, o problema atinge o núcleo duro da literatura médica internacional, aquele que serve de referência a médicos, investigadores, jornalistas e decisores políticos.
Um dos aspectos mais interessantes da análise está no facto de se focar explicitamente em diversos medicamentos. Entre eles encontra-se o masitinib, testado a partir de 2016 no tratamento da mastocitose sistémica e da esclerose lateral amiotrófica, acabou por ser recusada a autorização de introdução no mercado em 2024. Num dos relatórios da EMA citados no estudo, lê-se que “a acumulação de constatações críticas e importantes durante as inspecções, afectando todos os aspectos do ensaio, coloca seriamente em causa a fiabilidade dos dados do estudo”. Ora, apesar desta avaliação negativa, os artigos científicos correspondentes foram publicados e continuam a ser citados sem qualquer referência a estas conclusões regulatórias.
Casos semelhantes são descritos para medicamentos como o tofacitinib (utilizado no tratamento da artrite reumatóide e de outras doenças inflamatórias auto-imunes), o lenalidomide (indicado para doenças hematológicas, nomeadamente síndromes mielodisplásicas e mieloma múltiplo), o treprostinil (usado em doentes com hipertensão arterial pulmonar), o peginesatide (desenvolvido para o tratamento da anemia em doentes com insuficiência renal crónica em diálise), o cediranib (um fármaco anti-angiogénico estudado no contexto de vários tipos de cancro, incluindo o cancro do ovário), o eprodisate (investigado para o tratamento da amiloidose AA, uma doença rara e grave), o emapalumab (destinado a crianças com linfo-histiocitose hemofagocítica primária, uma patologia inflamatória rara e potencialmente fatal), o daprodustat (testado no tratamento da anemia associada à doença renal crónica) e ainda uma vacina inactivada contra a gripe em crianças (avaliada para a prevenção da gripe sazonal na população pediátrica).

Neste último caso, o estudo permite identificar que se trata da vacina Fluad Paediatric, através do cruzamento dos dados do artigo com os Relatórios Públicos Europeus de Avaliação (EPAR) analisados. O ensaio clínico correspondente foi publicado no New England Journal of Medicine em 2011. No entanto, a Agência Europeia do Medicamento detectou, durante uma inspecção de Boas Práticas Clínicas, que num dos centros participantes nenhum dos 152 menores vacinados apresentou qualquer episódio de síndrome gripal durante todo o período de observação, quando, no conjunto do ensaio, cerca de 23,6% das crianças vacinadas apresentaram sintomas compatíveis com gripe.
A EMA calculou que a probabilidade estatística de tal resultado ocorrer por mero acaso era da ordem de 0,0000000000000002%, ou, se se quiser por extenso, duas décimas de milionésima de biliardésimo por cento — um valor considerado praticamente impossível em termos epidemiológicos. Apesar disso, e embora o regulador europeu tenha concluído que esses dados colocavam em causa a fiabilidade dos resultados desse centro, essa informação não foi comunicada aos leitores do artigo científico, nem no momento da publicação nem posteriormente através de qualquer correcção editorial. Esta vacina, comercializada pela Novartis, foi retirada do mercado europeu apenas em 2012.
Um dos exemplos mais didácticos analisados no estudo de Ioannidis e dos investigadores franceses é o do naproxcinod, um anti-inflamatório não esteróide estudado para o tratamento da osteoartrose. Um artigo científico sobre este fármaco limita-se a referir que “um centro foi excluído por problemas de qualidade”, mas o EPAR da EMA especifica que houve violação das regras de consentimento informado, o que constitui uma falha ética bastante grave.
Ioannidis e os seus colegas demonstram ainda que os artigos problemáticos não ficam confinados à publicação original. Pelo contrário, apresentam uma mediana de 135 citações e são frequentemente incluídos em meta-análises, isto é, em estudos de síntese que influenciam recomendações clínicas e decisões de saúde pública. Mesmo quando surgem alertas externos, o sistema falha. Apenas dois artigos, segundo a análise, tinham comentários no PubPeer a referir as inspecções GCP. Ainda assim, sublinham os autores, “não foi feita qualquer correcção aos estudos, apesar desses comentários”.

Neste artigo de Ioannidis e dos investigadores franceses não se defende uma vaga indiscriminada de retracções, mas sim um aspecto mais relevante e exigente: transparência editorial. As revistas científicas, escrevem, têm a responsabilidade de indicar, de forma clara, quais as partes de um estudo que são robustas e quais as que são questionáveis ou irremediavelmente frágeis.
A relevância deste trabalho, co-assinado por Ioannidis, ultrapassa largamente o universo académico, demonstrando que a ciência publicada pode, afinal, omitir informação essencial não por conspiração, mas por falhas estruturais de comunicação entre reguladores, autores e editores. Num contexto em que a Ciência é frequentemente invocada como argumento de autoridade absoluta, este estudo lembra que a confiança exige visibilidade total — e que o silêncio institucional também é uma forma de distorção.
