CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

A foca de Cascais e o caracol do Estado

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Brás Cubas|20/12/2025

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CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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Sempre desconfiei das explicações tranquilizadoras. Não porque sejam sempre falsas — muitas são apenas inúteis —, mas porque amiúde chegam a horas impróprias, como uma indulgência concedida após a carreira completa da lâmina do verdugo ou um diagnóstico certeiro feito sobre um cadáver morno. A Humanidade, desde Caim, tem este vício: declara que está tudo bem quando já só resta provar que esteve mal — é uma inclinação antiga, que Pôncio Pilatos apenas seguiu, essa de lavar as mãos antes de a água se tingir de vermelho.

Este intróito surge-me porque o triste desfecho da foca-cinzenta de Cascais — animal marinho, jovem, saudável e, segundo nota oficial, perfeitamente dentro da normalidade da vida — veio recordar-nos essa velha lição. Durante dias, ali esteve, fora do seu mundo, encalhada num teatro de rochas e curiosos, observada com solenidade científica por uma autoridade “nunificamente banza­da” — ou será mumificamente parada? — cuja principal virtude sempre foi a serenidade imóvel.

O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas afirmou, com cara de pau, que nunca houve problema algum com o pinípede. A foca treme? Normal. A foca não sobe às rochas com destreza? Natural. A foca parece perdida? Antropomorfismo popular. Tudo estava bem, asseguraram-vos, com a convicção de quem fala não para a realidade, mas para o arquivo.

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Dois dias depois, a foca morreu.

A morte, porém, não invalidou a nota. Pelo contrário: completou-a. Como nos silogismos mais complacentes de Aristóteles, a conclusão passou a valer não por corresponder ao real, mas por fechar o raciocínio sobre si próprio. O facto consumado — a morte — converteu-se em prova a posteriori da justeza da imobilidade prudencial: se ocorreu, era necessário; se era necessário, foi prudente abster-se de qualquer acção impeditiva. A causalidade, assim invertida com método, produziu uma lógica perfeita, redonda, tautológica, tão impermeável à dúvida quanto à compaixão, essa falha menor que costuma perturbar os sistemas demasiado bem construídos.

Não admira que tal arquitectura mental do Instituto do senhor Nuno Banza fizesse sorrir de aprovação qualquer mestre formado no comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, de um Tomás de Aquino aplicado a um doutor anónimo da Sorbonne. A realidade, essa criada sem direito a glosa, limitou-se a cumprir o papel que lhe foi atribuído: morrer para confirmar a doutrina. Assim, o mundo deixou de ser instância de verificação e passou a ser mero apêndice da tese, sacrificado com a docilidade de quem sabe que, no fim, a razão — desde que circular e auto-legitimadora — nunca perde.

Porém, estamos perante algo que excede largamente o domínio da tese escolástica: trata-se de um procedimento estabilizado, um padrão decisório reiterado que se consolidou como doutrina prática do Estado português — e não apenas da política de conservação de bicharada. Há muito que o aparelho público cultiva esta virtude contemplativa travestida de prudência, também nos humanos. Governa-se por monitorização contínua, administra-se por acompanhamento técnico e age-se apenas quando a intervenção já não produz efeitos materiais.

Esta é uma forma superior de quietismo burocrático, quase ascético, não fora o facto de os cadáveres não responderem a notas explicativas e de os relatórios finais não possuírem propriedades terapêuticas. Mas isso, enfim, pouco importa.

A foca, nesse sentido, não é um episódio isolado: é um caso-tipo, um exemplo didáctico de manual, um apólogo marinho que Esopo teria escrito se tivesse sido assessor de um gabinete ministerial.

Na Bíblia, recordo-vos, sapientes leitoras e esclarecidos leitores, há um episódio instrutivo: o do bom samaritano. Passa primeiro o sacerdote; vê o homem ferido, avalia a cena e segue caminho. Passa depois o levita; observa, reconhece a gravidade da situação e, com idêntica prudência, afasta-se. Ambos cumprem a lei da distância respeitosa. Só o samaritano — figura menor, estrangeira e imprudente — intervém. Convém notar que o Estado moderno se reconhece mais facilmente no sacerdote e no levita do que no samaritano: prefere passar adiante, não por crueldade, mas por fidelidade ao procedimento.

A compaixão, quando institucionalizada, torna-se um acto administrativo complexo: exige formulários, pareceres e, se essa for a ordem natural das coisas ou o desígnio divino, um desfecho fatal que legitime retrospectivamente a ausência de risco. O Estado prefere o muro das lamentações à estrada de Jericó — o lugar onde a compaixão implica risco e decisão imediata.

Dir-me-ão que exagero, que uma foca não é um cidadão, que a Biologia nada tem a ver com a Política. Enganam-se. A foca é, para o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a metáfora perfeita do português médio perante o Ministério da Saúde: deslocada do seu meio natural, observada à distância regulamentar, tranquilizada por comunicados e abandonada àquilo que se designa, com solenidade técnica, por “evolução do estado”. Tremer é normal. Estar exausto é expectável. Agonizar encontra-se no intervalo estatístico. Mas estejam descansados: “será realizada qualquer intervenção se se verificar uma alteração no seu estado de saúde que justifique a sua captura”. Para intervir quando já nada há a salvar, para lavrar o óbito, organizar o enterro e mandar flores protocolares, o Estado português não pede meças a ninguém.

Também os portugueses, como a foca, são frequentemente descritos como “jovens”, “resilientes” e “sem ferimentos visíveis”. As dores são subjectivas, os sinais são interpretáveis e as preocupações dos cidadãos, quase sempre, infundadas. Se o doente insiste em sentir-se mal, explica-se-lhe que o seu sofrimento é compatível com a normalidade clínica. Se persiste, acompanha-se. Se morre, lamenta-se. E segue-se.

Marco Aurélio aconselhava a aceitar serenamente aquilo que não depende do próprio — mas o problema começa quando o Estado transforma essa filosofia individual numa colectiva política pública e decide que quase nada depende de si. A morte passa então a ser uma fatalidade estatística, não um fracasso institucional. Como diria Hegel, o real torna-se racional — sobretudo quando já não incomoda.

Há, portanto, neste episódio da foca de Cascais, uma pedagogia involuntária, mas preciosa. Revela como funciona o poder quando se convence da sua própria inocência. Nunca erra, nunca falha, nunca hesita: limita-se a não agir. E, quando questionado, responde com notas tranquilizadoras, redigidas naquele dialecto peculiar que mistura biologia sumária, paternalismo administrativo e um subtil desprezo pela percepção comum. O povo vê um animal a definhar; a autoridade vê um “caso acompanhado”. A sociedade observa a mortalidade a agravar-se; a autoridade encarrega os jornais de explicar que a culpa é da gripe — essa entidade metafísica, sazonal e sempre conveniente.

Talvez seja injusto exigir pressa a quem foi cuidadosamente treinado para a lentidão. Mas também é injusto evocar o caracol, animal respeitável, símbolo antigo da prudência e da constância. Convém recordar que, tanto nos rochedos de Cascais como numa urgência de Santa Maria, há criaturas que não sobrevivem ao ritmo da contemplação. A foca precisava de água, orientação, algum medicamento ou curativo — recebeu vigilância à distância, recomendações nas redes sociais e um obituário silencioso. Ora, o mesmo sucede com a Dona Alzira ou o Senhor Joaquim: precisam de cuidados, recebem acompanhamento; precisam de acção, recebem promessas — até à morgue.

Entretanto, no meio disto, a administração moderna prossegue incólume, sobrevivendo intacta à realidade. Não salva, não age, não se compromete — limita-se a sobreviver intacta àquilo que deixou morrer.

Adeus, e um piparote.

Brás Cubas

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