PEDRO GONÇALVES DIZIA ESTAR LEGAL MAS FOI LOGO 'EXTERMINAR' A NOBLE VENTURES

Vice-presidente do regulador dos media dissolve empresa de consultadoria para tentar ‘limpar’ grave incompatibilidade


Começa a parecer uma moda recorrente entre titulares de cargos públicos e altos responsáveis da Administração: serem apanhados com as calças na mão — isto é, com empresas privadas incompatíveis com as funções exercidas — e correrem de imediato à Conservatória do Registo Comercial para tentar lavar o que é, à partida, indelével. A dissolução apressada de sociedades surge, não como acto de transparência voluntária, mas como reacção defensiva a investigações jornalísticas que expõem incompatibilidades graves, com potenciais consequências disciplinares e até penais.

Desta vez, o protagonista é o vice-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Pedro Correia Gonçalves, um jurista que durante anos perambulou por gabinetes ministeriais e foi consultor na sociedade de advogados fundada por Aguiar-Branco 

Pedro Correia Gonçalves, vice-presidente da ERC: mais de quatro anos de incompatibilidade ‘sanada’ á pressa, mas com ‘rabo de fora’.

Depois de o PÁGINA UM ter revelado, no final de Outubro, que este responsável do regulador dos media exercia funções em situação de manifesta incompatibilidade legal — por deter e gerir uma empresa unipessoal de consultadoria —, a sociedade foi rapidamente dissolvida.

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De acordo com a investigação do PÁGINA UM, a Noble Ventures foi extinta no dia 28 de Novembro, embora a publicação oficial desse acto só tenha surgido a 10 de Dezembro. A sua liquidação deverá concretizar-se nas próximas semanas.

A sequência temporal dos factos é reveladora da grave incompatibilidade que poderá, se houver rigor, levar à destituição deste dirigente. Aliás, em Novembro, aquando da consulta pelo PÁGINA UM da última declaração de Pedro Gonçalves no Tribunal Constitucional, apurou-se que o Ministério Público estaria a analisar esses documentos. A notícia do PÁGINA UM foi publicada a 27 de Outubro e, curiosamente, nesse mesmo dia foram encerradas as contas da empresa relativas ao presente ano com vista à sua dissolução, sinal inequívoco de reacção imediata à exposição pública da incompatibilidade. Não se tratou, assim, de uma coincidência administrativa, mas sim de um reflexo de “pânico institucional”.

Convém recordar os factos essenciais. Pedro Correia Gonçalves constituiu a Noble Ventures em 14 de Maio de 2021, como sociedade unipessoal, assumindo desde logo a qualidade de sócio único e gerente. À data, este advogado já exercia funções de director executivo da ERC, cargo equiparado a dirigente de 1.º grau, sujeito a um regime de exclusividade que impõe a renúncia a quaisquer outras actividades profissionais, públicas ou privadas, independentemente de serem remuneradas ou não, com excepção da docência. A incompatibilidade existia, pois, desde a origem.

A situação agravou-se em Novembro de 2023, quando Correia Gonçalves tomou posse como membro do Conselho Regulador da ERC, por indigitação da Assembleia da República. O Estatuto da ERC é claro: durante o mandato, os membros do Conselho Regulador não podem exercer qualquer actividade profissional privada, com a única excepção de funções docentes no ensino superior, em tempo parcial. A manutenção da empresa após essa data configurava uma violação directa do regime legal aplicável. No seu currículo, Pedro Gonçalves omitia a existência da empresa e não a mencionou sequer quando foi auscultado na Assembleia da República, antes de o seu nome ser aprovado para o cargo.

Em Outubro passado, confrontado pelo PÁGINA UM, Pedro Correia Gonçalves recusou então reconhecer qualquer “incompatibilidade jurídico-legal” e afirmou que a sociedade estaria devidamente declarada. No entanto, a dissolução apressada da empresa após a publicação da investigação jornalística levanta uma questão incontornável: foi a extinção da Noble Ventures uma assunção tácita da incompatibilidade que sempre existiu?

Dissolução não elimina incompatibilidade que se prolongou por anos.

O PÁGINA UM colocou hoje essa pergunta de forma directa. As questões foram enviadas à ERC com a indicação expressa de que deveriam ser respondidas apenas por Pedro Correia Gonçalves, a título pessoal, por se tratar de matéria individual e não institucional. A resposta recebida foi lacónica: o vice-presidente da ERC “não prestará declarações”.

O PÁGINA UM questionou igualmente a presidente da ERC, Helena Sousa, sobre se mantinha a confiança no vice-presidente e se, perante a detecção de uma incompatibilidade grave, seria promovida a comunicação às entidades competentes. A lei impõe deveres especiais de actuação a titulares de cargos públicos quando têm conhecimento de ilegalidades praticadas no exercício de funções, designadamente a sua comunicação às autoridades competentes, como o Tribunal de Contas ou o DIAP, consoante a natureza das infracções.

Até ao momento, não foi prestado qualquer esclarecimento público. Ou seja, Helena Sousa tem conhecimento da incompatibilidade do seu vice-presidente e a sua omissão pode implicá-la num crime de prevaricação, uma vez que a denúncia é obrigatória para funcionários públicos “quanto a crimes de que tomem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas”.

Helena Sousa, como presidente da ERC, tem a obrigação legal de denunciar a incompatibilidade, incorrendo em crime de prevaricação se nada fizer porque a denúncia é obrigatória.

Saliente-se que a dissolução de uma empresa não apaga retroactivamente a ilegalidade. O eventual exercício de trabalho privado incompatível com funções públicas, a omissão dessa actividade em declarações e currículos, ou a utilização de sociedades para registo de despesas pessoais, são factos consumados que não se extinguem com um acto administrativo posterior. A tentativa de “normalização” através da Conservatória do Registo Comercial não elimina responsabilidades nem neutraliza consequências legais.

O caso do vice-presidente da ERC assume particular gravidade institucional. A ERC é a entidade responsável por exigir transparência, rigor e cumprimento das regras aos órgãos de comunicação social e aos seus dirigentes. Quando um dos seus mais altos responsáveis é apanhado a violar regras básicas de incompatibilidade, a questão deixa de ser meramente individual e passa a ser um problema de credibilidade do regulador.

A corrida à dissolução da Noble Ventures não resolve o essencial. Pelo contrário: reforça a percepção de que só a exposição pública levou à correcção formal de uma situação que se arrastava há anos.

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