DA VARANDA DA LUZ
Famalicão 1.0
Na antevéspera da Consoada, quando o país já entrou naquele estado intermédio entre a gula anunciada e a culpa adiada, o Benfica resolveu lembrar-me — ou lembrar-nos — que o Natal, tal como o futebol, não obedece a calendários litúrgicos rígidos. O Natal é quando um homem quer, dizia-se antigamente; e, pelos vistos, também quando um clube precisa.
Esta segunda-feira foi dia de vitória. Não exuberante, ainda menos redentora, mas suficiente para afastar fantasmas que já começavam a pedir quarto cativo na Luz, com direito a pequeno-almoço incluído e estadia prolongada.

Esta partida contra o Famalicão teve o que os jogos têm tido nesta época: frio nas bancadas, ansiedade nas pernas e um público que já observa o relvado como quem olha para um presépio ainda por montar — José inclinado demais, o boi fora do lugar e o Menino ainda por chegar. O Benfica continua sem deslumbrar, mas também não se deixou deslizar, desta vez, para aquele pântano emocional que tem sido a sucessão recente de empates caseiros. Desta vez, não houve novo empate. E isso, convenhamos, já é motivo de aleluia — não daqueles cantados em coro celestial, mas dos murmurados com prudência, como quem agradece sem fazer promessas. ↓
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E mais ainda o penálti sobre Otamendi. Um braço levantado como quem invoca o céu, um VAR atento — milagre dos tempos modernos — e aquela pausa solene em que o estádio inteiro prende a respiração como num conclave à espera de fumo branco. Não houve dúvida teológica nem exegese prolongada: assinalou-se o penálti, Pavlidis marcou o golo da praxe, e o Benfica passou para a frente, mantendo-se fiel àquele mandamento simples e raramente cumprido esta época: não sofrerás depois de marcar. Nada de epifanias, nada de escândalos — quase um milagre natalício, precisamente pela sua anormalidade.
Mas talvez mais importante do que o golo marcado foi o outro golo não sofrido. Não houve, como já sucedeu demasiadas vezes esta época, aquele golo nos descontos da equipa adversária, aquela espécie de castigo bíblico que tem caído sobre a Luz como praga tardia: depois das rãs, depois dos gafanhotos, depois das águas tornadas sangue, eis o golo forasteiro aos 93 minutos. Desta vez, não. O apito final chegou inteiro, sem trombetas apocalípticas nem ranger de dentes. Salvou-se a noite. Salvou-se a semana. Salvou-se, para já, a sanidade colectiva.

Não há duas sem três — mas, por agora, não houve quatro, apesar de já terem existido três empates caseiros esta época nos descontos: Santa Clara, Rio Ave e Casa Pia. Na matemática do futebol, como na teologia, há números que contam mais pelo que evitam do que pelo que alcançam.
Não foi, desta vez, um quarto desaire. E isso confirma, ainda que timidamente, que afinal pode haver três sem quatro. Um pequeno dogma menor, não inscrito nos Evangelhos, mas aceite pela fé benfiquista, que nesta fase já se contenta com menos milagres e mais estabilidade.
Enfim, foi “só” um jogo mais sofrido do que inspirado, mais pensado do que sentido. Houve fases em que a bola circulou com a solenidade de um sermão dominical — longo, monótono, mas necessário — e outras em que parecia pedir socorro, como Jonas no ventre da baleia. Mas houve também algo que tem faltado: controlo. Não domínio absoluto, não futebol champagne, mas controlo suficiente para não deixar que o jogo descambasse para aquele território caótico onde tudo é possível — sobretudo o pior.

Nesta época natalícia, o futebol ensina-nos, em todo o caso, uma lição curiosa: nem sempre é preciso um banquete para haver celebração. Às vezes basta não faltar o essencial. Santo Tomás diria que o bem é aquilo que convém à natureza da coisa — e, neste momento, convém ao Benfica ganhar jogos, mesmo que seja sem estrelas no presépio e sem anjos a cantar. A estética fica para depois. A sobrevivência vem primeiro. Primeiro, o pão. E depois, se houver tempo, os peixes.
No fim, já no túnel de acesso ao Colombo, os adeptos saíram com aquele cântico do SLB, conscientes de que não tinham recebido ouro, incenso nem mirra, mas aliviados por não terem ficado com um par meias — ou seja, mais um empate embalado em papel de embrulho. Houve alívio. Houve conversa. Houve aquela sensação típica de Dezembro: “para já, chega”. E talvez seja isso o mais honesto que se pode pedir ao Benfica nesta fase do ano: menos apocalipse, mais Advento; menos promessas grandiosas, mais pequenos sinais de que, afinal, ainda pode haver redenção.
