Pitagórica questionou 400 pessoas, mas votos ‘de certeza’ somam 1032

Presidenciais: ERC recusa cumprir lei para avaliar sondagem fraudulenta que beneficia Gouveia e Melo

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 23, 2025


Categoria: Exame

minuto/s restantes


Fraude. Não há outra palavra que possa caracterizar a mais recente sondagem da Pitagórica para a TVI e CNN Portugal que teve as Presidenciais de 2026 como ‘prato forte’. Apresentada no passado dia 9 de Janeiro, a sondagem – cujos detalhes só esta madrugada [ontem pelas 23:03 horas ainda não estavam] foram disponibilizados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – destacou que “Gouveia e Melo é o preferido dos portugueses para a Presidência”, mas a metodologia para a obtenção desta conclusão radica em erros e enviesamentos graves que anulam a sua validade (e até a legalidade).

Com efeito, de acordo com a primeira notícia desta sondagem da TVI – que seria repercutida, de forma acrítica, pela imprensa generalista, tornando-se alvo de inúmeros debates e artigos de opinião –, “o até há pouco tempo chefe do Estado-Maior da Armada é quem reúne as preferências, ficando à frente de figuras que ainda não abriram o jogo quanto a uma candidatura, mas também de outras pessoas que estariam potencialmente bem colocadas”.

TVI e CNN Portugal apresentaram resultados fraudulentos como se fossem intenções de voto. Apesar de haver apenas 400 inquiridos, contabilizaram-se 1032 votos ‘de certeza’, o que significa que cada inquirido atribuiu, de forma convicta, uma média de 2,6 votos pelos proto-candidatos. Assim, uma parte dos 28% dos 400 inquiridos que garantiram que votariam ‘de certeza’ em Gouveia e Melo terão também votado ‘de certeza’ noutros proto-candidatos.

A notícia salientava que “a sondagem dividia-se em quatro respostas: ‘votaria de certeza’; ‘talvez votasse’; ‘jamais votaria’; ‘não conhece o candidato / não consegue ou não quer avaliar o candidato’”, e acrescentava então que, “neste cenário, Gouveia e Melo obteve 28% no ‘votaria de certeza’, um número só igualado por António Guterres” e que, “ainda assim, há mais pessoas que ‘talvez votassem’ no almirante (29%) do que no antigo primeiro-ministro (26%)”.

Numa apresentação televisiva desta sondagem, o jornalista Pedro Benevides, além de mostrar uma lista exaustiva de proto-candidatos, com as percentagens correspondentes a percentagens relativas à questão “em quem votaria?”, afirmou, de forma categórica, que Gouveia e Melo, colocado na primeira posição, tinha “28% das intenções de voto dos portugueses que foram consultados nessa sondagem; 28% que dizem que vão mesmo votar nele”.

Mostra-se evidente que a sondagem, por dolo, negligência ou incompetência, deveria ter tido um único destino: o ‘caixote do lixo’. Com efeito, tendo sido inquiridas apenas 400 pessoas – um número que, estatisticamente, para o universo dos recenseados, implica uma margem de erro anormalmente elevada (5%) –, se se somarem apenas os números relativos às respostas ‘votaria de certeza’ alcançar-se-iam 1.032 votos. Ou seja, em média, cada inquirido terá indicado que ‘votaria de certeza’ em 2,6 candidatos.

Em concreto, se Gouveia e Melo teve 28% dos inquiridos a dizerem que votariam nele ‘de certeza’, então foi porque 112 pessoas assim o garantiram na sondagem; se António Guterres teve a mesma percentagem, correspondeu então a 112 pessoas; se Passos Coelho teve 23%, então contam-se mais 92 pessoas; se António Costa teve 22%, significa mais 88 pessoas. Ora, só com estes quatro proto-candidatos se contabilizavam 404 votos em 400 inquiridos.

Ficha técnica da sondagem da Pitagórica disponibilizada hoje pela ERC não revela que as respostas na opção ‘votaria de certeza’ não eram exclusivas. Os resultados da sondagem jamais poderiam ser apresentadas como intenção de voto nem têm validade metodológica.

Junte-se mais os 60 inquiridos que supostamente garantiram também que votariam de ‘certeza’ em Marques Mendes (15%); mais os 52 que supostamente garantiram também que votariam de ‘certeza’ em Rui Rio (13%), outros tantos em Durão Barroso, e outros tantos em Cotrim Figueiredo, então os ‘votos de certeza’ sobem para 620 votos em 400 inquiridos. Se se juntar ainda mais os votos ‘de certeza’ em Paulo Portas (48), em Ana Gomes (mais 48), em António Vitorino (mais 44) e André Ventura (mais 44), o pecúlio de votos ‘de certeza’ – e que foram interpretados como “intenções de voto” – ascende então aos 805 votos em apenas 400 inquiridos. Juntando os votos ‘de certeza’ dos restantes proto-candidatos (António José Seguro, Aguiar-Branco, Francisco Louçã, Santana Lopes, Jerónimo de Sousa e Rodrigo Saraiva), atinge, então, um total de 1302 votos.

Esta impossibilidade democrática (cada pessoa ‘vale’ apenas um voto) e semântica (‘de certeza’ significa uma decisão convicta, garantida e exclusiva perante um candidato) invalida qualquer credibilidade à sondagem da Pitagórica e às conclusões retiradas, designadamente aquelas que colocaram Gouveia e Melo como o preferido dos portugueses. De facto, declarar um voto “de certeza”, em democracia, não admite múltiplas escolhas igualmente certas para diferentes opções num mesmo contexto.

Além disso, o inquirido que votasse ‘de certeza’ num determinado candidato deveria, além de ficar automaticamente bloqueado para votar ‘de certeza’ noutro candidato, não ter a possibilidade de ponderar votar em qualquer outro (ou seja, em responder, uma ou mais vezes, na opção ‘talvez votasse’). De igual modo, um voto ‘de certeza’ num determinado candidato, pela assertividade da decisão, implicaria que todos os outros proto-candidatos teriam de receber, de forma automático, um igualmente assertivo ‘jamais votaria’.

Contudo, nem sequer se sabe, na verdade, quantos, de entre os 400 inquiridos, votaram ‘de certeza’ apenas uma vez, nem quantos votaram ‘de certeza’ em dois ou mais candidatos. Aliás, seria curioso saber em quantos proto-candidatos votou o inquirido mais ‘liberal’. Note-se que na Ficha Técnica, hoje divulgada no site da ERC, se omite completamente que os inquiridos podiam optar várias vezes, em diversos proto-candidatos, algo que desvirtua também a sondagem por falta de transparência. Certo é que, havendo ainda indecisão – e daí até a possibilidade de se escolher ‘talvez votasse’ (que poderia ‘beneficar, aqui sim, vários proto-candidatos –, seria de esperar que o número de votos ‘de certeza’ fosse até substancialmente inferior ao número dos inquiridos.

Numa sondagem com uma absurda margem de erro de 5% e com inquiridos que poderiam escolher vários candidatos em simultâneo a quem entregariam o seu voto ‘de certeza’, o principal beneficiado acabou por ser Gouveia e Melo, apresentado como “o preferido” dos portugueses.

Os resultados da sondagem sobre as Presidenciais, agora divulgada em pormenor no site da ERC, permite, com maior detalhe, a repetição de votos ‘de certeza’ sobre vários quadrantes. Através dos dados em percentagem, o PÁGINA UM conseguiu saber como os diversos ‘simpatizantes’ dos partidos distribuíram os seus votos na opção ‘votaria de certeza’. Por exemplo, no caso dos eleitores da Aliança Democrática – que representavam 123 dos 400 inquiridos –, houve 53 votos em Passos Coelho, 35 em Gouveia e Melo, 30 em Marques Mendes, 29 em Paulo Portas, 27 em António Guterres, 26 em Durão Barrosos, 23 em Rui Rio, 19 em Aguiar-Branco, 18 em Cotrim Figueiredo, 16 em António Costa, 10 em Ana Gomes, 10 em, António Vitorino e mais 34 nos restantes proto-candidatos (Mário Centeno, António José Seguro, André Ventura, Francisco Louçã, Jerónimo Sousa e Rodrigo Saraiva. Soma-se tudo e dá 2,8 votos ‘de certeza’ nos eleitores da Aliança Democrática.

No caso dos eleitores do PS – que representam 116 dos 400 inquiridos – repete-se este padrão. Há 47 inquiridos que ‘juraram’ que votariam em António Costa, 46 que ‘juraram’ votar em António Guterres e 36 em Gouveia e Melo. Somente com estes três proto-candidatos há um problema: para um universo de 116 eleitores socialistas já se contam 129 votos ‘de certeza’. Mas isto agrava-se porque os restantes 16 proto-candidatos recolhem ‘de certeza’ mais 163 votos. Daqui se conclui que em 116 eleitores socialistas, a Pitagórica recolheu 292 votos ‘de certeza’, uma média de 2,52 votos ‘de certeza’.

No terceiro partido com maior representatividade parlamentar, o Chega, também houve muitos eleitores inquiridos que votaram ‘de certeza’ em mais do que um proto-candidato. E nem a absurda possibilidade de se votar várias vezes com convicção em diversos candidatos beneficiou o líder deste partido. Tendo sido ‘seleccionados’ 66 eleitores do Chega, apenas 30 disseram que votariam ‘de certeza’ em André Ventura, pouco à frente de Gouveia e Melo (27). Mas é muitíssimo provável que tenha havido eleitores que garantiram o seu voto a ambos – fazendo relembrar a famosa música de Marco Paulo –, porque os 66 eleitores do Chega votaram 176 vezes ‘de certeza’.

Na sondagem da Pitagórica, um inquirido podia declarar que tinha dois ou mais ‘amores’, indicando que votaria ‘de certeza’ em mais do que um candidato. Integridade e validade dos resultados são, deste modo, absolutamente nulas.

Houve, porém, eleitores de outros partidos mais ‘incertos’ na certeza, ou seja, que deram o voto ‘de certeza’ mais candidatos. Por exemplo, os sete eleitores do PAN, que integraram esta sondagem, concederam 27 votos ‘de certeza’ por diversos candidatos. Cada um teve direito a votar, média, quase quatro vezes (3,86). Os 18 eleitores do Livre também tiveram, segundo a sondagem da Pitagórica, dificuldades em perceber que votar ‘de certeza’ não implica votar em vários candidatos. Com efeito, contabilizaram-se, neste grupo, um total de 59 votos ‘de certeza’, dando assim uma média de 3,28 votos por cada eleitor.

Os eleitores com menor número médio de votos ‘de certeza’ são os do PCP. Em 13 inquiridos, no universo de 400 inquiridos, ‘só’ se contabilizam 19 votos ‘de certeza’. Curiosamente, apenas três se direccionaram para o único militante comunista (Jerónimo Sousa) na lista de proto-candidatos.

Se isto não bastasse, a Estatística Inferencial comprovaria a absoluta fraude desta sondagem da Pitagórica, usada, primeiro, pela TVI e CNN Portugal, e depois amplificada pela imprensa generalista. Com base nos dados conhecidos da sondagem, se se usar uma distribuição de Poisson, a probabilidade de um inquirido ter votado na opção ‘de certeza’ em apenas um proto-candidato foi somente de 19,6%. Usando o método de distribuição binomial, a probabilidade estimada desce para 18,9%, enquanto na simulação multinomial (Monte Carlo) surge a indicação de que todos os inquiridos votaram na opção ‘de certeza’ em mais do que um proto-candidato, reflectindo assim o enviesamento estrutural dos dados da Pitagórica.

O PÁGINA UM contactou Alexandre Picoto, patrão da empresa de sondagens Pitagórica, e próximos dos círculos do PSD, que confirmou a existência da possibilidade de os inquiridos puderem votar em mais do que um dos proto-candidatos na opção ‘votaria de certeza’. “Este tipo de sondagens tem como principal objectivo avaliar a taxa de conhecimento que os eleitores têm dos candidatos, a sua taxa de rejeição e a capacidade potencial de angariar votos, conjugando a opção ‘votaria de certeza’ e ‘talvez votasse’”, alega o responsável pela empresa de sondagens, descartando responsabilidade sobre a interpretação dos resultados feita pelos clientes (TVI e CNN Portugal) pela outra imprensa generalista.

Percentagem de inquiridos que, para cada candidato, lhe garantiram ‘de certeza’ o voto. Valores para a totalidade da amostra e por partido [OBN: outros partidos, brancos e nulos]. Fonte: Pitagórica.

Como Alexandre Picoto não deu uma explicação razoável sobre ter sido possível (contra a lógica democrática e semântica) os inquiridos optarem por ‘votaria de certeza’ em diversos proto-candidatos, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma queixa formal junto da ERC, uma vez que a ausência de regras que assegurassem exclusividade nas respostas torna esta sondagem incapaz de captar intenções de voto reais e confiáveis, convertendo-a num exercício vazio de significado e sem qualquer utilidade prática ou analítica. Ou seja, um puro objecto de manipulação e de desinformação.

A Lei das Sondagens determina, como uma das regras gerais, que “a interpretação dos resultados brutos deve ser feita de forma a não falsear ou deturpar o resultado da sondagem”, impondo, de igual modo, que “a publicação, difusão e interpretação técnica dos dados obtidos por sondagens de opinião devem ser efectuadas de forma a não falsear ou deturpar o seu resultado, sentido e limites”.

Na queixa do PÁGINA UM, com cinco páginas, explicitaram-se as “falhas metodológicas”, salientando que “comprometem seriamente a utilidade desta sondagem, e a sua divulgação constituiu um gravíssimo atropelo legal, mais ainda sendo extremamente fácil a detecção das anomalias metodológicos e a falsidade dos resultados, como indicativo de intenções reais de voto”. E solicitava-se que a ERC determinasse a obrigatoriedade da “assumpção pública dos erros metodológicos e de interpretação abusiva por todos os órgãos de comunicação social que [tivessem] abordado a sondagem da Pitagórica”.

Número absoluto de votos contabilizados como ‘votos de certeza’ para cada candidato. Valores para a totalidade da amostra e por partido [OBN: outros partidos, brancos e nulos]. Análise: PÁGINA UM com base nos dados da ficha técnica da Pitagórica.

Porém, apesar da Lei das Sondagens, explicitamente, indicar que “as queixas relativas a sondagens ou inquéritos de opinião publicamente divulgadas, que invoquem eventuais violações do disposto na presente lei”, devem ser alvo de deliberação pela ERC “no prazo máximo de oito dias após a sua recepção”, o Conselho Regulador fez vista grossa a esta sua obrigação.

Tendo o prazo legal para deliberar sobre a queixa do PÁGINA UM terminado na passado segunda-feira, a ERC nada decidiu, dizendo apenas que “se encontra, nos moldes habituais, em apreciação pelos serviços”. Saliente-se que os “moldes habituais” da ERC tem sido mandar para as calendas uma decisão, esvaziando por completo a sua função de regulação e de zeladora contra a manipulação e desinformação. Com efeito, de entre as diversas queixas envolvendo sondagens, o hiato entre a participação e a deliberação da ERC tem sido de vários meses e mesmo anos. E nos casos mais gravosos, que implicaram a violação da Lei das Sondagens, a admoestação é geralmente a sanção aplicada.

Por exemplo, uma queixa contra um jornal de Vila Nova de Famalicão sobre uma sondagem política local apresentada à ERC em 26 de Setembro de 2013 só teve uma deliberação praticamente dois anos depois, em 23 de Setembro de 2015, que concluiu pela abertura de um processo de contra-ordenação. A decisão final, através de uma admoestação, demorou mais de quatro anos e sete meses, ou seja, foi proferida em 7 de Maio de 2020.

Regulador apenas divulgou ficha ténica da sondagem da Pitagórica duas semanas depois da divulgação da parte sobre as Presidenciais, e não cumpre o prazo de oito dias para análise de queixas determinado pela Lei das Sondagens.

Outra queixa, sobre a actuação do jornal I face a uma sondagem da Pitagórica sobre as eleições legislativas, apresentada em finais de Agosto de 2015, somente teve uma deliberação em 4 de Maio de 2016. Neste caso, o processo de contra-ordenação até resultou numa coima de 15 mil euros, mas a decisão foi proferida em 15 de Dezembro de 2021. Ou seja, seis anos e quatro meses após os factos.

A passividade e a lentidão da ERC contribuem, assim, e de forma decisiva, como um convite para a manipulação pura e dura das sondagens e inquéritos de opinião num clima propício à impunidade. E mesmo se um dia houver penalidades, o objectivo da manipulação foi alcançado, por se tornar inútil e intempestiva posterior acção do regulador. Aliás, perante o incumprimento dos prazos legais por parte da ERC, o PÁGINA UM perguntou a esta entidade se, pelo menos, uma deliberação sobre a sua queixa contra esta sondagem fraudulenta sairia antes das Presidenciais previstas para Janeiro de 2026. Não obteve resposta.


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

APOIOS PONTUAIS

IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

MBWAY: 961696930 ou 935600604

FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.