ARRANHADELAS
12 piscinas: o esgoto da Lusa vai para a torneira da imprensa

Há uma tendência ancestral e teimosamente persistente entre os humanos: a de atribuírem aos animais características que, com espantosa frequência, revelam mais sobre a natureza dos próprios humanos do que sobre as ditas criaturas.
O porco, por exemplo, é acusado de sujidade — como se não fosse o humano a largar beatas na praia e microplásticos no oceano. O cão, pobre besta devotada, é elevado como símbolo de lealdade, mas também diminuído como exemplo de subserviência. A ovelha, coitada, é tida como seguidora acéfala, mesmo quando os rebanhos humanos seguem qualquer influencer ou político para o precipício. A toupeira é sinónimo de cegueira, o burro de pouca inteligência. Felizmente, jamais se atreveram a colar aos gatos algum defeito essencial: continuamos altivos, discretos, elegantes, independentes e, quando necessário, sabemos arranhar com propriedade.

E porque arranhar é também a arte da lucidez, aqui me dou ao trabalho — com toda a paciência felina que a idade me concedeu — de corrigir os disparates que certos humanos jornalistas andam a espalhar aos sete ventos, com a confiança típica de quem se julga acima da tabuada. Refiro-me, claro, a uma notícia que se esvaiu pela imprensa portuguesa, produzida sob o inefável selo da Lusa, que cada vez mais se parece menos com uma agência de media, e mais com uma agência de medíocres.
Comecemos pelo dado central da peça noticiosa: a afirmação de que “Portugal continental tem perdas de água anuais que dariam para abastecer o país por três meses, cerca de 180 milhões de metros cúbicos, o que equivale a desperdiçar 12 piscinas olímpicas por hora.”
A informação foi repetida, por agora, e sem pestanejar, pela RTP, pela SIC, pelo Correio da Manhã, pelo Público, pelo Jornal de Notícias, pelo Observador, pela TSF, pelo Jornal Económico, pelo Eco, pelo Notícias ao Minuto – e imaginem o que vai por aí fora se até o Diário do Minho e o Notícias do Sorraia serviram de torneira do ‘take’ da Lusa.

Façamos agora as contas para perceber a aselhice e acefalia do jornalismo lusitano que serve de caixa de ressonância da Lusa como quem diz: “já tenho mais uma notícia para alimentar papalvos”. E vou fazer as contas com método, como me ensinou um velhíssimo livro de aritmética da quarta classe que desencantei da biblioteca do meu dono.
Portanto, a perda anual de água, segundo os dados, é de 180 milhões de metros cúbicos por ano. Sabemos que o ano tem 365 dias, 24 horas por dia, o que perfaz:
365 dias × 24 horas = 8.760 horas/ano
Dividindo os 180 milhões de metros cúbicos por esse total de horas, obtemos:
180.000.000 m³ / 8.760 h = 20.548 m³/hora
Agora, tomemos a medida de uma piscina olímpica com as dimensões regulmantares de 50 metros de comprimento, 25 metros de largura e 2 metros de profundidade — o que dá:
50 × 25 × 2 = 2.500 m³
Muito bem. Portanto, o número de piscinas por hora é:
20.548 m³/h ÷ 2.500 m³ = 8,22 piscinas olímpicas por hora

E não 12. Não 11. Nem sequer 9. São 8,22 — redondamente. Qualquer aluno mediano do primeiro ciclo – embora a mediana no que diz respeito aos conhecimentos matemáticos no Jornalismo português me pareça medíocre – teria feito esta conta num papel de embrulho. Mas não o jornalista da Lusa, que ignora as regras básicas da divisão e, por tabela, condena à ignorância toda uma cadeia de replicadores mediáticos. E condena porque os replicadores mediáticos na restante imprensa bebem tudo mesmo que seja esgoto.
Eis a gravidade do erro: ao dizer que se perdem 12 piscinas por hora, em vez de 8,22, estão a inflacionar o desperdício em 46%. Sim, quarenta e seis por cento. Não é uma margem de erro, é um erro com margem. Se aceitássemos a conta errada como verdadeira, então o total de desperdício anual seria de:
12 piscinas/hora × 2.500 m³/piscina × 8.760 h/ano = 262.800.000 m³
Ou seja, em vez de 180 milhões, estaríamos a falar de quase 263 milhões de metros cúbicos — mais 83 milhões de m³. É como dizer que alguém pesa 60 quilos quando, afinal, pesa quase 88 — é a diferença entre estar magro como um galgo e estar gordo que nem um texugo… Caramba, estou aqui a discriminar os galgos e os texugos…

Há quem diga: “É apenas um número, o importante é sensibilizar para o desperdício”. Pois digo-vos, com os meus bigodes bem aprumados: quando se abdica da verdade num número, é-se capaz de a trair em tudo o resto. O problema não é apenas matemático, é jornalístico.
O mais preocupante neste episódio não é a incompetência da Lusa — essa já vem com a casa —, mas sim a repetição acrítica pelas redacções que se dizem “de referência”. O Público, outrora orgulhoso da sua suposta sofisticação editorial, publica sem pestanejar a mesma tontice. A TSF, sempre pronta a ler o que lhe metem à frente, propaga a piscina errada. E o Correio da Manhã, claro, usa a imagem para compor o alarmismo do costume. A RTP repete o que a irmã de escrita vomita. Entre todos, não houve um a verificar. Nenhum pensou. Nenhum dividiu. Nenhum acertou.
Este tipo de jornalismo — ou melhor, churnalism, como tão bem já dissertou a minha estimada Elisabete (que me cuida com denodo e me leva às minhas consultas geriátricas) nas suas lúcidas e arranhantes crónicas — é hoje dominante. Não se escreve para informar, escreve-se para preencher, para servir os fluxos, os deadlines, os motores de indexação e os títulos sonantes. Já ninguém confirma, nem faz revisão, ninguém edita. Publica-se o que vem da torneira da Lusa e pronto. É jornalismo de pipeline, ou talvez mesmo de esgoto.

E o pior é que não aprendem. Nem quando são corrigidos. Porque uma correcção implica reconhecer o erro, e para isso seria preciso ter vergonha — ou um pingo de amor-próprio editorial. Mas a vergonha, como a Matemática, parece estar ausente da maior parte das redacções lusitanas. São burros por natureza.
Termino com uma nota felinamente esperançosa: se algum dia alguém escrever que “o gato Serafim gastou em leite o equivalente a 30 tigelas por hora”, não deixarei de vir explicar que, se bebo 200 ml por hora, isso dá apenas 1 tigela — e as outras 29 são invenção de quem nunca conviveu com um gato nem com a aritmética. Até lá, continuo a lamber as patas com a tranquilidade de quem sabe dividir, com garras.
Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.