AFINAL, CONTRATO NEM SEQUER SE ENQUADRA NOS ''SECTORES ESPECIAIS'
Garantia não ser preciso, mas presidente da Carris acaba por publicitar polémico ajuste directo no Portal Base

Não queria, mas teve de ser. Na passada quinta-feira, o presidente da Carris, Pedro Bogas, garantiu em conferência de imprensa, com a firmeza de um leão, que o ajuste directo alegadamente celebrado a 20 de Agosto com a empresa MNPC – responsável pela manutenção dos elevadores de Lisboa – não tinha de ser publicado no Portal BASE, por se tratar de um contrato no âmbito dos chamados “sectores especiais”. Mas, sem escapatória legal, o ajuste directo já é público desde o final do dia de ontem.
Recorde-se que as declarações de Pedro Bogas sobre a não obrigatoriedade de publicação do contrato na plataforma da contratação pública foram proferidas no mesmo evento em que foi disponibilizada aos jornalistas presente uma minuta forjada para simular a existência de um contrato. O documento não tinha as assinaturas das partes, apesar de os serviços da Carris terem colocado uma tarja negra no documento – o que Pedro Bogas admitiria ao PÁGINA UM ter sido “um erro”.

Em conversa com o PÁGINA UM no sábado seguinte, o presidente da Carris, licenciado em Direito, voltou a sustentar que a empresa não estava obrigada a divulgar os contratos na plataforma da contratação pública – uma posição que, na prática, equivaleria a admitir uma completa ausência de transparência na utilização de dinheiros públicos. ↓
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Mas a pose altiva durou pouco: pressionada pelo PÁGINA UM, e também após diversas opiniões jurídicas que foram sendo transmitidas na imprensa sobre o facto de a a publicitação ser obrigatória – independentemente de se tratar de “sectores especiais” –, a Carris foi forçada a recuar. Ontem, 9 de Setembro, a empresa acabou por publicar no Portal Base o contrato por ajuste directo, não por voluntarismo ou por “transparência acrescida”, mas por imposição legal.
Com efeito, já a 4 de Setembro, o PÁGINA UM sublinhava que o artigo 127.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) é inequívoco: a publicação dos contratos no Portal BASE é condição de eficácia jurídica em quaisquer circunstâncias. Sem publicação, o contrato não produz efeitos externos nem vincula a entidade adjudicante. A obrigação de publicitação aplica-se a todas as entidades públicas, incluindo as abrangidas pelos chamados “sectores especiais”, sendo irrelevante a maior flexibilidade procedimental ou os limiares de valor que dispensam a publicidade prévia no Jornal Oficial da União Europeia.

Além disso, a própria deliberação do Conselho de Administração da Carris de 14 de Agosto, apenas assinada por Pedro Bogas, não deixava margem para dúvidas sobre a aplicação do artigo 127.º, uma vez que expressamente refere que não se aplicaria ao ajuste directo “o Regime da Contratação Pública, previsto na Parte II do CCP”, sendo então aplicável os procedimentos de “locação, aquisições de bens, serviços e empreitadas”, que obrigaria a uma consulta prévia, e depois à publicitação do ajuste directo.
Por esse motivo, mostra-se completamente absurdo que o presidente da Carris tenha afirmado à imprensa o contrário daquilo que assinou em 14 de Agosto. E mais ainda a insistência da Carris em classificar no Portal Base o contrato como sendo relativo aos “sectores especiais”, o que demonstra o desnorte da empresa municipal.
Aliás, a deliberação de Pedro Bogas mostra-se um atropelo às boas normas de gestão pública porque, no mesmo dia, cancelou o concurso público iniciado em Abril, aceita uma consulta prévia entretanto feita (que só deveria ser exequível depois do cancelamento do procedimento anterior), selecciona a empresa (a MNTC em detrimento da Liftech) e aprova a minuta do contrato.

Esta questão – da eficácia e até da própria existência formal de contrato válido à data do acidente com o Elevador da Glória – pode ter implicações relevantes no apuramento de responsabilidades pela tragédia que vitimou 16 pessoas e feriu mais de duas dezenas. A seguradora Fidelidade, que cobre a Carris, poderá alegar irregularidades colocando em causa nos tribunais a validade do contrato à data do acidente.
O contrato agora publicado no Portal BASE é o mesmo que a Carris tinha enviado ao PÁGINA UM – e só uma análise forense poderá determinar se foi efectivamente assinado a 20 de Agosto ou apenas após o acidente –, contendo já as assinaturas de dois administradores da Carris e do gerente da MNTC. Tem um prazo de 153 dias, decorrendo assim até 31 de dezembro de 2026, e um montante máximo de 221.333 euros, mas, segundo as cláusulas, não será executado se os elevadores permanecerem inactivos.
Mesmo que venha a ser cumprido na parte que respeita aos outros elevadores, o caderno de encargos é extremamente vago, limitando-se a exigir lubrificações e verificações visuais. A MNTC é ainda responsável pela substituição dos cabos – operação sensível que poderá ter estado na origem da ruptura do cabo do Elevador da Glória, que desencadeou o acidente.

Mantém-se, contudo, o secretismo sobre a maioria dos contratos anteriores. Garantidamente, sabe-se apenas que a MNTC presta serviços desde 2022, sendo que Pedro Bogas sublinhou que a manutenção está externalizada “pelo menos desde 2007” e que “a segurança é uma prioridade absoluta da Carris há 152 anos”.
Em 2022, a MNTC venceu o concurso público com uma proposta de cerca de 995 mil euros – cerca de 42% abaixo do preço-base. Apesar de não ter qualquer experiência no sector e de não possuir sequer o alvará da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) à data do concurso, venceu com base no único critério de adjudicação: o preço. Porquê? A Carris ainda não explicou.