EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
Fumar mata? Dar ‘jobs’ a ‘boys’ também

Há tristes e trágicas ironias do destino que dispensam legendas e moral da história: bastam-se a si próprias, num enredo de que só a realidade é capaz. A composição do Conselho de Administração da Carris é um belo exemplo de como o Estado português, geridos por Governos de quadrantes indistintos, quando decide ser patrão, o faz com aquela fleuma paternalista que nos leva a acreditar que o mérito é uma moeda fora de circulação.
Vejamos, neste contexto, quem são os cinco administradores da Carris, a empresa municipal que gere os ascensores históricos de Lisboa. Pedro Bogas, presidente, é advogado e passou grande parte da sua vida profissional entre gabinetes ministeriais, assessorias jurídicas e cargos de administração em empresas públicas. Não é alguém que se tenha distinguido por dirigir frotas de autocarros ou garantir a segurança de funiculares, mas sim por conhecer os meandros dos corredores do poder.

A sua vice, Ana Coelho, licenciada em Economia, fez praticamente toda a carreira na CP — mas não na operação ferroviária, onde se respiram horários, acidentes e redundâncias de segurança, mas antes na contabilidade e controlo orçamental. Era na CP, podia ser noutra qualquer empresa pública: números são números, folhas de Excel não distinguem se o activo é um comboio ou um autocarro ou um parafuso. Ou um cabo que pode colapsar. ↓
O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.
A outra vice, Maria Albuquerque, engenheira civil com mestrado em planeamento territorial e ambiente, é um produto típico da tecnocracia ministerial: carreira feita em gabinetes, programas comunitários e, mais recentemente, na estrutura de gestão do IFRRU 2020 — o Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas —, onde se gere dinheiro, não se gerem equipamentos que transportam pessoas em carris de ferro.
Já Eva Favila Vieira, promovida este ano a vogal, tem um percurso sui generis: advogada de formação, era desde 2018 secretária-geral da Carris e, depois, directora jurídica, mas antes tinha feito carreira no que se poderia chamar cultura política — foi chefe de gabinete da vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, passou pelo Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) e também por gabinetes ministeriais na Defesa.

Por fim, Fernando Pedro Moutinho, vogal não executivo, é arquitecto paisagista e, sobretudo, um homem político: foi deputado do PSD nos períodos 1995-1999 e 2002-2005, e desde então foi vivendo à sombra de cargos públicos de nomeação política, incluindo vice-presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (2013-2019) e, actualmente, é director municipal da Higiene Urbana de Lisboa, responsável pela frota municipal e recolha de resíduos.
Olhando para este ramalhete, percebemos o que em Portugal se institucionalizou como “boys” e “girls” para “jobs” públicos. São tachos, no sentido mais cru do termo, ou se quisermos recorrer a um léxico mais arcaico e erudito: sinecuras — esses cargos que, na velha acepção latina, eram remunerados mas dispensavam trabalho árduo ou risco. Há quem passe a vida aos saltos de gabinete em gabinete, de nomeação em nomeação, até que lá pelos cinquenta e poucos anos se encontra uma cadeira mais confortável, com salário generoso, viatura de serviço, cartão de combustível e direito a convites para inaugurações. É a vida, dirão alguns: a política sempre foi o palco onde se distribuem recompensas aos fiéis.
Mas há áreas onde o preço das sinecuras é demasiado alto. Há funções públicas e empresas públicas que não podem ser transformadas em prateleiras douradas para quem foi leal ao partido certo ou esteve no gabinete certo na hora certa. A tragédia recente do Elevador da Glória prova-o de forma dolorosa.

Não estamos apenas perante um acidente: estamos perante o paradigma de uma tragédia anunciada. O desastre não foi o rompimento do cabo, nem a morte e ferimento dos passageiros: o verdadeiro desastre foi político, começou anos antes, quando alguém na Câmara Municipal de Lisboa decidiu nomear para a administração da Carris uma equipa de cinco pessoas sem conhecimento operacional nem sensibilidade para a segurança de ascensores centenários.
Ao longo dos anos, ninguém — sublinho, ninguém — pareceu ter o discernimento para abrir o caderno de encargos da manutenção e questionar se aquelas exigências minimalistas eram suficientes para proteger a vida dos passageiros. Ninguém achou estranho que a poupança em custos de manutenção fosse esmagada até ao osso. Ninguém se deu ao trabalho de ler a legislação com atenção e perceber que a substituição de um cabo num equipamento histórico necessitava de autorização prévia do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), de ensaios, de testes, de documentação formal.
E ninguém, sobretudo, fez a pergunta fundamental: estamos a gerir património histórico, a assegurar a segurança das passageiros ou estamos apenas a fechar orçamentos?

O resultado está à vista: um equipamento que deveria ser símbolo de Lisboa transformou-se em notícia internacional pelos piores motivos. E com 16 mortes e duas dezenas de feridos. Foi no dia 3 de Setembro de 2025, mas poderia ter sido em qualquer altura – quando qualquer um dos leitores estivesse à hora errada no local errado para um acidente certo.
A responsabilidade do desastre do Elevador da Glória não se dilui no nevoeiro burocrático: está na escolha das pessoas. Escolher administradores que nunca respiraram manutenção, operação ou segurança para gerir uma empresa de transporte é como pôr um poeta a pilotar um avião: pode até ser uma viagem inspiradora, mas o risco de cair é real.
O acidente do Elevador da Glória é, por isso, mais do que um acidente: é o corolário de uma cadeia de decisões políticas e administrativas. E deve ser lido como aviso sério: dar “jobs” a “boys” e “girls” pode ser tão perigoso quanto fumar. Tal como o cigarro, pode dar algum prazer no momento, o conforto de satisfazer clientelas políticas ou de recompensar carreiras de fidelidade. Mas tal como o cigarro, tem efeitos secundários fatais. Porém, neste caso, mata inocentes, não o próprio fumador.

Por isso, aquilo que está em causa não é apenas a responsabilidade civil ou criminal de quem falhou — é a responsabilidade política de quem escolheu estas pessoas para estes lugares. Quando a incompetência institucional se alia à indiferença operacional, o resultado é sempre o mesmo: tragédia.
Concluindo, é tempo de compreender que há lugares na administração pública que não podem ser ocupados por profissionais de carreira política, mas sim por quem detenha competência técnica para assegurar o funcionamento dos equipamentos e infraestruturas, garantir a integridade das pessoas e impedir que os erros do passado se repitam. Caso contrário, preparemo-nos: depois do Elevador da Glória, a próxima tragédia estará ao virar da esquina — e quando ela acontecer, não haverá desculpa, apenas mais uma lápide a lembrar que o vício de distribuir cargos aos apaniguados mata.