JULGAMENTO EM LISBOA COM SETE AUDIÊNCIAS MARCADAS COMEÇA A 20 DE NOVEMRO

Gouveia e Melo ‘junta-se’ à Ordem dos Médicos e a deputado do PSD para tentar condenação de director do PÁGINA UM

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Elisabete Tavares|14/11/2025

Será já na próxima quinta-feira, dia 20, no Campus da Justiça de Lisboa, que se inicia o julgamento em que a Ordem dos Médicos e três dos seus mais mediáticos rostos durante a pandemia – Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas – procuram receber 60 mil euros do director do PÁGINA UM, acusando-o de os ter difamado quando, em 2021, divulgou artigos sobre as ligações financeiras entre médicos influentes e várias farmacêuticas envolvidas em contratos com o Estado durante a covid-19.

No mesmo julgamento foi apenso outro processo, este pelo actual candidato à Presidência da República, Gouveia e Melo, que apresentou também uma participação criminal por artigos de investigação jornalística sobre a sua acção enquanto líder da task force da vacinação contra a covid-19.

O caso chega agora a tribunal após a apresentação de duas queixas-crime distintas – a primeira pela Ordem e pelos três médicos; a segunda pelo então coordenador da Task Force, o almirante Gouveia e Melo – ambas acolhidas integralmente pelo Ministério Público, que transformou investigações jornalísticas baseadas em dados oficiais em alegadas ofensas de honra e “ataques pessoais”. Já estão marcadas sete audiências até Dezembro (vd. agenda no final do texto)

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No processo movido pela Ordem dos Médicos, o Ministério Público adoptou uma posição particularmente opaca: não explica, em lado nenhum, por que razão considera que críticas fundamentadas, baseadas na Plataforma de Transparência do INFARMED, constituem um crime. A acusação limita-se a repetir as expressões dos queixosos, sem uma única linha de enquadramento, sem uma única demonstração factual de falsidade das informações publicadas e sem um único esforço para diferenciar investigação jornalística de insulto pessoal.

No caso da queixa individual de Gouveia e Melo – que será ouvido como assistente, apesar de o seu pedido de indemnização ter sido rejeitado por intempestivo –, a procuradora segue o mesmo trilho acrítico: revela desconhecimento sobre o próprio jornal, afirmando que o PÁGINA UM é “um jornal digital” e, simultaneamente, que tem venda em banca, o que não corresponde ao facto mas que é revelador da qualidade do trabalho da magistrada Silvana Andrade.

Miguel Guimarães, ao centro, antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado social-democrata, quer 15 mil euros do director do PÁGINA UM..

Mais grave, porém, está no facto de a procuradora do Miistério Público nada ter investigado – ou seja, não analisa os artigos publicados, não verifica fontes, não confronta dados, não solicita documentos –, limitando-se a presumir intenção difamatória a partir da mera existência de investigação incómoda.

Este comportamento contrasta radicalmente com o adoptado pelo Ministério Público num outro processo, apresentado em 2023, no qual a ministra da Saúde, o então deputado social-democrata Miguel Guimarães, a APIFARMA, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos também acusaram o director do PÁGINA UM de difamação por causa da investigação sobre a gestão financeira da campanha “Todos Por Quem Cuida”.

Aí, o procurador Nuno Morna de Oliveira, responsável pelo processo, dedicou 72 páginas a analisar detalhadamente cada afirmação publicada, contextualizando, verificando e ponderando cada elemento. E concluiu – de forma cristalina e fundamentada – que não havia qualquer matéria criminal, que a investigação se inseria na liberdade de imprensa e que o escrutínio público da campanha, financiada com mais de 1,3 milhões de euros de doações das farmacêuticas, era não apenas legítimo, mas necessário. O processo foi, portato, arquivado.

Filipe Froes ao centro, tendo ao seu lado esquerdo o actual bastonário Carlos Cortes. Apesar de ser um dos médicos que mais dinheiro recebe das farmacêuticas, quer ainda receber mais 15 mil euros do director do PÁGINA UM apenas por este ter revelado as suas promiscuidades.

Agora, quanto aos processos de Gouveia e Melo e da Ordem dos Médicos, segundo o despacho do tribunal judicial de Lisboa, o julgamento arranca com a audição de Pedro Almeida Vieira e da Ordem dos Médicos no dia 20 de Novembro, prosseguindo com as declarações de Filipe Froes, Luís Varandas e Gouveia e Melo no dia 25, e continuando nos dias 27 de Novembro, e ainda nos dias 2, 4, 9 e 11 de Dezembro, datas reservadas às testemunhas de acusação e de defesa.

Nos autos está um longo historial de publicações efectuadas durante Agosto e Setembro de 2021 – quando o PÁGINA UM, então ainda apenas um projecto em preparação –, em que Pedro Almeida Vieira analisava dados públicos sobre relações financeiras entre médicos e farmacêuticas, descrevendo valores concretos, pagamentos regulares, patrocínios a palestras, avenças mensais, contratos de colaboração e discrepâncias contabilísticas evidentes entre o que era declarado ao INFARMED e o que era facturado através de empresas privadas.

Esses dados eram – e continuam a ser – oficiais, disponibilizados na Plataforma de Transparência do regulador do medicamento. E foi precisamente no período em que estas relações começaram a ser escrutinadas que o PÁGINA UM, já depois da sua criação em Dezembro de 2021, avançou para os tribunais administrativos com pedidos de acesso aos documentos ocultados da campanha “Todos Por Quem Cuida”.

Julgamento inicia-se na próxima quinta-feira, dia 20 de Novembro, e já conta sete audiências marcadas até Dezembro.

A campanha, apresentada como operação solidária conjunta da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos, movimentou mais de 1,3 milhões de euros, mas essas verbas foram geridas fora da contabilidade oficial das ordens e canalizadas para uma conta partilhada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins (actual ministra da Saúde) e Eurico Castro Alves.

O PÁGINA UM conseguiu aceder a toda a documentação desta campanha por via de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, e detectou assim um vasto conjunto de irregularidades significativas: ausência de pagamento de impostos e declarações falsas com efeitos fiscais, facturas falsas, contabilidade paralela e falta de transparência financeira.

Foi também no âmbito dessa documentação que se detectaram combinações entre Miguel Guimarães e o então vice-almirante Gouveia e Melo para se vacinarem médicos não-prioritários, em violação da norma em vigor da Direcção-Geral da Saúde e extravasando competências da task force, sendo que houve ainda um pagamento de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas.

Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.

A queixa da Ordem dos Médicos – que está a suportar os custos de advogados de Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas –, apresentada em 2022, surgiu precisamente nesse contexto de tensão: na altura em que o PÁGINA UM requereu judicialmente o acesso integral à documentação, e quando começavam a surgir as primeiras provas da gestão paralela da campanha. A acusação do Ministério Público repete esta narrativa dos queixosos, chegando ao ponto de sustentar que o arguido terá publicado factos verdadeiros com o objectivo de “atrair leitores” – uma lógica que, aplicada a qualquer jornalista, transformaria a actividade profissional em crime sempre que fosse incómoda.

No processo de Gouveia e Melo, a acusação vai mais longe na superficialidade: presume intenção difamatória sem demonstrar um único erro factual, e sem dedicar um minuto que fosse a investigar o trabalho jornalístico. E fá-lo precisamente quando o PÁGINA UM investigava o papel do almirante no alinhamento entre a Task Force e os sectores dirigentes da Ordem dos Médicos – incluindo figuras que geriam a campanha “Todos Por Quem Cuida” e que beneficiaram directamente dos donativos das farmacêuticas.

Neste caso, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) ainda abriu um procedimento, mas acabou por nem sequer ouvir Gouveia e Melo nem investigar detalhes relevantes como a vacinação de um político à margem da lei. Além disso, a inspectora da IGAS alterou a data da norma da DGS para assumir que os médicos não-prioritários afinal podiam ser vacinados, o que se mostra falso. Em todo o caso, a IGAS enviou a questão do pagamento ao Hospital das Forças Armadas para o Ministério Público, mas desconhece-se a evolução.

O pediatra Luís Varandas foi um avençado da Pfizer durante a pandemia e defendeu a vacinação contra os adolescentes sem revelar essa sua relação com a farmacêutica. Este pediatra foi um dos médicos que ‘perseguiu’ Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, mesmo sabendo que existia um parecer engavetado por Miguel Guimarães que não recomendava a vacinação a menores de idade saudáveis.

Agora, será um tribunal criminal a avaliar se investigações e revelações de um jornalista devem ser reprimidas como difamação ou protegidas como jornalismo. O contraste com o processo arquivado – onde o Ministério Público reconheceu de forma explícita que o PÁGINA UM actuou no exercício legítimo da liberdade de imprensa – torna esta acção particularmente relevante para a transparência institucional e para o futuro da fiscalização pública em Portugal.

A partir do dia 20, e ao longo de sete sessões já marcadas até 11 de Dezembro, o tribunal ouvirá dezenas de testemunhas. O director do PÁGINA UM será defendido pelo advogado Miguel Santos Pereira. E poderá assim finalmente perceber-se se os tribunais portugueses decidem de acordo com a lei de um país democrático, que protege a liberdade de imprensa, ou se ajustam a sua sensibilidade consoante o incómodo provocado pelas investigações jornalísticas e o peso institucional dos queixosos.

AGENDA DO JULGAMENTO

1) 20 de Novembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Declarações do arguido Pedro Almeida Vieira
– Declarações dos Assistentes da Ordem dos Médicos:
 • Bastonário Carlos Cortes
 • José Miguel Ribeiro de Castro Guimarães


2) 25 de Novembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Declarações dos Assistentes:
 • Luís Filipe Froes
 • Luís Manuel Varandas
 • Henrique Gouveia e Melo


3) 27 de Novembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das três testemunhas de acusação
 (processо 144/23.0T9LSB)


4) 2 de Dezembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das primeiras oito testemunhas do PIC
 (processо 1076/22.5T9LSB)


5) 4 de Dezembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das restantes sete testemunhas do PIC
 (processо 1076/22.5T9LSB)


6) 9 de Dezembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das três testemunhas de defesa
 (processо 144/23.0T9LSB)
– Inquirição de duas testemunhas de defesa
 (processо 1076/22.5T9LSB)


7) 11 de Dezembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das últimas cinco testemunhas de defesa
 (processо 1076/22.5T9LSB)
– Demais actos da audiência

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