PORTA DOS FUNDOS

Portátil: um improviso que sabe onde cair

Tenho uma confissão a fazer, que não é defeito moral, mas inclinação estética: detesto eventos culturais à tarde. Em espaço aberto ou fechado, cinema, teatro, música, conferências, recitais ou quaisquer outras manifestações respeitáveis do engenho humano que insistam em ocorrer sob luz solar. A cultura, para mim, pede noite. As manhãs são um atentado — uma perversão higienista que só pode ter sido inventada por quem confunde disciplina com virtude. A tarde, essa zona morta do dia, é um compromisso melancólico entre o que já não é trabalho e o que ainda não chegou a ser pensamento.

A noite, pelo contrário, é o habitat natural da inteligência. O corpo chega cansado, os sentidos despertam por contraste e a mente, finalmente liberta da tirania da utilidade, torna-se permeável ao artifício, à ironia, ao risco e à suspensão da descrença. A noite favorece o teatro; a tarde favorece o torpor. Esta distinção não é capricho pessoal: aproxima-se perigosamente de uma teoria estética.

Ainda assim — por dever logístico (e jornalístico), ‘civilidade contratual’ e um certo estoicismo cultural — aceitei assistir à sessão de matinée de Portátil, dos Porta dos Fundos, promovida pela H2N. Logo nessa mesma tarde, aliás, passada em reclusão a preparar a contestação à providência cautelar da Prime Artists, exercício pouco compatível com leveza espiritual. Fiz bem em ceder. Para matar o tempo e alguma da indisposição caprichosa, percorri de bicicleta a zona ribeirinha antes do espectáculo e fui recompensado com um desses pores-do-sol que só o Inverno sabe produzir: nuvens densas, cores indecisas, uma luz oblíqua e melancólica que parece sempre pedir desculpa por existir. Os deuses — que também têm sentido de humor — completaram a encenação com um detalhe decisivo: o bilhete não podia ser melhor, primeira fila. Tudo indicava que a tarde, excepcionalmente, poderia redimir-se.

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Esta sessão de matinée — a única das três sessões previstas —, integrada num festival com programação até ao próximo dia 18, inscreve-se num filão que os actores ligados ao Porta dos Fundos têm vindo a explorar com insistência crescente: a improvisação estruturada a partir de histórias “reais”, escolhidas em palco, com a promessa implícita de espontaneidade, risco e revelação. É um modelo reconhecível, testado e comercialmente eficaz, que surge aqui como herdeiro directo — mas claramente menor — do Porta dos Fundos original, que teve o seu auge até 2019, esse sim um objecto mais ousado, mais concentrado e, paradoxalmente, mais livre. A promessa da improvisação mantém-se intacta no discurso, mas é cada vez mais mediada por um dispositivo que protege o risco e amortece a vertigem.

Não há como negar o talento criativo de Fábio Porchat: o domínio do tempo cómico, a rapidez de associação, a capacidade de transformar um detalhe banal numa situação dramatizável continuam intactos. Gregório Duvivier acompanha com inteligência e versatilidade, enquanto João Vicente de Castro e Gustavo Miranda asseguram eficácia cénica e ritmo. Ainda assim, o conjunto nunca atinge, neste espectáculo, a densidade nem a surpresa do projecto fundador. Aquilo que se apresenta é, em larga medida, um sucedâneo comercial: competente, bem oleado, previsível nos seus mecanismos e excessivamente confortável na sua fórmula.

Fabio Porchat, João Vicente de Castro e Gregório.

A história escolhida — uma entre três ‘vidas’ contadas por mulheres propostas ao público — é a de Joana, engenheira e consultora imobiliária, e forneceu matéria-prima suficiente para um jogo cénico com linhas cómicas: os pais que se terão conhecido quando a mãe, ainda casada com o anterior marido, Sebastião, entrou numa agência de viagens; a separação ao fim de cinco anos, motivada pelo vício do jogo do pai José; e, no presente, uma relação amorosa marcada por falhas de comunicação, tropeções emocionais e uma caricatura do namorado que, a existir fora do palco, dificilmente sobreviveria incólume à exposição pública ali feita. A dúvida sobre a veracidade integral da narrativa é, no fundo, irrelevante: no teatro improvisado, a verdade interessa menos do que a sua eficácia dramatúrgica.

O espectáculo acerta quando explora a ambiguidade entre confissão e encenação, entre o relato íntimo e o dispositivo cénico. Há momentos de humor eficaz e alguns rasgos verdadeiramente interessantes de improviso — sobretudo quando os actores se libertam do trilho mais óbvio e arriscam uma deriva menos segura, brincando com as reacções uns dos outros. Aí percebe-se por que razão este grupo conquistou um público fiel: há inteligência, ritmo, cultura pop bem digerida e um faro afinado para o ridículo das relações contemporâneas.

Mas há também longos momentos de fadiga narrativa. A improvisação historicizada exige uma atenção constante que nem sempre é recompensada. O espectador percebe cedo demais os limites do jogo, antecipa os movimentos e adivinha os clímax. O risco passa a ser mínimo e a demasiada fluidez aparenta mesmo ser uma execução de uma partitura invisível, demasiado conhecida por quem a toca e por quem a escuta.

Gustavo Miranda, Fábio Porchat, Joana (‘musa’ do teatro de improviso), João Vicente de Castro, Gregório Duvivier e Andrés Giraldo (acompanhamento musical e sonoplastia).

Há algo de enfadonho na forma como a história de Joana é trabalhada, que se deve também ao improviso, uma vez que não admite interrupções nem bloopers: os conflitos são reconhecíveis, as caricaturas eficazes, mas o conjunto nunca se arrisca verdadeiramente a desmontar o material humano. O namoro disfuncional de Joana surgiu como alvo fácil; a história dos pais, com o seu potencial de ambiguidade moral, resolve-se num tom leve, quase anedótico. Tudo é rapidamente convertido em matéria risível mas nem sempre bem conseguido — o que é, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza do formato.

Comparado com o Porta dos Fundos original, este espectáculo parece mais preocupado em confirmar expectativas do que em as perturbar. Onde antes havia tensão entre humor, desconforto e exposição, há agora fluidez, eficácia e uma certa preguiça criativa disfarçada de espontaneidade. Não se trata de incompetência — muitíssimo longe disso —, mas de uma opção clara por um registo mais comercial, mais seguro, menos exigente para quem cria e para quem assiste.

É certo que o espectáculo funciona. O público ri, reconhece-se, sente-se acompanhado por intérpretes experientes que sabem exactamente quando acelerar, quando prolongar uma situação e quando recolher o riso. Mas essa segurança excessiva é também parte da limitação do objecto. A improvisação, quando demasiado protegida pelo dispositivo, perde a vertigem que a tornaria memorável e transforma-se num exercício de virtuosismo controlado, mais próximo de um produto bem calibrado do que de um verdadeiro acontecimento teatral.

No fim, até porque continuo a ser um fã do Porta dos Fundos, fica uma crítica que é também um reconhecimento: Fabio Porchat, Gregório Duvivier e João Vicente de Castro – aos quais se acrescentam actuais e antigos membros como Antonio Tabet, Clarice Falcão, Júlia Rabello. Letícia Lima, Rafael Infante e Rafael Portugal, entre outros – foram, são e serão extraordinários no sketch curto sem limites e dogmas, no humor de alta rotação, na sátira rápida e incisiva e na capacidade de condensar em poucos minutos uma ideia cómica que outros não conseguem estruturar em meia hora. Também no cinema, quando o formato impõe limites e obriga a escolhas, o colectivo tem mostrado saber conter o seu próprio excesso e transformar talento disperso em objectos coesos, muitas vezes mais interessantes do que a crítica lhes quis reconhecer.

Por isso, este tipo de espectáculo de improviso, como o Portátil, é interessante, sim, mas é sobretudo um derivado, episódico e, aqui e ali, estafado. Funciona como variação lateral de um corpo de trabalho muito mais sólido do que aqui se vê. Diverte, não compromete, não falha — mas também raramente surpreende. É um sucedâneo competente, mas fica aquém daquilo que o Porta dos Fundos já demonstrou saber fazer quando o riso não é apenas imediato, mas pensado, escrito e depurado. E precisamente por esse percurso consistente, nos sketches e no cinema, a exigência aqui se torna maior e a comparação inevitável. A avaliação deste Portátil é, portanto, inflacionada, com o aviso de que este 4 está a anos-luz do 5 que muitos dos seus trabalhos de estúdio justamente alcançam.

Nota final: 4 em 5

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