OPINIÃO DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Psicologia: quando a aldrabice não é julgada dentro da ciência (uma resposta a Miguel Ricou)


Desde que o PÁGINA UM revelou em Novembro que cerca de uma centena de candidatos ao curso de formação de magistrados do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) haviam sido chumbados numa avaliação psicológica inicial — reprovações essas que viriam a ser revertidas, em nove casos em cada dez, por uma segunda avaliação conduzida por outras equipas de psicólogos —, o debate público em torno da Psicologia não seguiu o caminho que a ciência exige. Seguiu, antes, o trilho gasto do corporativismo defensivo, da protecção acrítica de práticas erradas e da recusa em enfrentar dados empíricos incómodos.

Aquilo que estava — e continua — em causa não é a Psicologia enquanto ciência, nem a legitimidade da avaliação psicológica em contextos sensíveis. O que estava em causa era algo muito mais concreto e muito mais grave: a utilização de instrumentos e ferramentas manifestamente desadequados para um universo específico de candidatos — neste caso, candidatos ao curso de magistrados, que já tinham ultrapassado exigentes avaliações de conhecimentos jurídicos e culturais —, com consequências profissionais e pessoais profundas, e que foram depois desmentidos, de forma esmagadora, por uma segunda avaliação técnica, conduzida por outras equipas, com critérios distintos e instrumentos adequados.

Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses. Foto: FMUP.

Perante este facto — a reversão massiva dos chumbos — seria expectável um debate sério, científico, baseado em evidência, sobre a validade dos instrumentos utilizados, com especial destaque para o Personality Assessment Inventory (PAI), a sua adequação ao perfil dos candidatos, a taxa anormal de falsos negativos e os riscos de decisões erradas em processos de elevada responsabilidade institucional. Nada disso aconteceu.

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Em vez disso, assistiu-se a uma sucessão de reacções absurdamente corporativistas que ficam mal em qualquer classe profissional e pior ainda numa organização como a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), porque revelam infantilidade institucional e um comportamento de tribo. Primeiro, surgiu a reacção de um membro do Conselho Jurisdiccional da Ordem dos Psicólogos, Mauro Paulino, que — surpresa das surpresas — acumula essa função com a posição de proprietário da empresa responsável pelos testes iniciais no CEJ. Trata-se de um conflito de interesses óbvio, utilizado para tentar descredibilizar o trabalho jornalístico, recorrendo a um órgão de comunicação social complacente, neste caso o Sol.

Depois, veio a própria bastonária da Ordem, Sofia Ramalho, que, em vez de promover uma reflexão interna séria, preferiu usar o Expresso para contestar indirectamente as notícias do PÁGINA UM (o que mereceu a minha resposta aqui) e a reacção da ministra da Justiça, sem nunca enfrentar o dado central: a reversão esmagadora das reprovações.

Mauro Paulino, membro do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Psicólogos e gerente da empresa Talking About que aplicou, entre outras ferramentas, o Personality Assessment Inventory (PAI) por questões completamente absurdas num contexto de candidatos à magistraturas. Nove em cada 10 chumbos seriam revertidos por uma segunda avaliação por outros peritos.

Agora surge Miguel Ricou — num artigo de opinião no jornal Público sugestivamente intitulado “Quando a avaliação psicológica é julgada fora da ciência” — a erguer um discurso de defesa genérica da Psicologia, como se a crítica a um procedimento concreto fosse um ataque à ciência enquanto tal. E fá-lo com um argumento tão antigo quanto intelectualmente preguiçoso: o do declive fatal. Se alguém “fora da ciência” (leia-se, “fora da sua corporação”) questiona uma avaliação psicológica num contexto judicial, amanhã questionará nas forças de segurança, depois na saúde e assim sucessivamente, até ao colapso civilizacional.

Este raciocínio não é apenas falacioso — é profundamente desonesto, ainda mais lamentável em alguém que integra o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Espera-se que Miguel Ricou, para bem dos seus alunos da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, não confunda deliberadamente ciência com corporação, método com prática, escrutínio com blasfémia. O seu texto é de um corporativismo confrangedor, servindo para blindar procedimentos defeituosos atrás de uma retórica de autoridade e para transformar qualquer crítica informada num atentado ao edifício científico. É o argumento clássico de quem evita responder ao essencial porque prefere dramatizar o acessório.

A Psicologia enquanto ciência não está em causa porque Mauro Paulino introduziu ferramentas de avaliação que erraram em nove em cada dez reprovações. Está em causa, sim, a má Psicologia enquanto prática — e quem a defende. Não se questionou o escrutínio científico; denunciou-se a sua ausência. Não se atacou a avaliação psicológica em abstracto; criticou-se a sua aplicação acrítica, dogmática e tecnicamente errada a um grupo específico de candidatos, em claro desrespeito por décadas de investigação que demonstram que certos instrumentos não são adequados a contextos de selecção altamente especializada, como é o caso do CEJ. Invocar a “defesa da ciência” para proteger procedimentos mal fundamentados não é ciência: é corporativismo com verniz académico.

Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Transformar uma crítica concreta — ainda mais num caso em que, repita-se, houve reversão de nove em cada dez chumbos — num ataque à ciência é uma manobra de distracção. É uma estupidez pegada, que deveria fazer corar Miguel Ricou, que, ainda por cima, assina pomposamente a peça como “Presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses”. Isto é atirar areia para os olhos do público. É refugiar-se numa torre de Babel corporativa, onde qualquer questionamento externo é rotulado como ignorância, populismo ou “analfabetismo científico”.

Miguel Ricou e a própria bastonária da Ordem dos Psicólogos usam uma estratégia de defesa da Psicologia que é, paradoxalmente, a melhor forma de minar a credibilidade da Psicologia.

A ciência, em qualquer área, não se protege com silêncio nem com autoridade invocada. Protege-se com dados, com comparação de resultados, com revisão crítica de métodos e com a humildade de reconhecer erros quando estes são evidentes. Repita-se: quando uma segunda avaliação, feita por outras equipas de psicólogos, reverte nove em cada dez chumbos, o problema não está no “escrutínio mediático”. Está no primeiro processo de avaliação.

Excerto do inquérito PAI usado nas provas psicológicas do CEJ.

Ao optar por não discutir os instrumentos concretos, a sua validade preditiva, a sua adequação ao perfil dos candidatos e a taxa anómala de reprovações, a Ordem dos Psicólogos não está a defender a Psicologia. Está a defendê-la mal. Está a confundir autoridade institucional com infalibilidade científica. E está a contribuir para um descrédito que nasce, não da crítica jornalística, mas da recusa em enfrentar factos.

A Psicologia, enquanto ciência aplicada, tem tudo a ganhar com o escrutínio sério, informado e documentado. Não pode é exigir imunidade à crítica, porque quando uma ordem profissional se fecha sobre si própria, reage em bloco e substitui a análise científica por artigos de opinião indignados, não está a proteger a ciência. Está a fazer-lhe um péssimo serviço. E isso deveria preocupar, antes de mais, os psicólogos — que são muito mais do que o doutor Mauro Paulino, a doutora Sofia Ramalho e o doutor Miguel Ricou.

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