EDITORIAL

Rui Santos Ivo, ou reflexão sobre farmacovigilância e confiança pública


A confiança pública não nasce do silêncio. Nasce do acesso à informação, do escrutínio e da possibilidade de contraditório informado. Sempre que uma instituição pede confiança em troca de opacidade, não está a pedir maturidade cívica; está a pedir resignação. E isso, numa democracia, é um sinal de alarme.

O estudo recentemente publicado na BMC Medicine, co-assinado por John P. A. Ioannidis — o mais conceituado epidemiologista da actualidade — e que o PÁGINA UM noticiou nesta quarta-feira, não denuncia uma conspiração nem aponta dedos a indivíduos. Faz algo muito mais incómodo: demonstra, com método e números, que há informação relevante em matéria de fármacos conhecida pelos reguladores que não chega à literatura científica, mesmo quando essa informação põe em causa a fiabilidade de ensaios clínicos amplamente citados. A ciência publicada, afinal, nem sempre reflecte tudo o que os reguladores sabem.

white and red medication pill on yellow box

Este dado muda o enquadramento do debate público. Porque, se a ciência publicada não é o espelho completo do conhecimento institucional, então o acesso aos dados regulatórios deixa de ser um luxo académico e passa a ser uma exigência democrática.

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É neste contexto que se torna impossível ignorar uma realidade institucional concreta: o actual presidente da Agência Europeia do Medicamento (EMA) é, simultaneamente, o presidente do Infarmed. E é também um facto — reiterado, documentado, contestado — que o Infarmed tem recusado divulgar dados detalhados sobre eventos adversos associados às vacinas contra a covid-19, apesar de uma sentença do Tribunal Administrativo nesse sentido. A manipulação da base de dados, com a retirada de variáveis, está, neste momento, sob nova apreciação judicial, tendo sido pedida a aplicação de sanção pecuniária compulsória, como já ocorreu com o Conselho Superior da Magistratura e com a Administração Central do Sistema de Saúde. O processo do Infarmed está, contudo, desde Julho deste ano a aguardar decisão do tribunal, adiando um desfecho que se iniciou em… 2021.

Estas situações levantam uma questão que já não é técnica, mas política no sentido mais sério do termo: quem vigia a vigilância farmacêutica quando a informação fica concentrada e inacessível?

O estudo de Ioannidis mostra que o sistema regulatório europeu (EMA) detecta problemas que não chegam aos artigos científicos. Não afirma que os medicamentos sejam ineficazes, nem que fármacos — incluindo vacinas — sejam perigosos. Afirma algo mais simples e mais perturbador: há assimetrias de informação que persistem sem correcção automática. E quando essas assimetrias existem, o ónus da transparência não diminui — aumenta.

Ora, se sabemos hoje que os reguladores detêm informação crítica que não é reflectida na literatura; que os artigos científicos continuam a ser apresentados ao público como síntese suficiente do conhecimento; e que os cidadãos são chamados a confiar “na ciência” como argumento de autoridade final, então recusar a divulgação de dados detalhados de farmacovigilância deixa de ser uma decisão neutra. Passa a ser uma escolha com impacto directo na qualidade do debate público e na confiança institucional.

Não se trata de exigir conclusões pré-fabricadas nem de alimentar suspeições fáceis. Trata-se de reconhecer que a transparência não fragiliza a ciência — protege-a. Só sistemas inseguros temem o olhar externo. Só autoridades pouco confiantes confundem escrutínio com desinformação.

Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed e da Agência Europeia do Medicamento.

A acumulação de cargos ao mais alto nível europeu e nacional no sensível área da farmacovigilância não é, por si só, ilegítima. Mas multiplica a responsabilidade. Quando a mesma figura — Rui Santos Ivo — preside (desde Março deste ano) ao regulador nacional e ao europeu, a exigência de abertura não pode ser menor do que seria se as funções estivessem separadas. Tem de ser maior. Muito maior.

A pergunta que se impõe não é agressiva, nem ideológica, nem irresponsável. É simples e cívica: se até os reguladores sabem que nem toda a informação relevante chega à ciência publicada, por que razão se nega ao público o acesso aos dados que permitiriam avaliar essa diferença?

Não basta pedir confiança. É preciso justificá-la todos os dias. A ciência não é um dogma; é um método. E o método vive da exposição aos factos, não da sua ocultação paternalista.

a pile of pills and money sitting on top of a table

O PÁGINA UM não pede segredos industriais, nem dados pessoais identificáveis, nem conclusões alarmistas. Pede aquilo que qualquer sociedade adulta tem o direito de exigir: dados completos, contextualizados e escrutináveis. Só assim a confiança deixa de ser um acto de fé e passa a ser um juízo informado.

Quando a ciência pede silêncio para se proteger, deixa de ser ciência. E quando o regulador pede confiança recusando dados, deixa de ser apenas regulador — passa a ser actor político. E actores políticos, numa democracia, devem responder a perguntas incómodas.

Não por hostilidade, mas por dever cívico.

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