Um caso sem precedentes em Portugal. E sobretudo um caso singular do espinhoso caminho contra a prepotência do poder e contra a falta de transparência. Através de uma sentença inédita de um juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, o presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM) ficou sob alvo de uma sanção pecuniária compulsória se este órgão de cúpula do poder judiciário continuar a recusar ao PÁGINA UM o acesso integral ao inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês. Uma luta judicial que se iniciou em finais de 2021, e que constituiu a sua primeira iniciativa com o apoio do FUNDO JURÍDICO.
Uma sanção pecuniária compulsória é uma multa aplicada como meio de coerção para obrigar alguém, geralmente uma entidade ou autoridade, a cumprir uma obrigação legal ou decisão judicial. O PÁGINA UM consultou vários juristas para saber se são conhecidas sentenças similares contra o CSM, e nenhum tem memória de uma sentença desta natureza contra o órgão de cúpula responsável pela gestão e disciplina dos magistrados judiciais em Portugal.
De acordo com a decisão do juiz Bruno Gomes – que não está sob a alçada do CSM –, a partir do trânsito em julgado da sua sentença do passado dia 13 deste mês, o juiz conselheiro João Cura Mariano – presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que lidera por inerência a cúpula da magistratura – terá de pagar, do seu bolso, uma ‘multa’ de 50 euros por dia se mantiver o incumprimento de uma sentença de 2022 favorável ao PÁGINA UM. Em causa está o acesso integral e sem restrições, requerido no final de 2021, ao inquérito do CSM relativo à distribuição do processo da Operação Marquês.
Apesar de nesse inquérito se ter apurado que não houve sorteio electrónico na entrega do processo ao juiz Carlos Alexandre e que se fez à margem da lei, o CSM manteve o relatório secreto, recusando-o divulgá-lo à comunicação social, apesar de se tratar de documentos administrativos. No início de Janeiro de 2022, o jornal ECO revela a resposta taxativa da CSM: “Sobre o pedido de acesso ao relatório em questão, informa-se que o mesmo não será disponibilizado”.
O PÁGINA UM – que, desde a sua fundação, colocou como ‘bandeiras’ a transparência e o acesso à informação pelos jornalistas – não aceitou esta ilegítima postura do CSM, ademais tratando-se da cúpula da magistratura, a saber: o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, dois membros designados pelo Presidente da República, sete membros eleitos pela Assembleia da República, por sete membros eleitos por Magistrados Judiciais, dois juízes dos Tribunais da Relação e quatro juízes de Direito.
Após um requerimento inicial do PÁGINA UM ainda em 2021, o CSM exigiu o impensável numa democracia que constitucionalmente deveria preservar a liberdade de imprensa: saber “qual a finalidade do acesso e da recolha” dos documentos solicitados. O PÁGINA UM insistiu que a lei não determinava tal obrigatoriedade, muito menos a jornalistas, e assim, num parecer, a juíza Ana Sofia Wengovorius – curiosamente, filha de um advogado do Sindicato dos Jornalistas durante duas décadas, entre 1970 e 1991 – considerou que os documentos do CSM estavam acima de meros documentos administrativos.
E começava aqui a estranha interpretação da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) por parte do CSM. A mesma juíza, num segundo parecer, em finais de Dezembro de 2021, considerava que “o acesso e/ou recolha solicitado só é lícito se forem recolhidos apenas os dados estritamente necessários para uma finalidade reconhecida por Lei que o legitime, pelo que só conhecendo a finalidade se pode fazer a ponderação que a lei impõe”, acrescentando que “dentro das condicionantes próprias do procedimento em causa que é confidencial o requerente deve esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos ou se pretende a decisão final”. E de forma paternalista concluía a juíza do CSM: “Mais sugiro que seja remetida cópia do anterior parecer emitido para melhor compreensão”.
Passaram mais de três anos desde este parecer desta juíza e aquilo que se pode concluir é que quem precisava de uma melhor compreensão da lei e sobretudo da convivência democrática era o CSM. Mas não era preciso tanto tempo. Logo no início de 2022, o PÁGINA UM recorreu então à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), então presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, que viria considerar que o acesso era devido, através de um parecer de meados de Fevereiro desse ano.
Mas nem assim o CSM se disponibilizou a ceder os documentos do inquérito, advogando que o parecer da CADA não era vinculativo, acabando mesmo por “convidar” o PÁGINA UM a ‘usar’, com custos e tempo, o Tribunal Administrativo de Lisboa.
O órgão superior de gestão e disciplina dos juízes dos tribunais judiciais portugueses considerou então, através da também juíza Ana Cristina Chambel Matias que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não invocou, nem demonstrou que o acesso aos documentos constantes do processo de averiguações em causa são necessários para a tutela de um qualquer seu direito ou interesse legalmente protegido para que lhe seja conferido o direito a esse acesso”, acrescentando que “apesar de notificado por mais de uma vez pelo CSM, não concretizou cabalmente os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e não esclareceu qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos”.
A prepotência do CSM mantinha-se.
E a inflexibilidade do PÁGINA UM também. E iniciou-se então uma verdadeira luta judicial entre David e Golias. Em sede da intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – naquele que viria a ser o primeiro processo judicial do PÁGINA UM financiado pelos seus leitores através do FUNDO JURÍDICO. Em sede de contestação, o CSM insistiu na tese da existência de “dados nominativos” no relatório do inquérito. Porém, em vez de acreditar piamente no CSM, o juiz Pedro Almeida Moreira exigiu que lhe fosse enviado “em envelope selado, cópia dos documentos a que o Requerente [director do PÁGINA UM] pretende aceder, de molde a permitir a este Tribunal aquilatar se os mesmos contêm ou não ‘múltiplos dados pessoais’ e, ‘se a isso se chegar, tecer um juízo de proporcionalidade concernente aos interesses que aqui se encontram concretamente em jogo’”.
Em 30 de Junho de 2022, a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa deveria ter sido o tira-teimas. acabou assim por comprovar que o CSM, desde o início, estava a alegar com argumentos muito distantes da verdade factual. Na sua sentença, o juiz Pedro Almeida Moreira teceu mesmo duras críticas às alegações do CSM, considerando que “a vingar a interpretação que aqui é propugnada pelo Requerido [CSM], isso significaria que o mero nome de um funcionário público que tenha intervindo num qualquer procedimento administrativo apenas poderia ser tornado acessível aos interessados após a ponderação dos interesses em jogo no âmbito de um juízo de proporcionalidade, o que não se mostra aceitável em face das exigências de transparência que impendem sobre a Administração, nos termos constitucional e infraconstitucionalmente consagrados.”
E concluía: “Não perscrutando este Tribunal motivos plausíveis para se afastar da regra geral de livre acesso dos interessados a documentos administrativos nos termos acabados de expender, e nada mais vindo invocado pelo Requerido, não lhe restam alternativas que não concluir pela procedência da presente intimação, o que se julga de seguida, sem necessidade de maiores desenvolvimentos”. A sentença deveria ter sido cumprida no prazo de 10 dias.
Já com duas ‘derrotas’ – CADA e Tribunal Administrativo de Lisboa –, o CSM quis arriscar ter uma terceira, até porque as taxas de justiça e os custos de patrocínio não lhe pesam. E recorreram, para assim adiar a sentença, e conseguiram… perder uma terceira vez, desta vez no Tribunal Central Administrativo do Sul.
O acórdão demorou sete meses, mas veio demolidor, mais uma vez, para o CSM. Votado por unanimidade pelos desembargadores Lina Costa (que foi a relatora), Catarina Vasconcelos e Rui Pereira, este acórdão arrasou em toda a linha a argumentação que o CSM usou para evitar o acesso ao inquérito.
Para os desembargadores, a sentença inicial do juiz Pedro Almeida Moreira seria para manter em toda a linha, concluindo não haver qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.
O acórdão mostrava-se, aliás, particularmente importante por clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo em muitos outros processos de intimação protagonizados pelo PÁGINA UM.
Nessa linha, os desembargadores salientaram que “essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo Recorrente [CSM], enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”. E sabendo-se que o relatório da inspecção não tinha esse tipo de dados, o CSM deveria ter permitido logo o acesso.
Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”
Os desembargadores concluíram ainda que o CSM não poderia ter decidido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos], até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”
Numa situação ‘normal’, num Estado de Direito e de respeitos pelos princípios da liberdade de imprensa, o CSM deveria ter, enfim, dar-se por convencido, mesmo que não se quisesse dar por vencido.
E aparentou ir abrir mão dos documentos, quando, em finais de Julho de 2023, agendaram-se as visitas de consulta dos documentos. Porém, o CSM começou por impor um pagamento de taxas exorbitantes em caso de se solicitar fotocópias. E no dia da consulta, pouco depois se o PÁGINA UM ter começado a fotografar as páginas dos dossiers do processo, foi proibida por ordem expressa da juíza secretária do CSM. Além disso, quis que as fotocópias fossem expurgadas de determinadas partes, o que contrariava a sentença. Dois requerimentos do PÁGINA UM não demoveram o CSM, que se achou de criar regras próprias em vez de seguir regras legais. E, mais uma vez, só restou ao PÁGINA UM socorrer-se novamente do Tribunal Administrativo.
Nesta fase, o processo tornou-se ainda mais kafkiano. Apesar da intimação do PÁGINA UM para a execução da sentença ter entrado no Tribunal Administrativo de Lisboa em Outubro de 2023, durante praticamente um ano esteve absurdamente parado. Uma das razões foi ter a jurista do CSM responsável do processo saiu, tendo só sido substituída largos meses depois. O juiz acabou por aceitar renovar a notificação.
Seja como for, mais de 37 meses depois de ter sido feito o requerimento inicial, o juiz Bruno Gomes foi peremptório na sua sentença ao conceder razão ao PÁGINA UM para aceder e também fotografar integralmente os documentos em posse do CSM por este ser um método previsto na lei, “equivalente ao envio por correio elecrónico”, ao qual, saliente-se, “não é devida qualquer taxa”. E disse ainda que não acolhe a posição do CSM de que a obtenção se faz “através de um único exemplar, sujeito a pagamento, pelo requerente, da taxa fixada”.
Além disto, a sentença diz ainda que, sendo certo que “perpassa ao longo dos requerimentos” que o PÁGINA UM pretendia aceder aos “documentos através de reprodução por registo fotográfico, de modo a evitar os custos inerentes à reprodução por fotocópia”, mesmo que fossem requeridas fotocópias, estas teriam de ser entregues em “termos rigorosamente correspondentes ao do conteúdo do registo”. Ou seja, sem qualquer mutilação.
Saliente-se que, em Agosto de 2023, o CSM chegou a disponibilizar ao PÁGINA UM diversas fotocópias completamente mutiladas, apagando assim os nomes dos intervenientes no processo disciplinar, a descrição dos eventos, o número do processo, a data da distribuição e o nome do escrivão que interveio do processo.
Apesar desta evidente e histórica vitória do PÁGINA UM, e apesar da necessidade de duas sentenças e um acórdão – e de mais de três anos de luta em tribunal –, o juiz Bruno Gomes considerou que o CSM não foi litigante de má-fé. Certo é que somente por esta derradeira luta para conseguir fotografar os documentos, o PÁGINA UM vai ter de despender mais cerca de 300 euros em custas. Tudo o processo, em taxas judiciais, envolveu mais de um milhar de euros.
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