CÚPULA JUDICIAL RASURA ACTAS DE FORMA SELECTIVA

Direito à informação: Juiz em início de carreira quis fazer ‘jeitinho’ ao Conselho Superior da Magistratura, mas três desembargadoras não deixaram

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Pedro Almeida Vieira|03/10/2025

Um juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, nomeado a título definitivo há apenas um ano, quis criar uma “regra especial” para o Conselho Superior da Magistratura (CSM), defendendo que este órgão não teria de cumprir a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA).

No entanto, os seus “superiores” — leia-se, três desembargadoras da Secção Administrativa Comum do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) — revogaram por unanimidade a decisão, através de um curto mas demolidor acórdão, considerando que o juiz confundiu conceitos jurídicos e aplicou uma norma errada, afastando-se injustificadamente de jurisprudência consolidada sobre o direito de acesso à informação administrativa.

Em causa estava um pedido do PÁGINA UM para acesso às actas e deliberações originais e integrais do Conselho Permanente e do Conselho Plenário do CSM, relativas aos anos de 2023 e 2024. Embora essas actas esteja disponível no site da cúpula da Magistratura Judicial, o órgão opta por rasurar nomes e dados processuais sempre que as classificações de juízes são medíocres ou envolvem matéria que eles considerem discricionariamente sensível, mesmo se relativas a processos judiciais que interessariam às partes.

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Porém, o CSM divulga, sem pudor, os nomes daqueles que obtêm avaliações excelentes. Ou seja, as reasuras nada têm a ver com alegada protecção de dados pessoais, tanto mais que esse preceito nem se aplica quando estão em causa actividades públicas.

Foi precisamente devido a estas rasuras selectivas que o PÁGINA UM requereu ao CSM em Fevereiro passado o acesso às actas integrais, devidamente assinadas, das reuniões ordinárias e extraordinárias, tanto das secções de assuntos gerais e disciplinares como das plenárias.

Exemplo de uma acta com inúmeras rasuras (sobretudo com X) onde abundam exemplos de rasuras arbitrárias.

O CSM — como já havia feito noutra ocasião — negou o pedido do PÁGINA UM com base num parecer da sua encarregada de protecção de dados, o que levou o jornal a apresentar uma intimação ao Tribunal Administrativo em Março passado, repetindo, aliás, o que já ocorrera anteriormente noutros processos semelhantes.

Contudo, de forma insólita, a sentença proferida em primeira instância, no passado mês de Maio, pelo juiz Paulo Ricardo Varela Sezefredo, concluiu pela “incompetência material” dos tribunais administrativos para apreciar o caso. O magistrado sustentou que os actos praticados pelo CSM estariam excluídos da jurisdição administrativa, por força do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

Segundo a sua interpretação, o pedido do PÁGINA UM dizia respeito a “actos materialmente administrativos praticados pelo CSM e seu Presidente” e, como tal, apenas o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) poderia decidir. Ou seja, este juiz considerava que seria o Supremo Tribunal de Justiça, liderado por Cura Mariano, a decidir se a recusa no acesso a actas por parte do Conselho Superior da Magistratura, também liderado por Cura Mariano, era legal. A ser possível, não se consegue encontrar melhor exemplo de ‘juiz em causa própria’ numa situação de acesso à informação.

João Cunha Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça é, por inerência, presidente do Conselho Superior da Magistratura. O juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa Paulo Varela Sezefredo queria que fosse o Supremo Tribunal de Justiça a decidir se a recusa no acesso a actas por parte do Conselho Superior da Magistratura era legal.

Em suma, Varela Sezefredo equiparou qualquer acto administrativo — incluindo o pedido de informação — a uma decisão jurisdicional. Na sua interpretação, o PÁGINA UM teria de recorrer de uma decisão do Presidente do CSM para o Supremo Tribunal de Justiça, que é… presidido pelo mesmo Presidente do CSM.

Agora, em acórdão datado de 25 de Setembro, a decisão foi considerada “manifestamente errada” por um colectivo de três desembargadoras — Joana Costa e Nora, Marta Cavaleira e Ana Lameira — que concluíram que o juiz confundiu duas realidades jurídicas distintas: o pedido de acesso a documentos (que visa garantir o direito à informação) e a impugnação de um acto administrativo.

“A intimação para a prestação de informações (…) é o meio processual próprio para reagir contra qualquer forma de recusa de informação”, escreveram as magistradas, frisando que a exclusão do CSM prevista no ETAF não se aplica a pedidos de acesso a documentos administrativos apresentados por cidadãos ou jornalistas.

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A decisão do TCAS é particularmente relevante porque confirma a competência dos tribunais administrativos para julgar litígios relacionados com o direito de acesso à informação pública, incluindo quando envolvem órgãos de soberania como o CSM ou o STJ.

Aliás, já existiam decisões anteriores — tanto do Tribunal Administrativo de Lisboa como do próprio TCAS — que obrigaram o STJ a divulgar documentos administrativos. Chegou mesmo a haver uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que impôs uma sanção pecuniária compulsória ao Presidente do STJ por incumprimento de uma decisão judicial sobre o acesso ao inquérito da distribuição do processo Marquês. E o presidente Cura Mariano viu-se na obrigação de acatar para não lhe ‘irem ao bolso’, uma vez que estas multas são aplicadas aos titulares e não às entidades.

A posição assumida por Paulo Varela Sezefredo destoava, assim, frontalmente da jurisprudência anterior. Este juiz, que apenas se tornou efectivo em 2024, passou grande parte da sua carreira como jurista no Exército Português, tendo concluído um mestrado em Direito há pouco mais de cinco anos sob a orientação do professor Domingos Farinho, docente da Faculdade de Direito de Lisboa, acusado de ter sido o redactor (“ghost writer”) da tese de José Sócrates, num processo que terminou com a suspensão provisória e o pagamento de 10 mil euros.

Na sentença agora revogada, Varela Sezefredo chegou a defender que o PÁGINA UM deveria ter apresentado a intimação directamente no Supremo Tribunal de Justiça, invocando a “especialidade” do CSM — um argumento considerado sem sentido pelos desembargadores. Além disso, de forma pouco habitual, dispensou o contraditório, apesar de o CSM nem sequer ter respondido ao tribunal, o que é obrigatório. Alegou “manifesto desinteresse e inutilidade”.

A decisão agora revogada pelo TCAS determina o regresso do processo ao tribunal de origem para ser devidamente apreciado. Ou seja, apesar da sentença obtusa que obrigou a um recurso — com perda de tempo e recursos para corrigir um erro elementar — será o mesmo juiz Paulo Varela Sezefredo a ter de reapreciar o caso. Se voltar a decidir contra o PÁGINA UM, o jornal terá de recorrer novamente para o tribunal superior, embora, nesse caso, ser ‘reprovado’ duas vezes no mesmo processo pode ser visto como uma situação anómala para efeitos da sua classificação.

N.D. Os processos do PÁGINA UM nos tribunais são apoiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO.

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