AFINAL, PERGUNTAR (PARA O REGULADOR DOS MEDIA) OFENDE
Questões a Gouveia e Melo: ERC acusa Sandra Felgueiras de promover estigmatização e discriminação

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) acusa a reconhecida jornalista Sandra Felgueiras de ter feito perguntas “susceptíveis de favorecer juízos estigmatizantes e discriminatórios relativamente a alguns grupos sociais” durante a entrevista na TVI e CNN Portugal realizada ao almirante Henrique Gouveia e Melo no início de Junho.
A deliberação hoje divulgada, mas aprovada a 29 de Outubro, reacende o debate sobre os limites da intervenção do regulador, que tem querido imiscuir-se até na condução e no estilo jornalístico, mesmo em entrevistas políticas. Recorde-se que, em Agosto do ano passado, o regulador agora liderado por Helena Sousa – uma ex-jornalista do Jornal de Notícias sem passado relevante, actualmente professora e investigadora na área dos media na Universidade do Minho – já tinha dado dois ‘puxões de orelhas’ a José Rodrigues dos Santos nos últimos dois anos.

No caso da entrevista de Sandra Felgueiras ao antigo chefe do Estado-Maior da Armada, então recém-declarado candidato presidencial, a ERC não apreciou algumas perguntas. Por exemplo, a jornalista questionou Gouveia e Melo sobre a eventual ligação entre imigração e criminalidade, evocando “episódios como os do Martim Moniz” e referindo “comunidades culturalmente diferentes, como a indiana e a paquistanesa”. A ERC entendeu que essas formulações “carecem de sustentação factual” e podem “contribuir para a formação de juízos discriminatórios”. Também foi considerada problemática uma outra questão em que a jornalista da TVI e da CNN Portugal caracterizou as aulas de Cidadania como “tão polémicas hoje em dia pelo pendor ideológico que têm vindo a assumir”. ↓
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Embora o regulador reconheça que o entrevistado teve oportunidade para “desconstruir as perguntas e afirmar com clareza a sua perspetiva” – o que não deixa de ser uma análise absurda num contexto de entrevista, porque o entrevistador não está a expor necessariamente os seus pontos de vista –, nesta polémica deliberação a ERC entende que a TVI e a CNN Portugal, através de perguntas de Sandra Felgueiras, se afastaram dos deveres de rigor e isenção previstos na Lei da Televisão e no Estatuto do Jornalista. Na parte final da decisão, a ERC até chega a instar a TVI e a CNN Portugal a assegurarem “o pluralismo, o rigor e a isenção”, bem como a respeitarem e assegurarem “uma cultura de tolerância, não discriminação e inclusão”. Ou seja, assume que Sandra Felgueiras, com perguntas, desrespeitou tudo isto.
A ERC também ignorou os argumentos de defesa do director de informação da TVI e da CNN Portugal, Nuno Santos, que defendeu que a entrevista a Gouveia e Melo se inscrevia na mais pura tradição de escrutínio político e que Sandra Felgueiras “utilizou, de acordo com o seu estilo próprio, os recursos de linguagem e argumentação necessários para obter respostas esclarecedoras”. Argumentou ainda que “não houve qualquer incitação à violência ou ao ódio” e que as questões visavam apenas “impedir respostas ensaiadas ou inconclusivas”.

Esta deliberação da ERC é mais uma de uma longa série de intervenções polémicas do Conselho Regulador sobre entrevistas televisivas, onde o regulador se substitui à crítica pública e entra na apreciação do estilo e da formulação das perguntas. Os precedentes mais notórios ocorreram com José Rodrigues dos Santos, alvo de deliberações semelhantes após entrevistas a Marta Temido, no ano passado, e ao líder do PCP, Paulo Raimundo, em Março passado — casos em que a ERC também censuraram o tom e o estilo do jornalista da RTP.
Nos últimos meses têm-se sucedido decisões do regulador vistas como uma tentativa de normatizar a retórica jornalística, impondo uma espécie de “código de conduta de tom”, em que a fronteira entre a ética e o controlo da linguagem se torna difusa. Neste novo episódio, o órgão presidido por Helena Sousa e composto por Pedro Correia Gonçalves, Telmo Gonçalves, Carla Martins e Rita Rola reconhece que a entrevista contribuiu para o pluralismo e a liberdade de expressão — mas, paradoxalmente, mantém uma censura parcial à conduta da jornalista, sublinhando que “algumas perguntas carecem de sustentação factual”.
Esta deliberação do regulador dos media, mesmo sendo juridicamente inócua – não pode sequer ser contestada em tribunal administrativo –, acaba por ser politicamente significativa, porque os visados ficam com um trunfo que mancha a reputação dos jornalistas. Aliás, a ERC tem usado as deliberações para, por exemplo, menorizar diversas investigações do PÁGINA UM, não por quaisquer erros, mas por questões de estilo de escrita ou, por vezes, excedendo as suas competências (quando, por exemplo, questiona o rigor científico sem possuir técnicos dessa área).

Em suma, no caso das entrevistas, há também uma questão fundamental: quem deve definir os limites da interrogação jornalística — o entrevistador, o público ou o Estado? Ao sugerir que certas perguntas “favorecem juízos estigmatizantes”, a ERC entra num terreno escorregadio, onde a interpretação política das palavras ameaça sobrepor-se à liberdade de expressão.
Num país que se orgulha de ter uma comunicação social livre, a deliberação contra Sandra Felgueiras surge, assim, como mais um capítulo na história recente da regulação paternalista da ERC, que ora reprime o sarcasmo de José Rodrigues dos Santos, ora julga o estilo combativo de uma entrevista presidencial. E levanta, de novo, uma questão central: numa democracia, até que ponto pode o regulador tutelar até a forma como um jornalista faz perguntas?