EDITORIAL
A matilha (e as 117 páginas)
Por vezes, a crítica deixa de ser um exercício de escrutínio público para se transformar num ritual de caça. Não porque os factos possam ser desmentidos, mas porque tocam nervos expostos, vaidades profissionais e corporações habituadas a não serem contrariadas. Tem sido isto que se seguiu às revelações do PÁGINA UM sobre os inquéritos psicométricos aplicados a candidatos ao Centro de Estudos Judiciários: um ataque em matilha, ruidoso, pouco elegante e intelectualmente indigente.
O cerne do problema nunca foi um detalhe pitoresco, até pelas reacções da ministra da Saúde, embora seja impossível ignorar o carácter grotesco de algumas perguntas feitas a futuros magistrados — entre elas, uma sobre se sofriam de diarreia, que nem sequer figurava entre as mais escatológicas no sentido estritamente fecal do termo. O problema é outro e bem mais sério: a utilização de instrumentos manifestamente inadequados, sem validação conhecida para aquele contexto, capazes de decidir o futuro profissional de pessoas que se candidatam a julgar os outros em nome do Estado.

O resultado foi um desastre. Nove em cada dez chumbos aplicados pela empresa de Mauro Paulino foram revertidos numa segunda avaliação, realizada por outros psicólogos. Se isto não fosse matéria de enorme gravidade institucional, seria apenas anedótico. Felizmente para os candidatos — e para o próprio sistema judicial —, houve uma segunda avaliação. Caso contrário, estaríamos perante um escândalo silencioso, daqueles que só mais tarde se descobrem, quando já nada há a fazer. ↓
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Perante este falhanço, seria razoável esperar pudor, reflexão, talvez até um pedido de desculpas. Mas não. Houve sim um exercício clássico de corporativismo defensivo.
Soube hoje que o gerente da empresa responsável pelas avaliações, a Thinking About, não só não assumiu o erro como passou ao ataque. O psicólogo (e comentador da SIC) Mauro Paulino apresentou uma extensa queixa à ERC e, não satisfeito, arregimentou mais 19 pessoas para o mesmo efeito, muitas delas anónimas, numa tentativa transparente de criar volume onde não há razão, barulho onde não há argumento.

A este coro juntaram-se já figuras que deveriam saber fazedr melhor. A bastonária da Ordem dos Psicólogos, Sofia Ramalho, preferiu alinhar numa defesa corporativa acrítica, ignorando a evidência empírica do falhanço. Um professor universitário, Miguel Ricou, investido do argumento de autoridade, decidiu pronunciar-se publicamente, perdendo uma excelente oportunidade de ficar calado e, assim, não se assumir como ridículo. Quando a academia abdica do rigor para proteger os seus, deixa de ser academia e passa a ser claque.
O comportamento de Mauro Paulino revela um traço que, a esta altura, parece estrutural: uma extraordinária cara de pau. Em vez de explicar os critérios que levaram à escolha da sua empresa pelo anterior director do CEJ — critérios que continuam por esclarecer —, optou pela estratégia do cerco administrativo.
Vinte queixas, num processo administrativo do regulador com 117 páginas, um alvo, uma tentativa de intimidação por exaustão. A ERC, sem sequer indicar onde eventualmente possa eu ter errado, achou adequado conceder-me dez dias para responder a vinte participações.

Nem um demoro: respondi hoje mesmo à senhora presidente do Conselho Regulador que não tenho tempo para palermices. O meu tempo é demasiado útil para ser gasto a defender-me para, no fim, receber bitaites da ERC sem noção travestidos de deliberação regulatória.
Convém ser claro: o PÁGINA UM não atacou pessoas; expôs factos. Não inventou perguntas; publicou-as. Não fabricou chumbos; contou-os. E não criou a reversão; limitou-se a noticiá-la. Quem se sente incomodado com isto não está zangado com o jornalismo, está zangado com a realidade.
Quanto a Mauro Paulino, tudo o que tenho vindo a conhecer não me autoriza a considerá-lo um grande psicólogo. Mas o seu comportamento, esse sim, daria um grande case study. Talvez não tanto para a Psicologia — porque o seu mal não me parece reversível por essa via —, mas certamente para a Psiquiatria, que possuí terapias químicas eventualmente mais adequadas.

E é aqui que a ironia se fecha: quem se arrogou o poder de avaliar a aptidão mental de futuros juízes acabou por oferecer, sem o querer, um retrato clínico de si próprio.
Enfim, a matilha ladra, mas os factos continuam de pé. E é com eles — não com queixas em barda, nem com solidariedades corporativas — que o jornalismo sério continuará a trabalhar.
