– Não tenho biografia.
– Fique tranquilo. Aqui são comuns declarações como esta. Com o choque, os pacientes se perdem de si mesmos.
A doutora Adriana Kreuzfeuer era a bem-aventurada possuidora de um belíssimo rosto – delicadas sobrancelhas assimétricas, olhos azuis, narizinho empinado e boca esfaimada – coroado por uma encaracolada cabeleira loira herdada de avós imigrantes, a saber: o falecido Helmuth Schatsschneider Kreuzfeuer, construtor de chaminés de tijolos vermelhos para fábricas, e a nonagenária Ângela, em solteira Backheuser Stumpfsinn.
– Por que o senhor não me conta um pouco da sua vida?
– Porque o meu corpo foi tomado por alguém. E esse alguém não tem memória da minha vida anterior. Ou seja, esse alguém não pode – e eu também não posso – falar sobre o que aconteceu há, digamos, dois dias.
– Sei. É como se a mente do senhor tivesse sido tomada por um alienígena.
– Não. O caso não é tão moderno. Fui ocupado por um espírito, um velho espírito.
A doutora anotava no computador, batucando com dedos espertos, tudo o que o homem lhe dizia.
– Compreendo. O senhor é espírita?
– Agora, sou agnóstico. Antes, não sei. Mas certamente não tinha uma fé muito profunda. Talvez por isso o tal espírito apoderou-se tão facilmente do meu eu anterior. Minha alma estava disponível.
A bela Adriana Kreuzfeuer esboçou um rápido riso, divertido e intrigado, riso de psiquiatra que se descobre, por fim, diante de um lunático engraçado.
– O que sabe o senhor sobre o, vá lá, espírito que está de posse de sua alma?
O homem alto e magro movimentou-se inquieto na cadeira. Defensivamente, cruzou diante do peito os longos braços guarnecidos por mãos ossudas. Seu rosto comprido, atapetado por uma barba mais branca que cinzenta, aparada recentemente por máquina ajustada para dentes de número três, era o de alguém verdadeiramente angustiado.
A psiquiatra refez a pergunta:
– O senhor conhece a identidade desse espírito que se apossou da sua alma?
– Sim. Conheço-lhe o nome, as datas de nascimento e morte. E, por alto, alguns fatos importantes de sua vida na terra.
– Oh, isso é maravilhoso!
A expressão do rosto da médica não acompanhou o entusiasmo exclamativo da frase. Era uma médica, uma cientista, e não estava ali para maravilhar-se. O que se podia dizer dela, sem conotação positiva ou negativa, é que era uma mulher nervosa, agitada, apressada, consciente de que, ao longo daquele dia, teria de enfrentar ainda muitos outros contadores de histórias desencontradas.
– Me passe as datas de nascimento e morte do falecido?
– 1860 e 1902.
– Profissão?
– Médico.
Por baixo das sobrancelhas bem-cuidadas, um rápido e penetrante olhar azul-piscina partiu em direção ao homem alto e magro. Com os dedos levitando sobre o teclado, a médica parecia questionar-se. Debochando da minha cara?
Pousou as mãos ao lado do teclado e suspirou. Não, não, aquele era apenas um mais pobre homem desnorteado, acachapado por uma tragédia pessoal que não conseguia compreender, aceitar e superar.
– Especialidade do seu médico?
– Clínico geral. Ele não defendeu sua tese de mestrado. Eu, aliás, ele, nós chegamos a fazer uma viagem à ilha de Sacalina…
– Ele morreu bastante jovem. De quê?
– Tuberculose.
– Qual era o seu nome, o nome dele, do médico?
– Anton.
– Devo concluir que não era brasileiro.
– Não. Era russo.
– Russo?
Bruscamente, a médica afastou o teclado com os polegares e ergueu os olhos diretamente para a lâmpada que estava sobre sua cabeça. E, congelada nessa incômoda postura, suspirou profundamente. Parecia descontente com a quantidade de luz emitida pela lâmpada. Talvez pensasse em processar o fabricante. Ao cabo de um demorado minuto, ela voltou os olhos celestiais para o paciente.
– O senhor fala russo? Poderia me dizer umas três ou quatro palavras nessa língua?
– Não. Claro que não. Sou um homem traduzido.
Aquela última frase foi demasiada para a doutora Adriana. Ela imobilizou-se com os dedos abertos, a cabeça baixa, os olhos aparentemente procurando uma letra que não havia sido posta no teclado. Racionava. Seu pensamento talvez possa ser sintetizado por uma frase indelicada: esse maluco é de tirar qualquer um do sério.
– Me dê mais informações sobre o médico russo.
– Nasceu em uma cidade balneária, no mar Negro, a mil quilômetros de Moscou.
A médica reproduziu num batuque ligeiro o que ele havia dito e quis mais:
– Fale da família dele?
– Éramos seis irmãos. Eu, Anton, tinha o dom de imitar. Todos riam das imitações que eu, ele, fazia dos mujiques, dos cocheiros, dos professores e dos funcionários públicos. O pai deles, o nosso pai, comerciante, adorava música. Treinava-nos para que cantássemos no coral da igreja. Depois de falir, papai, quero dizer, esse chefe de família foi para Moscou. Após concluir o ensino médio, eu segui também para lá. Ingressei na faculdade de Medicina. Como tinha grande habilidade com as palavras, como sabia tecer histórias, comecei então a escrever contos humorísticos para jornais e revistas populares. Logo ele, eu, estava sustentando a família com o que recebia pelos textos.
– Bela história. Edificante. Mas, voltando ao nosso caso concreto, o senhor sente que é, verdadeiramente, esse escritor russo de contos de humor ou o senhor sabe que é apenas o corpo de um cidadão brasileiro dominado pela mente de um contista estrangeiro?
O homem descarnado demorou a responder.
– Sinceramente, eu não saberia lhe responder. As duas situações são igualmente plausíveis. Talvez até mesmo possam ocorrer simultaneamente. Neste exato momento, porém, sinto mais forte a impressão de que sou um pobre corpo ocupado. Mas, é claro, sei também que sou escritor e que escrevo em russo. Tentarei me explicar: o corpo é meu e meus movimentos são orquestrados pelo meu cérebro, no entanto, no fundo, sinto que as minhas palavras não são propriamente minhas. Elas pertencem a Anton. Por isso, se, por acaso, lhe disser algo que possa parecer zombeteiro, não se irrite, fique certa de que essas palavras me foram sopradas por ele.
Os dedos da mulher corriam céleres, entusiasmados, por cima das teclas, perseguindo as palavras que o homem barbado pronunciava.
– Nunca vi alguém descrever com tal riqueza de detalhes a sua…
– Loucura, doutora?
– Talvez. Mas, se for, será passageira. O senhor sairá dessa logo, eu lhe garanto. O senhor vai se livrar de Anton. Mas, agora, me explique uma coisinha. Como o senhor sente a presença dele, do russo?
– É como ele fosse uma segunda pele, uma pele que está por baixo da minha pele, da verdadeira. O corpo físico de Anton se resume a essa pele. Ele não tem ossos ou carne. Porém meu cérebro pertence a ele, inteiramente.
– Tenho uma curiosidade. O senhor me disse que ele, o russo, escrevia historinhas engraçadas. Quando ele pensa em algo divertido, o senhor dá uma gargalhada?
– Não. No máximo, eu sorrio.
– Quantos anos ele tem hoje?
– Quarenta. Devo morrer em breve.
Nessa passagem, pela primeira vez, o homem ergueu os olhos e os fixou na médica. Encarando-a, parecia esperar um desmentido porque era claro, pelos cabelos, barba e bigode quase totalmente brancos, que ele era já um sexagenário.
– O que eu quero é que me explique como ele, sendo russo, um russo que certamente não conhece o português, consegue se expressar através do senhor.
– Ele manipula minhas cordas vocais. É com surpresa e estupefação que percebo as frases que me escapam por entre os lábios. As palavras, obviamente, saem em russo do cérebro dele, mas ao chegarem às minhas cordas vocais automaticamente transformam-se em vocábulos portugueses. Há um programa de tradução instantânea no meu aparelho fonador.
Depois de anotar aquela resposta, a psiquiatra voltou seus inquisidores olhos azuis para os negros olhos sonhadores do homem.
– Como ele, o russo, consegue entender as minhas perguntas?
– Há um segundo aparelhinho de tradução simultânea, instalado nos meus ouvidos. É semelhante ao que se encontra nas minhas cordas vocais, mas de funcionamento inverso.
– Ótimo, ótimo, o senhor até aqui respondeu bem às minhas perguntas, mas agora eu preciso me aproximar da raiz mais profunda da questão… Então, indago: o senhor Anton se metia com política?
– De jeito nenhum. Sou apartidário, apolítico. Digamos que sou alguém que só defende um valor: a liberdade. Libertários conscientes como eu não podem pertencer a igrejas, partidos ou qualquer outra agremiação.
– E com mulheres?
É importante, nesse ponto, termos em mente que o sobrenome da médica, em alemão, significa cruz de fogo.
O homem abriu lentamente os braços, como que para ser crucificado. Suas orelhas de abano e bochechas chupadas foram tomadas por uma constrangedora vermelhidão. Era como se ele tivesse recebido um sopro de fornalha na face. Fechou os braços, brusco. Anton quis responder rapidamente, para livrar-se daquela pergunta indecente, mas não conseguiu articular uma só palavra.
– Esse é o ponto central – prosseguiu a médica, e o homem imaginou ver grossos fiapos de uma gosma esverdeada de concupiscência escorrendo pela comissura dos lábios dela. – É sempre ele, sexo. O nosso obscuro lado animal. O acasalamento. Reprodução ou prazer? Não importa, sempre acaba mal… Enfim, em português, me responda: o doutor Anton comparecia?
O homem enterrou-se na cadeira. Que grosseria! Comparecia? Era termo aceitável em uma consulta médica?
Anton quis falar, demonstrar sua muita indignação. Comparecia? Era totalmente inadequado utilizar uma expressão tão rasteira em uma conversação com um escritor russo. Por que a doutora não usava a delicada expressão bíblica: conhecer?
– O ponto nevrálgico é sempre o aparelho genital, a genitália – silvou a psiquiatra. – Mais adiante nos concentraremos nele.
Adriana Kreuzfeuer encerrou a consulta fechando os olhos e trançando os dedos das mãos sobre o teclado, sinalizando claramente ao paciente que sequer lhe daria um rápido aperto de mão.
O homem alto e magro de tristonhos olhos negros concluiu que a doutora Adriana talvez estivesse muito cansada. Ou com vontade de fazer algo muito excitante. Retirar o esmalte lascado das unhas, por exemplo.
Ainda de olhos cerrados, a psiquiatra soltou um jato de ar fazendo biquinho com os grossos lábios sensuais e lascou na linguagem dos homens das cavernas:
– See you later.
Quando levou o tronco à frente, no movimento de quem vai se erguer da cadeira, ou pular sobre a médica, o homem sentiu o pouso em seu ombro da mão pesada do enfermeiro, que havia permanecido de pé, imóvel e silencioso, atrás dele, atrás de Anton, ao longo da entrevista, mão que se fechou triturando ossos de omoplata e que chegou acompanhada por um vozeirão cavernoso:
– Bora nessa, chefe, deu por hoje!
Lourenço Cazarré é escritor
Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas
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