Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela distribui a 'dedo' 11,3 milhões de euros em 10 meses

Grupo de autarcas cria oligopólio de transportes públicos com ajustes directos

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 31, 2024


Categoria: Imprensa, Exame

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De boas intenções está o inferno cheio. E também com alegadas boas intenções se criam oligopólios ilegais. A Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela (CIM-BSE) achou por bem que poderia montar um sistema de transportes públicos em zonas mais periféricas, bastando distribuir ajustes directos por empresas da região. Só nos últimos dois meses foram assinados oito contratos convenientemente distribuídos por empresas da região, um dos quais de quase quatro milhões de euros. A fundamentação para tantos ajustes directos remete para uma norma que não é sequer aplicável, ou seja, é falsa. A CIM-BSE é uma estrutura criada por 15 autarquias dos distritos da Guarda e Castelo Brranco, sendo presidida pelo social-democrata Luís Tadeu, presidente da Câmara de Gouveia, que, no ano passado, foi condenado por prevaricação a três anos e meio de prisão, com pena suspensa.


A Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela (CIM-BSE) celebrou desde Setembro oito contratos de contratação de transporte rodoviário de passageiros no valor total de mais de 9 milhões de euros (IVA incluído), através de estranhos ajustes directos, em vez de lançar concurso público global ou por lotes. Se se considerar o período de 2024, o número de ajustes directos sobe para 18, envolvendo  mais de 11,3 milhões de euros, e beneficiando apenas sete empresas da região, que compartilham o ‘bolo’ num evidente oligopólio. A entidade pública, liderada pelo social-democrata Luís Tadeu, simultaneamente presidente da Câmara Municipal de Gouveia, nem sequer se deu ao trabalho de esclarecer ou comentar o PÁGINA UM sobre estes avultados contratos de ‘mão-beijada’ que colidem com os princípios mais básicos da contratação pública e da transparência e boa gestão dos dinheiros públicos.

Recorde-se que, em Abril do ano passado, Luís Tadeu foi condenado pelo crimes de prevaricação a pena de prisão de três anos e meio, suspensa sob condição do pagamento de 25 mil euros, por causa de parcerias público-privadas com a e empresa MRG. Na altura dos factos, Tadeu era vice-presidente da autarquia então liderada por Álvaro Amaro, também condenado na mesma pena. No processo foram também condenadas outras pessoas, entre as quais Júlio Sarmento, antigo presidente da Câmara de Trancoso, que apanhou uma pena efectiva de sete anos por prevaricação de titular de cargo político, corrupção passiva e branqueamento de capitais. Este histórico militante social-democrata foi ainda sentenciado a devolver ao Estado 552 mil euros.

Luís Tadeu, presidente da Câmara Municipal de Gouveia e da Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela. Foto: DR.

Pessoa colectiva de direito público de natureza associativa, a CIM-BSE agrega as 15 autarquias dos distritos da Guarda e Castelo Brranco (Almeida, Belmonte, Celorico da Beira, Covilhã, Figueira de Castelo Rodrigo, Fornos de Algodres, Fundão, Guarda, Gouveia, Manteigas, Mêda, Pinhel, Sabugal, Seia e Trancoso), e como tem vindo a suceder na última década têm assumido, mesmo com a regionalização a marcar passo, protagonismo político, com investimentos quase sempre financiados com dinheiros comunitários. Desde 2017, a CIM-BSE já estabeleceu 225 contratos no valor de quase 17,7 milhões de euros, mas no presente ano os gastos têm aumentando consideravelmente.

De acordo com um levantamento no PÁGINA UM, desde Janeiro foram assinados 47 contratos para diversas aquisições de bens e serviços, com os compromissos financeiros a atingirem, sem IVA incluído, quase 10,2 milhões de euros. Globalmente, de entre os 17,7 milhões de euros ‘despachados’ desde 2014, mais de 12,5 milhões de euros (69% do total) foram entregues em 157 ajustes directos. Por concurso público somente foram celebrados 55 contratos envolvendo pouco mais de 2,7 milhões de euros (15% do total).

Desde Setembro, a ‘rotativa’ tem aumentado. Os oito contratos de ‘mão-beijada’ assinados nos últimos dois meses, no âmbito de um projecto de mobilidade entre povoações dos concelhos do CIM-BSE (MobiFlex.BSE), têm a particularidade de incluir três com valores acima de um milhão de euros, que dificilmente terão enquadramento para a escolha ser feita de forma arbitrária e com ajuste directo.

O maior contrato foi assinado com a Transdev Interior, uma empresa de Castro Daire que recentemente incorporou a Caima. Sem pestanejar, a CIM-BSE entregou-lhe um contrato por ajuste directo de 3.213.596,18 euros, sem IVA, incluído. Com esse imposto, aproxima-se dos quatro milhões de euros. No Portal Base surge uma ligação às peças do procedimento, mas o sistema dá erro: ou seja, a ligação é falsa, não se ficando assim, a conhecer o caderno de encargos nem sequer o serviço a executar durante os 12 meses da prestação de serviço. A fundamentação indicada para a escolha pelo ajuste directo também é falsa: refere-se o artigo 11º do Código dos Contratos Públicos, que diz respeito a pormenores sobre o acto público. Mas não é o único contrato este ano.

A Transdev Interior foi a mais beneficiada por uma distribuição suspeita de ajustes directos por empresas da região.

A empresa ‘sacou’ mais dois contratos com o mesmo expediente: o primeiro em Abril, por serviços de 30 dias por quase 260 mil euros; o segundo no mês seguinte, com duração de dois meses, pelo qual arrecadou 410 mil euros. Com IVA, a transportadora já facturou este ano à CIM-BSE quase 4,8 milhões de euros em contratos de ‘mão-beijada’.

A fundamentação errada para a opção por ajustes directos num mercado fortemente concorrencial é extensiva aos restantes contratos. O segundo ajuste directo mais chorudo ficou noutra empresa da região: a Auto Transportes do Fundão. São quase 1,5 milhões de euros por serviços de transporte que não se percebe quais serão, porque as peças do procedimento também não estão disponíveis. A este contrato podem também adicionar-se mais três ajustes directos celebrados este ano: em Junho passado foram dois, que totalizaram cerca de 375 mil euros, e em Setembro ‘caiu’ mais outro por quase 159 mil euros. Em todos os casos a fundamentação para os ajustes directos é falsa.

Num dos contratos de Junho existe um caderno de encargos disponível no Portal Base, ficando-se a saber os percursos de transporte previamente definidos. Cada quilómetro percorrido teve um custo para a CIM-BSE de 2,74 euros por quilómetro, um valor consideravelmente elevado.

A empresa Marques Lda., com sede em Viseu, foi outra das ‘felizes contempladas’ com um ajuste directo milionário: o contrato estipula a entrega de cerca de 1,2 milhões de euros, sem se conseguir saber a tipologia dos serviços a prestar. Também neste caso, não há caderno de encargos disponível. Em Junho, esta empresa já conseguira outro ajuste directo no valor de 222 mil euros.

Em menor valor, a Empresa Berrelhas de Camionagem – originalmente de Penalva do Castelo, mas que mudou a sede para Viseu em 2022 – teve ‘direito’ a um ajuste directo de um pouco mais de 601 mil euros agora em finais de Setembro, mas contentara-se com 75 mil euros de outro ajuste directo em Junho por serviços de três meses.

Sem regionalização, autarcas encontraram nas comunidades intermunicipais um expediente para distribuir contratos públicos por ajuste directo.

Além destas quatro empresas, a empresa Viúva Monteiro & Irmão, com sede no concelho do Sabugal, não tem motivos para ‘chorar’, porque também teve direito a dois ajustes directos: em Setembro, no valor de 396 mil euros, e em Junho, no valor de 103 mil euros. Com menores direitos a ‘comer do bolo público’, sem o incómodo da livre concorrência e transparência, encontram-se ainda mais duas empresas no sector dos transportes, também da região: a Lopes & Filhos, com sede em Figueira de Castelo Rodrigo – com dois contratos no valor total de 194 mil euros – e a União do Sátão & Aguiar da Beira, com sede no Sátão, que ficou com dois contratos de apenas 160 mil euros.

Saliente-se que o ajuste directo, uma medida que permite a contratação sem concurso público, destina-se geralmente a casos excepcionais, como situações de emergência ou quando o fornecimento dos serviços envolve pequenos montantes ou existem direitos especiais. No entanto, no sector de transportes, a concorrência é forte, e existem empresas que poderiam estar interessadas em exercer essa actividade em novos mercados a preços mais competitivos e benéficos para os clientes.

Estes novos contratos de transporte estarão associados ao programa de transporte flexível MobiFlex.BSE, promovido pela CIM-BSE. Este programa, que visa proporcionar uma solução de mobilidade ajustada às necessidades das populações mais isoladas, começou a ser implementado em Seia e no Fundão. Criado para complementar o transporte público regular, o MobiFlex.BSE é uma solução de transporte flexível que permite aos cidadãos marcar viagens com antecedência, operando em dias específicos e ligando localidades mais periféricas aos centros de concelho.

Exemplo de um dos serviços de transporte pagos por ajuste directo pela Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela.

No concelho de Seia, por exemplo, o programa integra circuitos experimentais, como Sabugueiro – Seia e Vide-Cabeça-Loriga, que se destinam a colmatar a falta de transporte regular e garantir mobilidade inclusiva. O serviço é assegurado por táxis, e o sistema de reservas é feito através de uma linha telefónica gratuita, com os preços dos bilhetes variando entre os 3,65 e os 1,65 euros, numa tabela tarifária semelhante à do transporte público convencional.

O PÁGINA UM enviou um conjunto de questões à presidência da CIM-BSE, mas Luís Tadeu nem sequer respondeu. Em todo o caso, a acta de uma reunião desta entidade, no passado dia 10 de Setembro, revela um ‘truque’ usado para justificar os chorudos ajustes directos: a CIM-BSE estará a manifestar avanços para vir a lançar um concurso público internacional para estes serviços de transporte – tendo sido aprovadas as peças do procedimento –, mas logo no ponto seguinte foi votado um parecer de Agosto no sentido de ser não se avançar por um concurso público por lotes. E, em seguida, de imediato, passou-se então a análise, discussão e votação para se avançar para os ajustes directos milionários. Tudo aprovado por unanimidade.


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