No Benfica aplica-se a máxima: “quem se se levanta primeiro, calça os chinelos”, de sorte que, enfim, remetido fui hoje, por via da acrescida procura, para a ala esquerda, já algo de esguelha, da Varanda da Luz, que aparentemente é para onde ‘exilam’ os jornalistas estrangeiros – digo eu, pois, aqui ao derredor, vejo ‘olheiros’ da polaca Telewizia Polska, da alemã Sportbild Hamburg e da norte-americana ESPN.
Bem sei que cheguei ‘resvés Campo de Ourique’, com o apito do árbitro a apanhar ainda a meio da escadaria de mochila às costas e o famigerado farnel do futebol (FFF) na mão, mas sempre poderia o Benfica proceder como os ‘lagartos’ do outro lado da Segunda Circular: reservar posições fixas. Ah, já agora, fornecer uma sandes de leitão de Negrais: dei agora mesmo uma trinca nesta espécie de carcaça e consegui identificar um ligeiro sabor a carne na fatia posta – e não colocada [estás a ver, Manuel Monteiro?] – no pão aberto.
Enfim, culpem-me também por esta minha pouca inclinação para a pontualidade britânica – e não por considerar os ingleses snobs, que mereçam ser maltratados, como opina o ‘nosso’ almirante Gouveia e Melo –, mas a vida não anda fácil quando, no mesmo dia, se tem de lidar com as bicicletas disfuncionais da EMEL, com umas consultas de processos na ERC, com reclamações na Decathlon por uma encomenda não entregue e já paga [o que valeu uma devolução e um cliente perdido]. No meio disto, restou pouco tempo para avançar com a edição. E como podem, deste modo, aperceber-se, não estou hoje particularmente bem disposto…
(Golo do Feyenoord, grande porcaria! Isto não estava previsto; logo aos 11 minutos, com uma facilidade enorme)
Agora ainda menos… TSe calhar, mais valia ter-me atrasado ainda mais. O raio do tempo, esse tirano invisível que insiste em reger a nossa existência, mesmo, ou sobretudo, no futebol, que tudo se passa em noventa minutos mais os descontos. Para alguns, o relógio é uma bússola moral, um farol que os guia entre os perigos do caos, para outros uma imoralidade. O Kant, por exemplo, via a pontualidade como uma virtude, quase uma obrigação moral, um acto de respeito pela humanidade, uma espécie de imperativo categórico de quem entende que o tempo do outro também tem valor. Eu sei, e flagelo-me tanto, pelos meus atrasos.
(ena, c’um caraças, segundo golo do Feyenoord, e isto depois de um outro golo ter sido anulado; está lindo hoje)
Até porque nunca sequer usufruo da deliciosa arte de se chegar atrasado. E, se as há: as vantagens! Quem disse que o mundo é feito apenas para os que respeitam o relógio? Nietzsche defendeu, dizem-me, porque confesso que nunca li qualquer passagem a esse respeito, que a obediência cega ao tempo era uma das formas mais subtis de opressão. A liberdade verdadeira, essa sim, é a de quem chega quando bem entende. Chegar atrasado, sejamos sinceros, é uma afirmação de poder, uma espécie de grito silencioso contra a rigidez da vida moderna, sendo, contudo, que tenho dúvidas se a UEFA autorizaria que este jogo somente começasse quando eu chegasse…
Se eu tivesse chegado apenas às 22 horas, como dono do meu próprio tempo, senhor do meu destino, livre das correntes invisíveis que prendem os outros, não estaria agora impaciente, roendo as unhas, zangado por esta péssima primeira parte; ao invés, no desconhecimento e ignorância estaria a gozar de uma serenidade aristocrática, como se o universo simplesmente tivesse ajustado a sua cadência para se alinhar apenas para não me causar qualquer dano.
Chega o intervalo, entretanto, e nem sequer vale muito a pena fazer balanços. Foi mau em demasia. Avancemos para o intervalo…
E que já passou. Veremos como corre esta segunda parte. Vou estar um pouco mais atento nestes próximos minutos… Aliás, só vou escrevere novamente quando o Benfica marcar…
Isso estou eu agora a dizer porque neste momento sinto-me um existencialista, como Sartre, porque a liberdade de quem não se prende ao relógio pode rapidamente virar angústia. Estás tão livre, tão fora de qualquer compromisso temporal, que de repente percebes que a vida, sem as amarras do tempo, pode parecer um vasto vazio, onde até o prazer perde o gosto. Agora, na verdade, estarei nesta segunda parte agarrado ao relógio para saber se ainda vamos, hélas, a tempo de corrigir na segunda parte do tempo de jogo o mal que se fez na primeira.
Nisto, meto Epicuro: nem tanto ao mar, nem tanto à terra – o ideal será o equilíbrio. Obviamente, chegar sempre atrasado pode fazer-nos sentir uma espécie de semi-deus – por exemplo, eu poderia nem vir ver o jogo –, mas deste modo não aproveitaria o prazer, que por agora é pouco, de estar aqui. Já aquele que vivem agarrados ao relógio podem acabar sem ter vivido, sempre correndo de um compromisso para o outro, sem parar para sentir o prazer do momento.
(Goloooooo! Goloooooo! É do Benfica!)
E agora a pressa…
Ah, agora a pressa, essa fiel companheira da esperança e dos desesperados. Não há nada como o apelo dramático da sofreguidão quando tudo está prestes a desabar, mas há ainda uma réstia, um lampejo de ventura, que nos possa debelar o sofrimento, Schopenhauer já advertia que a vida é essencialmente sofrimento e se o sofrimento ainda se tornará maior depois de esgotado o tempo de jogo, porque aí a eventual derrota se mostrará irreversível, então o relógio mostra-nos como a esperança se escapa pelos dedos ao som de um tiquetaque, ainda mais quando, lá em baixo, não se anda sequer em correrias desenfreadas.
Em todo o caso, a pressa e a sofreguidão também nunca foram boas conselheiras nestes momentos, e nem seria desejável que agora, lá em baixo, os jogadores do Benfica se portassem como aqueles trabalhadores de olhos esbugalhados e cabelos desgrenhados, correndo de uma tarefa para outra com a sofreguidão de quem acredita piamente que a pressa resolverá tudo. A pressa, na verdade, nunca se deve confundir nem ser um sinal de desespero. Para Nietzsche, a pressa era mais uma manifestação, uma revolta contra a falta de controlo que temos sobre o mundo. No caso, deste jogo, a pressa advém de, para se pontuar, pelo menos, o Benfica precisa de marcar mais um golo sem sofrer qualquer outro (válido) antes do árbitro apitar pela derradeira vez.
Aliás, precisamos de um pensamento cartesiano, racional, um “penso, logo existo’ aplicado à bola. E não é um “corro, logo existo’ nem um ‘chuto, logo existo’, mas sim um «penso, logo ganho’. Um jogador perdido em campo, sem direcção, ou a passar para trás, como o João Mário, não ‘existe’ de todo. Mas se apenas pensa, e não corre nem chuta que está ali a fazer? Nada. Na melhor das hipóteses, melhor estaria a escrever crónicas, sem préstimo, ou pouco.
Enfim, como se anunciam agora seis minutos de desconto, já pouco me importam as congeminações filosóficas: cada passe, cada decisão táctica, pode ser cartesiana ou raquidiana; interessa sim que o Benfica marque…
Com os seis minutos de desconto, já pouco me importam reflexões: cada passe, racional ou instintivo, que resulte em golo!
(… mas é o Feyenoord que marca)
Pronto, guardemos a guitarra. Pela primeira vez desde que subo à Varanda da Luz, vejo o Benfica perder. Aceitemos o amor fati: tanto o sucesso como a derrota são etapas da vida. Nietzsche diria que são necessárias para o espírito. Mas eu só penso no tempo que perdi com esta derrota.
O ritmo moderno parece pedir-nos pressa a todo o custo, esquecendo a importância de parar e pensar. Agimos por impulso, sempre contra o relógio. A pressa tem sua utilidade, mas é um remédio de efeito breve. Corremos porque acreditamos que isso resolverá tudo, mas, no final, acabamos exaustos, como num labirinto sem saída.
Felizmente, o meu regresso à Varanda da Luz, quatro dias depois, foi mais feliz. Fiz gazeta apenas para apreciar o jogo, tirar umas fotos e, enfim, vingar-me do Provedor do Adepto do Rio Ave, o ex-presidente de infausta memória do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas… Cinco ‘secos’. Agora, o regresso aqui à Luz, depois das visitas ao Algarve e a Munique (ai Jesus), será com o Porto! Carrega, Benfica! Ou não.
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