Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima primeira edição, o piparote de Brás Cubas arremete contra Maria Luís Albuquerque, a nova comissária portuguesa na Comissão Europeia, por mor da logorreia de negações durante a sua apresentação em Bruxelas.
Aprecio deveras frases retumbantes e grandiloquentes vocábulos, com dotes para se alcandorarem sobre os muros da volátil memória da plebe, impondo-se como lapidares axiomas que, mesmo se de calcanhares de barro, sempre dignas serão de um Panteão em preito ao efémero, encravando-se nos neurónios como epitáfios para aí se perpetuarem, embora por breves momentos, na impossibilidade de se eternizarem. Por exemplo, o mais famoso Sócrates, José de nominata, aprecia proclamações fortes, que muito eu estimo pelo vigoroso e impetuoso léxico, como “golpada judicial”, “sinistro aparelho de produção das mentiras mais escabrosas”, “profunda canalhice” e “cobardia moral”. São autênticos torpedos retóricos, crivados de paixão e despeito, que erguem o insulto ao nível da arte e transformam uma acusação em epopeia.
Aliás, com amarga nostalgia relembro tropos seus que, lamentavelmente, caíram em desuso na língua de Camões, como infâmia, acinte e azedume, que outrora envergavam uma dignidade ácida mas sedutora. Num cenário ideal, esses vocábulos deveriam reviver nas vossas pragas diárias, para elevar os impropérios ao sublime, à erudita perfídia, de sorte que o insulto se fizesse com elegância, minorando, ou tornando mesmo elogiosa, a ofensa, e confortando o vexado.
Esse Sócrates não fez escola neste estilo político, na arte da verborreia, mas há um outro mal, que atinge os políticos, e que, aparentemente, copiaram de um Sócrates menos conhecido, o grego: a logorreia.
Ora, como sabeis, o tal grego clamou, certo dia, a hora incerta, pelo que poderia ser já noite, um axioma: “Só sei que nada sei”. A frase carrega um irónico paradoxo, fundando-se numa autocontradição ao se afirmar uma sabedoria que, curiosamente, se resume à negação do próprio saber. Trata-se, contudo, de um axioma da negação: em vez de destruir, a negação ilumina. Ao declarar que sabe nada, Sócrates professava o conhecimento de uma única certeza: a da sua ignorância.
Essa afirmação gera, hélas, um efeito de ouroboros filosófico, a mítica serpente que morde a própria cauda, pois se alguém sabe que nada sabe, então possui pelo menos o conhecimento da própria ignorância. Assim, a máxima não é uma rejeição da verdade, mas uma celebração da humildade intelectual, uma abertura ao desconhecido, que torna o saber genuíno possível ao reconhecer as suas fronteiras.
Porém, sendo certo que o “só sei que nada sei” funciona como uma vacina contra o dogmatismo e a arrogância, tornando o filósofo num D. Quixote do saber, lançado ao mundo não para possuí-lo, mas para questioná-lo, caiu-se na exageração: negar a negação passou a ser, em circuitos políticos, um exercício de prestidigitação retórica, onde as palavras giram sobre si mesmas, como num bailado de lógica invertida, até que o sentido, ou a falta dele, se dissolve nas sombras do absurdo.
É como se o próprio ouroboros do discurso devorasse o seu rabo de razão, num ciclo infindável de “eu disse o que disse, mas não disse o que queria dizer”, em que se afirma e desmente com a fluidez de uma brisa maliciosa, deixando no ar apenas um rasto de dúvidas. E, ao fim desse malabarismo verbal, talvez a única certeza seja a incerteza – ironicamente, estamos em face do derradeiro triunfo do sofista.
E assim chegamos a Maria Luís Albuquerque, a indigitada comissária para os Serviços Financeiros e a União de Poupança e Investimentos, que, em Bruxelas, não poupando palavras, investiu no helénico axioma socrático e saiu-lhe tripla negação para o grau de espinhosidade das suas fiduciárias tarefas: “Não tenho ilusões de que não será nada fácil”.
A pretexto desta intervenção da ex-ministra das Finanças da ‘terrinha’ em Terras de Brabante, mesmo se dita na língua de Shakespeare, merece uma breve reflexão esta arte política – ou melhor, esta ciência ardilosa – de multiplicar negativas para produzir, não clareza, mas um nevoeiro espesso de ilusões.
Desde o túmulo, convencido cada vez mais estou, e mais até do que estava quando sobre a terra perambulava, de que o engenho e a nobreza de espírito podem existir tanto nas sinapses que sublimaram Kant, a ponderar sobre a ‘coisa-em-si’, ou nas que afundaram Hegel, a decifrar os labirintos da dialética, como nos impulso da mioleira dos políticos que verborreiam uma alquimia discursiva onde a afirmação se dilui e a verdade se suspende, transformando cada frase numa teia impenetrável de nulidades, como se o objetivo último fosse o de não dizer absolutamente nada, mas disfarçado com eloquência e pompa.
Ora, mas direis: Maria Luís Albuquerque não esteve ali a enganar ninguém, mas apenas a comunicar. Porém, é aí que entra a questão da negativa sobre a negativa: um duplo ou triplo “não”, ao invés de anular-se como nos manuais de álgebra de um professor entediado, apenas atira a audiência numa espiral de perplexidade. Vejamos antes a palavra como “ilusão” – que evoca imagens platónicas e poéticas de sombras e luzes, com uma leve pitada de Rousseau – precedeu logo duas ou três construções que apenas se justificam para confundir.
Talvez, ao fim do turbilhão gramatical, o pobre cidadão, exausto, já aceite o discurso como uma verdade intrínseca, como uma segunda natureza. Afinal, se algo é repetido, mesmo com tamanha tortuosidade, quem ousará dizer que nada, absolutamente nada, ali faz sentido?
Julgo ter sido Nietzsche que, em tirada cínica, defendeu que a mentira serve, em primeira e última instância, para proteger o mentiroso, ou o político faltoso. Assim, se mentir, dissimular, forjar e deturpar são artesanias da política, então nada mais justo que sejam temperadas de pitadas generosas de logorreia com a profundidade de tripla negação e complexidade gramatical bastante para causar tremores a qualquer noviço das letras.
Na verdade, as negativas dobradas e triplicadas que pululam nas frases políticas, como se quisessem lançar poeira aos olhos do ouvinte, funcionam como uma espécie de defesa prévia contra a indagação; tornam-se uma cortina de fumaça densa, atrás da qual se esconde o mesmo velho temor de que o discurso revele uma fragilidade desconcertante.
Ao invés dos escritores e poetas, que lançam mão da multiplicidade de significados e da riqueza vocabular para compor as suas obras numa tapeçaria em filigrana, o político limita-se a driblar e desviar, a “não dizer” com prolixidade. Afinal, se como nos diz Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”, para um político “complicar é preciso, cumprir não é preciso”.
O discurso político hoje deve dizer, ao mesmo tempo, tudo e nada: é como o gato de Schrödinger, presente e ausente na mesma frase. A retórica é tanta, o rodeio tal que talvez o próprio político já nem saiba o que quis dizer. Estamos defronte de um verdadeiro campo minado de palavras, onde o objetivo é deixar um rastro que nada explica, mas que evita o apedrejamento público.
Prevejo assim que Maria Luís Albuquerque queira, em tom de introspecção perfomativa no final do seu mandato em Bruxelas, declarar sobre o seu desempenho: “Não posso deixar de não acreditar que não há razão para não duvidar de que o meu projecto não tenha fracassado.”
Poupo-vos ao labor de discernir este enigma de penta-negações digno de teatro do absurdo, onde qualquer personagem, aí sim, deve cair no ridículo, mas com elegância. Sugiro, por isso, à Maria Luís que declare somente: “Acho que fracassei”. Sem pirotecnia verbal nem arabescos retóricos. Inteligível. E fiel à realidade.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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