Da Varanda do Varandas

A falta de acento

lion lying on brown grass field during sunset

minuto/s restantes


Forçados a uma grossa e bruta alteração climática, dez graus a mais em tão-só três horas de viagem, poderia ter ocorrido aos milionários futebolistas do Manchester City, mais aos seus brilhantes penteados, delicadas tatuagens e adubadas maçãs-de-adão, irem preparar o jogo para os areais da Caparica. Faziam uma peladinha cinco contra cinco, mais o Haaland sempre à mama, a jogar para os dois lados, a ver se resgatava o moral e reparava a autoconfiança. No final, lambuzavam-se com um arroz de polvo no Barbas, onde os atletas das camadas jovens do Benfica têm dez por cento de desconto vitalício e direito a um gelado de morango ou framboesa por conta da casa.  

Para despeito e frustração da nação benfiquista, um já desenraizado e por consequência desarrazoado Bernardo Silva, guia turístico da equipa celeste dentro e fora dos relvados, optou por sentar os afamados craques e o catalão detentor do record de 279 cuspidelas no banco de suplentes num só jogo da Premier League, à mesa do Solar dos Presuntos. E foi assim que o dito melhor treinador deste e do mundo do além, desembrulhou a sua infalível tática, para a história da Liga dos Campeões, em todas as línguas menos o castelhano, no famoso restaurante onde os lisboetas adentram esfaimados e se retiram satisfeitos, de barriga cheia e o espírito a entornar de sonhos com uma casinha em Ponte de Lima, ou da Barca, e muitas papas de sarrabulho nos anos de reforma.

Ai carago, no Minho é que é bom!

Para lá da rasteira, para cartão vermelho, à devoção do hirsuto e histórico adepto das águias, o pequeno em estatura mas de alto gabarito Bernardo também começou, logo na véspera do jogo, a desperdiçar escandalosamente as fidalgas ofertas do clube anfitrião. A primeira dessas condescendências, só para amigos dispostos a colaborar na farra, teria sido uma viagem, exclusiva e personalizada com camisolas antigas do Cristiano Ronaldo e as edições do dia do Record e do Correio da Manhã, no divertido e espaçoso autocarro anfíbio HIPPOtrip, passe a publicidade, de ida e volta entre o estádio de Alvalade e a praia do CDS. O glutão da Silva, cada vez com mais olhos do que barriga e cabelos para pentear, imaginando já ter à frente os adversários, soltou um grito barulhento de guerra aos empregados, registado em acta nas páginas electrónicas da revista NiT.

Tragam tudo o que é nacional, porque o que é nacional é que é bom!

O referido periódico sempre-em-linha relata que começaram a sair da cozinha, logo de entradas, “pratos tipicamente portugueses” como um “Polvo à Galega” (sic).  O octópode marinho foi servido em finas rodelinhas com molho muito picante, a fim de aquecer as hemorroidas dos comensais para 90 minutos de esforços e tropelias na fofa relvinha de Alvalade.

Nas entrelinhas da NiT, não tanto nas minhas, com este polvo à galega tipicamente português fica a sugestão ao senhor ministro da Defesa, também ele um minhoto com ares e memórias de grandes noitadas em Vigo: se justamente anseia por uma recomposição de fronteiras, não seria mais interessante a conquista do Cabo Finisterra, em detrimento do promontório seco de Olivença?

Como segunda entrada, os refinórios cityzens chuparam com concupiscência umas ameijoas à moda do poeta Raimundo de Bulhão Pato, que tão bem antecipara em verso aquela festa vespertina – e o jogo do dia seguinte –, com a precisão dos gastrónomos de novecentos:

Amigos, à formosura

Que nos cerca neste instante,

Erga-se a taça escumante

De purpurino licor.

Vivo enthusiasmo rebente

Agora de nossas almas,

Caiam palmas sobre palmas

Cada vez com mais ardor!

Dito o poema pelo padeiro Matheus, num acento luso-tropicalista que soa a fado em inglês, encheram-se os copos de uma “selecção” de vinhos nacionais, “ao gosto de cada um”, e a sala transbordou em entropigaitados brindes: ao nevoeiro de Manchester, à independência da Catalunha e à bola de ouro do castelhano Rodri, que tanta falta lhes tem feito no meio do campo, quanto mais à mesa.

Os pratos principais do banquete conservaram fresca a sofisticada frugalidade dos ilustres confrades.  Bernardo declinou a célebre “foda” em favor do cabritinho assado, também “à moda de Monção”. E condescendeu num arroz, mas de lavagante, sem saber que é um prato do dia corrente e alegadamente barato nas tascas de Oeiras.

Para uma constelação de estrelas, um pijama de sobremesas. No meio do mesmo, a espreitar ousado, pudim Abade de Priscos, outro gastrónomo minhoto, eternizado por uma tão premonitória como franciscana frase, que hoje em dia daria direito imediato a coluna permanente no jornal A Bola e lugar cativo no Estádio da Luz:

 – Todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha!

No Minho, no tempo de padre Manuel Rebelo, o Abade de Priscos, os velórios eram um óptimo pretexto para fartos banquetes. Os amigos reuniam-se na casa do falecido para se despedir dele e desfrutar de uma última refeição “à pala”. As famílias mais abastadas contratavam um cozinheiro para confeccionar iguarias para dezenas de pessoas. Um desses mestres em bodas de despedida para a eternidade, salvo erro de Lanhelas, terra de boas solhas e afamadas bandas de música, ficou famoso por irromper nas salas a cheirar a cera e a defunto, a anunciar os paladares mais aromáticos da chouriça e do toucinho caseiros:

 – E então, choramos ou jantamos?

Com um inexplicável travo a vinho verde branco dos beiços à garganta, os milionários futebolistas do City largaram do Solar dos Presuntos já bem anestesiados, directamente para o xixi e cama, no mais obscuro desconhecimento da íntima relação futebolística entre bandulhos cheios e tristes resultados. Fiados na cor das camisolas e embriagados de sono, nem rezaram ao anjo da guarda nem pediram a Deus perdão pelos pecados da gula, alardeado às Portas de Santo Antão, e de exibicionismo de taças, em pleno Terreiro do Paço.

Em campo, sofreram o castigo da metamorfose. Entraram como lobos, esfomeados mas sem maneiras. Assim que fizeram um golo, atraiçoando indecentemente um samurai pelas costas, passaram a exibir as penas como pavões.

No estádio, começou a cheirar a queimado. Pareceu um velório aos espíritos mais fracos, a carpir Rubem Amorim por tão triste e velhaca despedida.

Aos 38 minutos, deu-se o regresso à normalidade. Geovany Quenda dominou a bola no peito com a perícia de um anjo e articulou um passe de magia, a rasgar linhas e impossíveis. Acordou a equipa, levantou o estádio e fez disparar o cometa Gyökeres para a baliza do topo Norte, como a estrela polar.

É golo!

Ao intervalo, com o jogo naquele empate manhoso, Morten Hjulmand fechou a porta do balneário ao treinador e mostrou os dentes brancos e o domínio das tradições portuguesas que fazem dele o capitão:

E então, choramos ou rebentamos com eles?

O resultado não estava escrito nas estrelas, mas antes nas botas do mágico Pote e do Trincão, a serpente do Minho, assim como na trela invisível com que o génio Catamo enforca defesas atrás de defesas nos minutos finais de cada desafio decisivo. Num espeto luso-nórdico, os pavões cityzens assaram como cordeiros, daqueles que são servidos em Monção pela Páscoa, com muita malícia e uma pitada de limão.

Na conferência de imprensa, à falta de explicações para a táctica do 4-1 porque não entrou no balneário, o treinador de abalada falou do plano de jogo para a sua carreira.

Ruben é sem acento.

Não sabíamos, jamais o poderíamos ter imaginado, mas é mesmo. Falta a Ruben o acento no “é”, de José. E as cedilhas de ambição e de confiança em si próprio, para lutar e ser campeão da Europa, com uma equipa portuguesa bem nutrida de saboroso talento, que até dá gosto ver jogar.


N.D. Esta crónica do Carlos Enes é publicada sob protesto, e apenas graças ao meu espírito de abertura à liberdade de expressão. Não que a crónica esteja mal escrita, pelo contrário; mas por glosar em torno de comida, quando, por falta dela (lembram-se do leitão de Negrais?! Nunca mais houve nada disso naquela pequena varanda cerca do Campo Grande), fui convencido pelo Carlos Enes a ir debicar algo ao intervalo fora do estádio. Acabámos a comprar asas de frango no McDonald’s, à falta de um Solar dos Presuntos nas proximidades, ou uma roulotte de torresmos, e perdemos, à conta disso, dois golos do Sporting. Podia ser pior? Podia. Por um triz, não houve um acidente de trabalho porque alguém, aventureiro, se quis meter em atalhos, ribanceira acima, ignorando umas escadas cinco metros à frente. Mas isso é outra história. De resto, ressalvo como um benfiquista de coração conseguiu pôr tantos sportunguistas felizes e agora a suspirarem pelo seu regresso ao estilo de um D. Sebastião de Alcochete.

Pedro Almeida Vieira


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.