Um dos mais conhecidos psiquiatras portugueses, José Luís Pio Abreu (n. 1944) é professor emérito da Universidade de Coimbra e autor de uma multifacetada obra, onde se destaca o best-seller Como tornar-se doente mental, publicado em 2006. Mais do que uma entrevista, eis uma longa e estimulante conversa sobre normalidade, anormalidade e diversidade, sobre doenças, traumas e fobias (até de aranhas), sobre choques e eléctrodos, e sobre a pandemia, e sobre tudo o mais, que tudo cabe nas “folhas” de um jornal digital.
Gostava de lhe lançar o desafio de falarmos da novela O alienista, do escritor brasileiro Machado de Assis. Um alienista do século XIX, como o doutor Simão Bacamarte, difere assim tanto do psiquiatra do século XXI?
Não havia psicofármacos nem havia a Psiquiatria como é reconhecida agora. Não havia diagnósticos, por exemplo. Nós, médicos, trabalhamos fundamentalmente com o diagnóstico. Existe um conjunto de sintomas que são coerentes entre si, e que podemos detectar, e com esses sintomas criamos síndromes, que não são propriamente doenças. Em Psiquiatria não temos um marcador de qualquer doença, não existe. As doenças têm várias influências: podem ser genéticas, podem ser locais, podem ser cerebrais, podem ser culturais, podem ser familiares, podem ser traumáticas.
Antigamente, no tempo do doutor Bacamarte, havia mais uma observação do médico e não tanto um diagnóstico clínico, certo?
Dependia muito do psiquiatra, sim.
E depois havia também aquelas teorias da predisposição para certos males, como o histerismo das mulheres, ou até a frenologia que associava a conformação e protuberâncias da cabeça, ou outros modelos físicos, a determinadas aptidões ou actos criminosos…
Sim, por exemplo, considerava-se que existia uma relação entre a altura e peso. As pessoas, digamos assim, mais redondas teriam tendência às psicoses maníaco-depressivas; as pessoas mais altas teriam tendência à esquizofrenia; as pessoas mais musculadas teriam uma tendência para a epilepsia. Isso foi completamente ultrapassado, embora houvesse algumas indicações… Mas foi com [Philippe] Pinel [1745-1826] que se começou já a descrever as doenças mentais e tentar catalogá-las. E depois com [Jean-Étienne] Esquirol [1772-1840] e a seguir com todo um conjunto de psiquiatras. E depois existem dois vultos essenciais na Psiquiatria: o [Emil] Kraepelin [1856-1926] e o [Sigmund] Freud (1856-1939), que estabeleceram, por um lado, as psicoses – as psicoses maníaco-depressivas e a esquizofrenia – e, por outro lado, as diversas neuroses.
Portanto, passamos a ter a componente de neurologia…
O Freud considerava-se neurologista, mas de facto era fundamentalmente mais um psicólogo ou psiquiatra. Aliás, antigamente, a Neurologia estava ligada à Psiquiatria.
Eu comecei a entrevista a falar do Doutor Simão Bacamarte do Machado de Assis porque ele também personifica o cientista que se que se enrodilha no próprio labirinto…
Depois de ter recusado ser reitor em Coimbra… e foi para Itaguaí.
Exacto! Enfim, ele baseou-se meramente em critérios científicos, mas errados…
Sim. Descobre primeiro que toda a população era louca, e descobre depois que afinal não era verdade, que o único louco era ele. Hoje existe um conjunto de síndromes que são coerentes entre si, embora as causas sejam muito discutíveis. Existem vários tipos de causas; não existe propriamente uma só causa, mas conseguimos ter a noção das síndromes e dos medicamentos que podem melhorar esses quadros.
Ainda queria falar num outro pormenor do Doutor Bacamarte e da Casa Verde, para onde ele enviou todos aqueles que não eram normais. Ele viu que, nos seus padrões, era o único normal na comunidade, o que era um paradoxo.
Ele era normal porque era perfeito. Os outros não.
E a questão é mesmo essa: o que para um psiquiatra é uma pessoa normal?
Eu tenho a noção muito clara de que a normalidade é a diversidade. Somos todos diferentes uns dos outros, podemos adaptarmo-nos às circunstâncias, somos flexíveis, podemos inclusivamente transformar-nos a nós próprios. Isso é ser normal. No meu livro Como se tornar um doente mental, a questão central é exactamente essa: se alguém quiser ser doente mental não é doente mental.
Tudo também depende das circunstâncias. Alguém me contou que um certo juiz do Supremo Tribunal de Justiça garantia que jamais, em nenhuma circunstância, seria capaz de roubar, mas o mesmo não dizia sobre matar. Ou seja, podem existir circunstâncias em que deixamos de ser normais…
Basta ter estado na guerra. Por exemplo, se uma pessoa for considerada inimputável e praticou um crime, pode ir para um hospital, e ficar lá a vida toda se for perigoso. E o critério de perigosidade mais importante é ter matado alguém, porque uma pessoa que mata alguém entra num esquema diferente.
Alguém que mata uma primeira vez fica com maior predisposição para matar mais vezes?
Sim, sim. Mas depende. Numa guerra – e eu estive numa guerra; por sorte não matei ninguém, porque a minha G3 ardeu quando lá cheguei e o meu instrumento era o estetoscópio –, as pessoas matam, embora nem sempre dão conta que matam, pois não se vê o inimigo. Não matam a ver-lhe os olhos. Matar olhos nos olhos é difícil. Lançar uma granada e matar uma data de pessoas é completamente diferente.
E isso marca indelevelmente uma pessoa…
Marca, claro. As pessoas que estiveram numa guerra ficam sempre marcadas, mesmo se existem mecanismos para esquecer, como aliás em qualquer situação muito traumática. Vêm sempre à cabeça, em qualquer circunstância, em pesadelos ou outras manifestações.
Os homens e mulheres sendo seres racionais afinal não são assim tão racionais. Eu costumo dizer que não há nada mais humano do que a desumanidade…
Em certas circunstâncias, sim. Se vivemos num clima pacífico, vamos fazer a nossa vida normal; agora, se vamos para um ambiente que não é pacífico, um ambiente de guerra, ou intensamente traumático, de tráfico de droga, então as coisas são diferentes.
O meio ambiente pode condicionar muito, certo?
Sobretudo nas marcas que deixa. Mas o stress traumático está, neste momento, generalizado. Qualquer coisa pode ser. Ir a um hospital pode ser um stress traumático [risos].
Tudo agora é traumático, de facto. Um filho ficar doente mostra-se traumático para os pais, sabendo-se que nunca se teve uma taxa de mortalidade infantil tão irrelevante. Não há uma exacerbação do trauma?
Sem dúvida. Existem modos de ultrapassar, de recuperar dessas situações traumáticas. Existe o chamado processo de luto. Basicamente, baseia-se num processo de enfrentamento. Geralmente, quando as pessoas perdem alguma coisa, quando perdem alguém, ou quando têm um acidente automóvel, ou quando estão num cenário de guerra, a maneira de dessensibilizar é voltar aos mesmos locais. Agora, até através da realidade virtual, é possível. Por exemplo, entrar num local de guerra, e enfrentar a situação traumática. Resolvê-la.
Resolvê-la de que maneira?
Nós temos um mecanismo. Por exemplo, com os sonhos e também através da nossa descrição. Normalmente, as situações traumáticas, como numa guerra ou numa violação, são arredadas da memória. Há várias teorias fisiológicas sobre isso. Poderá ter a ver com a questão da linguagem, com o hemisfério direito e esquerdo. São situações que ficam encapsuladas, digamos assim, no hemisfério direito, que não tem acesso à descrição. Portanto, uma pessoa teve uma situação muito traumática e esqueceu; não se lembra mais, excepto às vezes, com novos pesadelos ou através de algumas atitudes disparatadas. Se uma pessoa vai a um psicólogo e se fala nelas, há possibilidade de se ter acesso à descrição, isso tem a ver com a transferência daquele “abcesso psicológico” que está no hemisfério direito, e passa para o hemisfério esquerdo, sendo traduzido em palavras ou noutros sinais. Isso ajuda.
Mas o que é afinal ser doente mental? É algo reversível ou uma doença crónica?
Há situações que tipicamente passam. Por exemplo, num ataque epilético, passa, mesmo que se possa repetir mais tarde.
Estava mais a referir-me aos traumas…
Depende. Um acidente pode resultar numa fobia, a pessoa não consegue mais andar de automóvel. Mas se a pessoa enfrentar, for conduzir depois de um acidente, aí consegue vencer aos poucos. Inicialmente, pode ter um pouco medo, mas depois consegue, geralmente, ultrapassar o trauma. É um tratamento de dessensibilização. Por exemplo, para a aracnofobia, temos várias maneiras de a resolver, com uma exposição progressiva: primeiro, desenhos; depois bonecos; a seguir, a própria aranha. Mas também há modos farmacológicos. Por exemplo, fazer uma exposição, uma imersão com aranhas, e depois tomar inderal, um betabloqueador.
Que se deve fazer se uma pessoa tem medo de aranhas mesmo só de se falar delas?
Depende. O problema das fobias é o evitamento; as pessoas evitam falar, evitam estar num sítio, evitam pensar, evitam estar em locais onde possam existir aranhas. E, portanto, cada vez enfrentam menos a fobia.
Mas queria que abordasse mais a questão da doença mental. Não há uma banalização sobre o seu conceito?
Nós temos agora o DSM [Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais] com os critérios e sintomas que definem cada uma, e que evoluiu para uma “psiquiatrização” de quase tudo por influência dos psicólogos.
Mas afinal o que é uma doença mental? Porque uma coisa é um trauma e outra uma doença, não? Pode ter-se um trauma e ir a um psiquiatra, mas isso não o faz um doente mental…
Não. Ele pode é ter outros sintomas que, na maior parte das vezes, nem relacionamos com o trauma. Podem ser fobias, podem ser perturbações dissociativas, etc,,
E não há aqui também um jogo de palavras? E há depois os estigmas. Há uns anos, alguém com problemas mentais era um doido e era metido num manicómio; agora é um doente mental e é tratado num hospital psiquiátrico…
Bom, alguém que vem a um psiquiatra para se tratar não é um doente mental, porque tem consciência do seu estado [risos].
Então agora é mais o psiquiatra que vai à procura dos doentes?
Também não é assim. Evidentemente, perante um crime ou um comportamento que ameaça o património pessoal ou material, pode suceder um internamento compulsivo. Antes resolvia-se com os enfermeiros a apanharem uma pessoa dentro de um cobertor e internavam-na. Agora, existem métodos legais para internamentos compulsivos e juntas psiquiátricas que determinam se se justifica ou não o internamento. Até porque existem situações de filhos zangados com os pais que tentam interná-los, por isso existem essas juntas. Além disso, os internamentos compulsivos são para doença diagnosticada e tratável.
Como se combate o estigma da doença mental, mesmo se já não tão significativa como há algumas décadas?
Uma das melhores maneiras é através de pessoas conhecidas que assumem essa doença, que escrevem livros e falam em programas de televisão. Isso tem acontecido ultimamente. Há muita gente a assumir, por exemplo, que sofre de transtorno obsessivo-compulsivo. Com psicoses também, e o mesmo com transtorno bipolar. E o estigma assim fica mesmo menor. Até porque essas pessoas são notáveis, com capacidades notáveis. Aliás, há pouco estávamos a falar de doenças tratáveis, mas, por exemplo, temos o autismo, que tem provavelmente uma forte componente genética. Pode-se, neste caso, reabilitar, aumentar a capacidade de falar, de estar com outras pessoas, mas não é tratável. Mas há pessoas célebres nesta condição, que são super-inteligentes, que escreveram livros sobre o seu quadro, o que ajudou a combater o estigma.
Não se pode dizer então que o autismo venha a ter cura…
Há autismos profundos, e há outros que se podem reabilitar, com medicação. Mas não podemos dizer que curámos o autismo. Provavelmente, a reabilitação será o futuro da psiquiatria.
Existe a ideia de que o psiquiatra é uma pessoa que receita sobretudo medicamentos, enquanto um psicólogo receita palavras. São profissões muito diferentes?
Diria que são muito complementares. O psiquiatra tem de saber de Psicologia e de Psicoterapia. Não faz mal nenhum ao psicólogo que tenha uma noção dos quadros psiquiátricos, pelo menos se tiver que mandar alguém para um médico.
É normal que lhe chegue um doente vindo de um psicólogo ou concluir que afinal alguém que atende precisaria mais de um psicólogo?
Sim, por vezes enviam. E eu, por vezes, não ultrapasso a Psicologia. Há pessoas que, por vezes, não querem tomar medicamentos, e que conseguem resolver os seus problemas. Mas também os fármacos seguem agora também formas mais naturais, pode ser mesmo uma dieta. Por exemplo, observa-se isso no caso da serotonina.
Portanto, um psiquiatra acaba também por necessitar de conhecimentos de nutricionismo.
Não há nada que não tenhamos de saber, até Filosofia.
Quando começou a exercer Psiquiatria, julgo que ainda na década de 60, ainda estava muito em voga o uso dos electrochoques e métodos mais invasivos. Hoje estamos na era dos psicofármacos…
Olhe, mas para certas afecções, um dos tratamentos mais eficazes são os electrochoques, que são uma espécie de reset, como se faz com um computador para que volte a funcionar correctamente. O cérebro é a mesma coisa: por vezes, pode ser desligado para reiniciar, sincronizado, para voltar a funcionar em modo normal.
Mas isso é feito com mais Ciência do que era nos anos 50 ou 60 do século passado, não?
Continua a ser um tratamento empírico. Tal como se faz também com a magnetoterapia. Há campos magnéticos que podem fazer aumentar a actividade cerebral em determinadas zonas. E existe também a possibilidade de implantar elétrodos muito finos, não lesivos, em determinadas zonas do córtex, e as pessoas mudam completamente de estado mental. Em casos muito graves de perturbações obsessivo-compulsivas ou para a doença de Parkinson, pode funcionar.
Mas já não estamos a falar de electrochoques como se viam nos filmes…
No electrochoque há um reset, cria-se uma “tempestade” cerebral, e a pessoa entra num estado passivo em que recupera sem os “curto-circuitos”. Na psico-cirurgia, com os eléctrodos, é tudo bem controlado, com recurso também à imagiologia, e depois variações na frequência de impulsos, vai-se observando até chegar aos melhores efeitos.
Em todo o caso, estamos agora numa era dos psicofármacos.
Eu diria antes que estamos ainda numa fase de uso psicofármacos. Mas atenção, o problema de uma depressão por uma perda não melhora com antidepressivos, mas sim com psicoterapia. Agora, há psicofármacos com efeito imediato, como por exemplo os neurolépticos. Há injecções que têm uma duração de três meses, e as pessoas passam a ter uma vida normal.
Porém, por exemplo, hoje parece que se prescreve um psicofármaco com a maior das facilidades… Veja-se o caso da Ritalina (metilfenidato).
A Ritalina funciona para as crianças que têm uma síndrome de hiper-actividade grave, que não conseguem estar quietas e não conseguem aproveitamento escolar. Aquilo que convém saber é o que pode acontecer a esses jovens quando tiverem 18, 19, 20 anos. Se vão continuar a tomar. Curiosamente, muitas mães, neste processo, descobriam que também tinham esta síndrome, e começam também a tomar. Aí há claramente um exagero. Mas se houver uma dosagem cuidadosa, não há efeitos adversos.
Há pouco falávamos sobre o que era normal e falou-se que a normalidade é diversidade. Ora, mas ao “normalizarmos” as pessoas todas, não estaremos a perder algo? Não é a parte anormal que faz surgir os génios? A Humanidade evoluiu com os normais ou com os anormais?
A Humanidade cresceu com os loucos. Há uma autora [Kay Redfield Jamison] que teve psicose maníaco-depressiva, perturbação bipolar, e que conta num livro [Uma mente inquieta] como evoluiu quando começou a tomar lítio, que é uma substância muito simples que melhora imenso a perturbação bipolar. E ela tem um livro onde exactamente demonstra que todos os grandes génios do século XX – portanto, as pessoas sobre as quais assenta a nossa cultura – eram bipolares, com psicose maníaco-depressiva.
Daí o perigo de “normalizarmos” tudo…
Podemos acabar com a criatividade, por exemplo.
Isso. Porque uma coisa é melhorarmos o estado de uma pessoa para que não faça mal a si ou a outrem; outra, é poder-se condicionar alguém só porque não está com atenção às aulas…
O próprio Einstein não tinha boas notas.
Pois, e quando agimos sobre um adolescente para melhorar o seu desempenho, e dizemos que ficou normal, o que é que isso significa? Ficou normal para sempre, para ter uma vida banal para sempre?
Quer dizer, há pessoas que têm vidas normais, banais, que têm família. E depois há outras que ultrapassam isso, que são grandes criadores, têm uma vida superior.
Portanto, o psiquiatra não estará a matar a criatividade?
[pausa] Em princípio, não, porque os criativos não vão ao psiquiatra [risos]. Agora, a sério, ao contrário do que as pessoas pensam, geralmente tomar psicofármacos não é para a vida toda. As pessoas têm capacidade de melhorar e de se reabilitarem. Há um paradigma completamente diferente. Os neurónios estão constantemente a renovar-se. Até em idades tardias. Isso sabe-se agora. Dantes não se sabia, pensava-se que a cada momento se perdiam neurónios. Sabe-se agora que os neurónios criam novas sinapses, reaparecerem, e isso abre um mundo completamente diferente, que é a reabilitação. Por isso é que eu foco muito na história da reabilitação.
Falemos agora da pandemia. E sobretudo do medo. Em muitas fases, as pessoas ficaram com tanto medo da covid-19 que, sentindo sintomas graves de uma outra doença aguda, não iam ao hospital, fugiam do único sítio que as poderia salvar…
O medo leva a duas reacções: ou à fuga ou o ataque. E também a paralisia que pode ser um grau extremo do medo, a pessoa desmaia e, por vezes, salva a vida por isso. Na verdade, o medo serve para nos salvar a vida, para nos defendermos ou para atacar. Um problema é quando atacamos quando nos poderíamos defender – e entramos em paranóia –, e um outro é quando fugimos quando devemos atacar. Por exemplo, podemos eliminar facilmente uma aranha ou um rato, mas muita gente foge, quando devia enfrentar. E ficam fóbicas. Por exemplo, os hipocondríacos evitam análises e idas ao médico, por medo, e depois ficam a sofrer das doenças. As patologias mentais têm um círculo vicioso: a doença é a causa da própria doença.
Durante a pandemia, a morte surgiu sempre omnipresente, sempre e em qualquer circunstância…
Por exemplo, eu posso ter medo de um animal, ou de alguém que entre aqui, um ladrão. Eu posso fugir ou paralisar. Ou até enfrentá-lo, eventualmente. Agora o problema é se eu tenho medo de uma coisa que está dentro de mim, no meu coração, se eu tenho medo do meu coração bater, eu não posso fugir. E quanto mais o coração bate, mais medo eu tenho; e quanto mais medo tenho, mais o coração bate. É um circulo vicioso, que dá um ataque de pânico.
O medo pode ser a génese de uma doença mental?
É, sobretudo das perturbações fóbicas e, às vezes, paranóides, que é o que está acontecer neste momento. As pessoas vivem com muito medo, estão a fazer paranóias, fobias, ansiedades, ataques de pânico.
E notou um aumento desse fenómeno durante a pandemia?
Sim, sim. Aliás, o chamado discurso do ódio, que existe nas redes sociais, não é só uma paranóia. As pessoas já não ouvem, já não argumentam, já não dialogam. Acham que aquele é o inimigo, e estão sempre a atacar o inimigo. Há uma altura em que as pessoas já estão a ver o inimigo em todas as outras. E depois o inimigo avoluma-se, de modo que chegamos à rua e somos capazes de ver outra pessoa e temos medo dela. E fugimos.
A máscara, sobretudo, não ajudou, porque se tornou o símbolo da doença e do outro como alguém que nos pode infectar, causar mal, não é?
Exactamente. A máscara, a fuga, o isolamento e depois a forma de funcionamento das redes sociais, com aquelas mensagens sem contexto e sem comunicação interpessoal. Cerca de 60% da nossa comunicação é não-verbal, através do tom de voz, dos gestos, do olhar, da presença. Quer dizer, todo o nosso corpo é comunicativo. Num texto, se as mensagens são descontextualizadas, podemos interpretar erradamente, de acordo com aquilo que nós pensamos ou com um pré-conceito. E aí começamos a entrar numa desconfiança mútua e em agressividade social.
E que me diz da comunicação social e das mensagens da Direcção-Geral da Saúde (DGS) durante a pandemia?
Agora, a DGS já não tem tantas mensagens, porque temos a guerra [da Ucrânia]. As televisões usaram muita estimulação emocional terrível, sempre a passar imagens trágicas, permanentemente, várias vezes ao dia, e com imagens por vezes antigas. As pessoas ficam mais impressionadas com as imagens do que com aquilo que verdadeiramente está a acontecer.
E depois tivemos números descontextualizados, não-padronizados, sem ter em consideração o risco. E as pessoas olharam para esta doença como se fosse pior do que o cancro há umas décadas…
Sim, sim. O vírus era visto como se fosse uma pessoa com uma espingarda pronta a disparar.
Não deveria ter havido outra postura da classe médica?
Eu acho que a classe médica também ficou com medo, porque são pessoas. E também não sabiam o que fazer, e também foram influenciadas por aquilo que aconteceu na Itália, por aquilo que era transmitido pelas televisões. E começaram a ficar também com medo, a tomar medidas desesperadas, e, por vezes, contraproducentes, como, por exemplo, a ventilação excessiva, ou o uso de alguns medicamentos que não funcionavam.
Compreende-se que ao longo dos primeiros meses essa postura tivesse ocorrido, mas depois soube-se que existia um padrão evidente, de um maior risco em função da idade e das comorbilidades. Mas deixou-se de raciocinar, e introduziram-se medidas e mais medidas, e os certificados digitais e a discriminação de quem não se vacinava…
,,, como se fosse a estrela de David.
Sendo a sociedade uma “mente colectiva”, como a viu um psiquiatra durante a pandemia?
É incompreensível. Nós víamos as mortes diárias por covid-19, mas não as víamos para as outras doenças. Se a DGS divulgasse antes da pandemia as mortes por pneumonia por dia e em todo o lado, provavelmente ficaríamos com medo.
Sem dúvida. Houve períodos, sobretudo no Inverno de 2020-2021, que houve muitas mais mortes causadas pelo SARS-CoV-2, mas houve outros em que as mortes por covid-19 se equiparam às das pneumonias antes da pandemia. A questão, enfim, é saber o que aconteceu a este “ente colectivo”, à sociedade para se ter comportado como comportou…
Não sei. Terá sido a falta de audiência das televisões? [risos] Não faço ideia. Acho que é tema para os sociólogos. Mas atenção, quando há pouco falava da classe médica, convém dizer que não é a classe médica; são alguns médicos que, de uma maneira ou de outra, se tornaram representativos. E o problema é a própria representação. Alguns que não tinham nada a ver com o assunto, e através de fóruns, tomaram um epíteto para si, como médico humanista ou coisas desse género [risos]. E por aí tornaram-se representativos, como os influencers. Uma pessoa que diz barbaridades acaba, por vezes, de ser mais visto do que quem não diz barbaridades. A notícia não é o cão que mordeu o homem.
Não notou também que há uma certa radicalização na própria convivência entre opiniões diversas? Tudo o que divergia da narrativa oficial durante a pandemia era negacionista. E agora, no caso da Guerra da Ucrânia, se houver um “mas” é-se putinista… O que é que está a acontecer?
Há uma polarização. Basta, aliás, olhar para as recentes eleições. As pessoas estão insatisfeitas, as pessoas estão mal. Percebem que a vida vai ficar pior, têm pouca esperança. E lutam, lutam. Lutam contra alguém que esteja à mão.
Que sociedade vamos ter depois “disto”? Depois do fim de tudo “isto”? E no pressuposto esperançoso de que “isto” vai ter um fim…
Não lhe sei responder. Mas tudo está a mudar.
Vamos ter mais doentes mentais?
Não necessariamente. Os valores religiosos, patrióticos ou familiares sempre foram baseados em narrativas. E neste momento deixou de haver narrativas, são muito aleatórias.
Voltando ao fim da pandemia. Acha que as pessoas vão, por exemplo, abandonar rapidamente as máscaras?
Os comportamentos sociais são muito imitativos. Isto vai ser como acontecia em Roma. Quem tiver uma vida de romano, quem se vestir como um romano e se comportar como um romano, então é um romano.
Mas se a maioria continuar a usar porque a maioria usa, nunca mais nos livraríamos então das máscaras.
Há-de haver um dia em que a maioria não usa, e então há uns tolinhos que a usam.
Ou seja, tudo isto acaba, enfim, por não ter qualquer lógica… Bom, mas queria ainda falar-lhe da capacidade da mente. Recentemente, estive em coma induzido, e não tenho dúvida alguma sobre as memórias que tive desse período. Por aquilo que vivenciei, como se fosse realidade, leva-me a perguntar-lhe: a mente está acordada mesmo se estamos em coma?
A questão está em saber o que é a mente. Estive recentemente num congresso sobre essa temática, e que tem a ver com o tempo e o espaço. O problema é saber se a realidade é real. Se aquilo com que nós lidamos está aqui ou não, se é real. Nós podemos estar a sonhar, ou podemos estar com os olhos fechados, e começamos a dormitar, e estamos aqui e estamos noutro lugar. Quem tem alucinações está fora da realidade, é psicose. Na minha perspectiva, realidade é o que opõe resistência. Portanto, se eu for aqui a andar e atravessar as paredes, e continuar por aí fora, eu estou fora da realidade. Se eu bater com a cabeça na parede, então é a realidade. De algum modo, a realidade é o que nos causa sofrimento.
É algo físico…
Sim, mas também tem a ver com pontos de referência que precisamos para nos enquadrarmos com a realidade, que é: quem, onde e quando. Referências pessoais – sou eu ou outra pessoa. Se mudarem as referências sociais, eu deixo de ser eu, e está lá o outro, e isso é patológico. O quando refere-se ao tempo, se é de manhã ou noite, e podem-se perder em situações de isolamento. E o onde refere-se ao espaço, que tem a ver também com o toque, com o mexer, com os sentidos.
Um bom actor então é aquele que consegue mudar esses pontos de referência…
Sim. Um actor incorpora outros eus. Mas um actor tem de entrar nesse papel, mas depois voltar a si próprio.
Não tenho a experiência de actor, mas tenho de escritor de romances, em que se cria e recriam personagens e nos incorporamos nelas.
Isso acontece até quando lemos um romance ou vemos um filme, entramos noutra dimensão. Nós somos aqueles personagens.
Voltando ainda ao coma. Tenho a percepção que, realidade ou não, o meu cérebro vivenciou algo forte. Ou seja, que a mente continua a trabalhar…
Sim, sim. É sabido que as pessoas mesmo em coma continuam a funcionar, e por vezes ouvem. E por isso colocam-se questões éticas na relação que se tem com o doente.
Mas não há uma vivência da realidade, pelo que depreendo do que diz. Na verdade, raramente tive a percepção de estar em sofrimento, imóvel e com incapacidade de comunicar…
Às vezes as pessoas até têm a percepção de estarem no tecto a olharem para si próprias. Chama-se autoscopia. Podem viajar. Mas sobre o sofrimento, depende também dos medicamentos que esteja a tomar. Por exemplo, agora, em situações terminais está a utilizar-se até o LSD que provocam estados alucinatórios ou experiências fora de si próprias, com bons resultados.
E o que acontece com as pessoas que estão em coma profundo e, de repente, passados anos, acordam?
A pessoa fica a saber quem é, em que tempo está e onde está.
Mas quem é que ligou o “interruptor” para a fazer ter consciência da realidade? É que aquilo não é um processo gradual; é repentino…
É como acordar. Implica abrir os olhos, tocar e pôr os sentidos a funcionar. Implica ligar os sentidos ao mundo exterior. Há zonas do cérebro específicas que lidam com o mundo exterior e outras com o mundo interior. A parte interna, em ambos os hemisférios, lida com o mundo interior, com as nossas lembranças, com o nosso passado. E isso já se observa com imagiologia.
Há pouco tempo, numa entrevista, explicou as diferenças entre Cirurgia, Medicina Clínica e Psiquiatria, sendo que este último ramo, além da parte física e dos fluídos, estudava a mente. Portanto, estudando a Psiquiatria os Fluídos, a Física e a Mente, o que é então afinal isto, a Vida, e sobretudo a Vida Humana?
Eu costumo dizer que o corpo está no espaço, é uma coisa concreta. A vida está no tempo. A vida é o tempo que o corpo dura e evolui, se muda, até desaparecer. O cérebro, que os neurologistas estudam, está no espaço. E a mente está no tempo. A mente é equivalente à vida, mas tem a ver com o cérebro e o sistema nervoso central.
Significa que se conseguirmos invernar um corpo por algum tempo…
… mas há corpos invernados.
No futuro, então pode ser possível escolher viver uns anos no século XXI, mais uns no século XXII, e por aí fora?
Essa possibilidade existe. Há corpos invernados nos Estados Unidos. Antes de morrerem as pessoas decidiram entrar num processo de hibernação, geralmente pessoas doentes com esperança de encontrarem cura no futuro. Há coisas levadas da breca como a clonagem. Há animais clonados. Vamos para a clonagem de humanos, sim ou não? Essa é uma questão muito complexa, como sabemos… Dantes, falávamos da reencarnação da alma – e há religiões que acreditam –, e na verdade, tecnicamente é possível, não a reencarnação da alma, mas a reanimação do corpo. Um corpo igual ao nosso, mas com uma cultura completamente diferente.
Mas se nascesse um clone de mim, eu teria o mesmo timbre de voz, o mesmo raciocínio? Quem seria o outro eu?
Para já, o timbre de voz tem a ver com audição e a imitação dos outros. Mas os pensamentos seriam outros.
Mas esse meu novo eu não teria consciência de mim, do original?
Penso que não, mas aí nunca se sabe [riso]. Bom, agora fazem regressões até à idade infantil, através de hipnose…
Eu sei que a hipnose é usada em Psiquiatria, e é reconhecida. Mas há quem use hipnose para indagar sobre supostas vidas passadas. Qual a sua opinião sobre isso?
Acho que é pura sugestão, mas tenho colegas meus, psiquiatras, que acreditam sinceramente que tivemos vidas passadas. É um pouco como o budismo. Eu sou extremamente crítico, e acho que temos de ter os pés assentes no chão. Mas o acreditar que há alguma coisa depois da morte dá uma tranquilidade imensa.
Se soubéssemos que viveríamos mais vezes, se calhar levávamos a vida de forma completamente diferente…
Sim, mas os budistas acreditam que a vida é sofrimento, e que a última reencarnação é a libertação total, já não é vida.
É possível cientificamente que um dia se chegue a saber se isso é verdade ou é uma patranha?
A única coisa que se pode dizer é que, confirmando-se a existência de vidas passadas, nunca a maneira de ser seria a mesma.
Fotos da entrevista: António Honório Monteiro