correio mercantil

Um cêntimo de quem não vale nem um vintém

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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima quinta edição, o piparote de Brás Cubas vem, desta vez, sob a forma de ‘agradecimento’ ao arqui-adulador do Almirantado, o panegírico-mor Leonardo Ralha, que doou um cêntimo ao PÁGINA UM.


Que alegria, que surpresa, que honra inusitada! Foi com uma admiração paroxística, quase sideral, que beirou o espanto hiperbólico e ligeiramente histriónico – todas emoções dignas de figurar entre as mais sublimes da Humanidade – que soube da esplêndida dádiva ao PÁGINA UM concedida pelo cronista de panegíricos Leonardo Ralha, arqui-adulador do Almirante Gouveia e Melo no vetusto Diário de Notícias, após a escrita da minha recente crónica.

Um cêntimo!

Comprovativo de generoso donativo do benigníssimo Doutor (Dr) Leonardo Ralha ao PÁGINA UM.

Não vos espanteis, minhas queridas leitoras e meus caros leitores, pela miudeza numérica da quantia, pois tal como um átomo encerra o segredo do Universo, assim este cêntimo contém toda a grandeza de um pequeno espírito que ousou doar o pouco que tem daquilo que pouco lhe sai.

Imagino, com alguma licença poética, a cena em que o Ralha, em leito de insónias na tenebrosa escuridão, quebrada apenas pelo brilho do ecrã do telemóvel, se debateu no mais profundo dilema moral da sua existência: “Contribuir ou não contribuir: that is the question”. Porventura, como Hamlet diante do crânio, reflectindo sobre as futilidades do Mundo, sinalou o louvaminheiro que, mesmo na mais insignificante das moedas, reside um acto de heroísmo.

Ah, a invidia de defunto! Como desejava eu, agora, sentir o tormento do seu pensamento em hora tão decisiva! Quem sabe, no acto do seu trémulo dedo, quantos manjares postergou, quantos charutos protelou, quantos sonhos sacrificou? Ou será que, com uma leveza que somente grandes mestres da ironia falhada almejam involuntariamente alcançar, pulsou “Enviar” sem pestanejar, confiando ao Mundo o peso do seu cêntimo?

Leonardo Ralha. Foto: DR.

Não me acuseis de exagero. Este cêntimo, por mais modesto que pareça, transporta consigo o peso simbólico de tantas dádivas históricas. Não será, porventura, irmão espiritual das bibliotecas mandadas construir por Andrew Carnegie, que iluminaram mentes? Não terá algo do espírito de Alfred Nobel, ao transformar riqueza em legado? Ou ainda do albino elefante Hanno, enviado por D. Manuel I ao Papa Leão X, em gesto que combinava o absurdo com o diplomático? O Ralha, com o seu renascentista nome próprio, parece desejar alinhar-se com tais figuras, embora o seu animal exótico seja de menor porte: um cêntimo de cobre galopando em corcel dourado.

Ah, mas permiti-me um desvio. Pergunto-me: que destino o PÁGINA UM dará a tamanha fortuna? Talvez compre um parafuso para suster os seus alicerces morais. Ou alugue um byte nos confins da Internet, garantindo que mais uma verdade alcance os leitores. Não vos preocupeis, caríssimos mecenas, tenho a fezada de que cada milímetro deste cêntimo será usado com a máxima eficiência, e um relatório de contas será emitido com o rigor de quem administra um tesouro dos Templários.

Seja como for, proponho, às donzelas e aos cavalheiros de bom coração, a assinatura de uma subscrição pública para se erigir uma estátua em honra a este gesto. Sim, uma Estátua ao Cêntimo, erguida no Terreiro do Paço, substituindo o cavalo e o inútil D. José, que o Machado de Castro não se importará, para que multidões possam venerar o acto de um homem que legou ao Mundo algo que desafia o risível desprezo. O epigrama será singelo, mas eterno: “Ao benigníssimo Doutor Leonardo Ralha, que não valendo nem um vintém, se superou oferecendo um cêntimo.

“O meu cavalo por um cêntimo”, frase apócrifa do rei D. José.

À guisa de conclusão, eu, Brás Cubas, até me irmano com Leonardo Ralha, com inveja: se intentei, mas falhei, alcançar os favores e a benesse da Posteridade com um emplastro que curaria a melancolia humana, porque a morte me cortou a vaidade, o cronista do Diário de Notícia deu-nos, em vida, a fortuna de gargalhar com a sua dádiva de um cêntimo. E assim, entre a grandeza e o ridículo, o vosso mundo avança em direcção ao meu estado.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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