Vou ser totalmente sincero com a senhora.
Aqui me sobra muito tempo. Em apenas duas horas cumpro minha tarefa obrigatória. Escrevo cinco cartas por dia. É a minha cota diária, estabelecida por sugestão do doutor Oliveira. Mas permaneço nesta sala as horas regimentais, que são cinco. Pode ser que alguém telefone pedindo explicação sobre uma carta.
Não, ninguém telefona. Nunca. A última ligação ocorreu há uns três anos. Uma pessoa que discou um número errado.
Antigamente? Quando comecei a trabalhar, e lá se vão mais de três décadas, éramos sete funcionários aqui na Seção. Já naquela época o chefe era o doutor Oliveira. Ingressei como contínuo. Admirava os velhos escriturários, gostaria de ser como eles. Muito contribuinte chegava furioso até este balcão. De dedo em pé, cuspindo marimbondos, o cidadão vinha exigir explicação sobre as cobranças. Alguns até esmurravam o tampo do balcão, soltando fumaça pelas ventas, mas os escriturários daquele tempo praticavam a altivez. Eles retrucavam no mesmo tom. O senhor contribuinte que se colocasse no seu devido lugar…
Naquela época? Trabalhava-se muito, mas havia um clima de camaradagem. Se alguém precisasse sair para resolver um problema pessoal, os colegas o cobriam sem reclamar. Quando se encerrava o atendimento ao público, às quatro da tarde, o ambiente interno se descontraía rapidamente.
Quando o doutor Oliveira se aposentou, ficamos reduzidos a três escriturários. E não foi nomeado um novo chefe.
Há uns cinco anos, os dois outros escriturários fizeram um cursinho de digitação e foram transferidos daqui. Restamos eu e essa máquina de escrever.
A cota de cinco cartas?
Uma vez o doutor Oliveira, já aposentado, veio aqui e me disse em confiança:
– Bartolomeu, faça em uma semana o que poderia concluir em um só dia. Aí, você sempre terá uma boa papelada em cima da sua mesa. Parecerá atolado em trabalho.
Gente boa, funcionário exemplar, o doutor Oliveira. Faleceu faz dois anos. Fui ao enterro dele. A mãe do coitado tinha morrido uma semana antes. Desconsolado, ele meteu jornais por baixo da porta da cozinha e vedou as frestas da janela com fita isolante preta. Depois abriu as bocas do fogão, mas não tocou nos fósforos. Ficou só esperando.
Sim. Foi ele quem escreveu a carta-padrão, que leio para a senhora:
Prezado Cidadão, em revisão rotineira, a Secretaria de Fazenda desta Prefeitura Municipal constatou que Vossa Senhoria não pagou a(s) parcela(s) do Imposto Predial referente(s) ao(s) mês(es). Tendo em vista o fato acima, estamos enviando-lhe novo(s) boleto(s), com o(s) valor(es) corrigido(s), multa e juros acrescidos, a fim de que seja procedido o pagamento do(s) mesmo(s) numa agência bancária credenciada.
Belo texto, não?
Nesse ponto, preciso fazer uma confissão à senhora. Sou um sujeito inquieto, criativo. Faz três anos que não repito uma redação. Uma só! A máquina de escrever favorece a minha rebeldia, na verdade a acirra.
Comecei pelo erro. Um dia escrevi: Prezadi. Veja: a letra i está ao lado da letra o, aqui no teclado. Completei: Prezadíssimo.
No dia seguinte cheguei aqui empolgado. Resolvi começar uma carta de modo dramático: Prezado Cidadão!
Veja só que irreverência: meter ponto de exclamação em correspondência oficial. Não é pouca epopeia.
E fui me aprofundando. Um dia, contrariado com certo contribuinte que eu sabia ser mau pagador, inseri uma palavra:
…de que seja procedido, imediatamente, o pagamento…
Por que ajo assim?
Porque me recuso a desempenhar minha missão de forma burocrática. O uso de um computador me empurraria para a acomodação. Mas isso não, jamais! Quero que meu trabalho tenha sempre um pingo de contestação e resistência. É isso que me fez infiltrar palavras inesperadas e pontos de exclamação ou interrogação no texto oficial.
Ontem mesmo, por exemplo, escrevi o seguinte:
A fim de que seja procedido o pagamento do(s) mesmo(s) numa agência bancária credenciada, sob pena de ser Vossa Senhoria…
A senhora já viu ameaça e reticências em uma correspondência oficial?
Não viu nem nunca verá. Criatividade total.
Quando? Eu me aposento neste final de ano. Aí, certamente, aposentar-se-ão também os pontos de exclamação e as reticências.
Com relação ao inquérito que trouxe a senhora procuradora municipal até esta Seção, quero dizer o seguinte: sim, tem fundamento a denúncia de que não me limito a escrever e enviar aos contribuintes apenas as cartas protocolares, adulteradas, de cobrança. Sim, reconheço que também remeto aos senhores munícipes contos de minha lavra.
Mas explicarei.
Desde que me tornei o único funcionário desta Seção, passei também a escrever histórias curtas. Mas só depois de ter cumprido minha cota diária de cinco cartas, claro!
Eu simplesmente ponho um papel em branco na máquina e me abro para o que vier. Datilografo. Palavra chama palavra. Trato de alinhar os vocábulos que, do cérebro, me chegam às pontas dos dedos.
Isso era de início um passatempo, uma brincadeira, um jogo. Eu tratava apenas de dar certa coerência à enxurrada de palavras que me avassalava. Tempos depois me surgiram historinhas com princípio, meio, desenlace.
Se eu tenho uma explicação?
Claro. Isso que a senhora chama de disfunção funcional decorre do excesso de tempo livre. Redigida minha cota de cartas, todos os dias, constato que aquele relógio, ali na parede, avançou apenas um ou dois números. Então, tendo diante dos meus olhos uma folha branca, passo a batucar no teclado. Sou um homem de vida interior agitada, repito. Tenho imaginação fértil e razoável domínio da língua escrita…
O que eu faço com as tais histórias?
Bem, no começo eu as guardava numa pasta que está naquele armário de aço. De vez em quando pegava uma delas e a retocava. Punha uma palavra nova, retirava duas. Botava uma vírgula, eliminava um conetivo. Perseguia as repetições que costumam esconder-se muito bem num texto. Isso na parte, digamos, física. Porém, o que escrevemos possui também uma camada espiritual. Nessa camada, eu me limito a instilar um pouco de humor, melancolia ou até mesmo desilusão.
Sim. Eu os chamo contos a esses meus trabalhos, mas reconheço que, se nós os analisarmos com maior rigor, descobriremos que de fato são modestas crônicas de um escriturário municipal.
Sim, de certa forma, a senhora tem razão quando diz que, sendo contos ou crônicas, tanto faz, no fundo são textos roubados ao erário público.
A remessa aos contribuintes?
Não! Isso não!
Foi assim: um dia eu me perguntei: o que fazer com essas histórias?
A resposta que me veio foi: entregue-as a seus verdadeiros donos, os contribuintes.
Pensei inicialmente em remeter essas crônicas àqueles que realmente saberiam apreciá-las: professores, artistas e intelectuais, os que aparecem no jornal palpitando sobre o que acontece na cidade. Mas desisti ao concluir que gente assim, sempre ocupada em dar entrevistas, não teria tempo para dedicar aos meus escritos.
Pensei depois em remetê-las para os aposentados, que são numerosos aqui na cidade. Meu raciocínio era simples: eles têm mais tempo ocioso. Mas, por fim, acabei me decidindo por escolher os destinatários ao acaso no nosso fichário.
Agora, tem aí um detalhe relevante: sempre comprei envelopes e selos com meu próprio dinheiro.
Que isso fique bem registrado no seu inquérito! Selos e envelopes saem do meu bolso!
Lourenço Cazarré é escritor
Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas
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