Com o espírito irreverente e mordaz de Brás Cubas, esta entrevista imaginária com o Pai Natal é um mergulho numa sátira mordaz ao estado do mundo. Num diálogo que oscila entre o humor ácido e a crítica social, o velho símbolo natalício revela uma visão cada vez mais desanimada sobre o presente e o futuro, mas sem nunca perder a centelha de esperança que carrega no seu mítico saco, excepto a partir de momentos em que lhe falam dos seus conflitos em terras eslavas. A partir de um optimismo, embora cauteloso, garantindo que o seu saco está cheio – nem que seja de esperança –, rapidamente a conversa descamba…. Eis uma conversa que desafia o riso e o desconforto, expondo verdades universais sob o véu da sátira. Uma leitura natalícia para quem ainda acredita – ou quer acreditar – na magia da bondade humana.
BRÁS CUBAS – Meu caro Pai Natal, que honra tê-lo comigo. Comecemos pelo básico: o saco ainda vem cheio de presentes este ano, ou as coisas andam escassas por conta da inflação?
PAI NATAL – O saco está sempre cheio, Brás Cubas, nem que seja de esperança! Ainda há quem acredite que o espírito natalício é mais forte do que qualquer crise. Afinal, há sempre algo que não se compra: amor, saúde, união…
Amor e saúde? Em 2024? Confesse, não trouxe desses presentes para o pessoal do Serviço Nacional de Saúde em Portugal, pois não?
Ah, Brás, eu bem tento, mas a lista de espera para receber saúde é maior do que a minha lista de meninos bons! Mas acredito que com diálogo e boa vontade, as coisas se resolverão.
Boa vontade? Essa gente na política portuguesa acha que é coisa que se embrulha? Diga-me, no seu trenó, já viu mais promessas não cumpridas do que crianças a dormir à meia-noite, certo?
Bom, promessas são como flocos de neve: bonitas de longe, mas derretem depressa. Ainda assim, prefiro acreditar que há políticos que querem fazer o bem… Não me peça nomes, que estou cansado de decorar listas.
Passemos a temas internacionais. Tem visitado Israel e a Palestina nestes dois últimos anos? Sei que não haverá muitos cristãos que o acolham. Além disso, não deve haver muitos motivos para as crianças brincarem, não é?
Ah, Brás, essa é uma das paragens mais difíceis. Levo para lá alguns brinquedos, sim, mas também muitas orações. Infelizmente, cada ano que passa, parece que entrego mais esperanças que se quebram. Já começo a achar que o meu saco anda cheio de ilusões e não de soluções…
E sobre a guerra na Ucrânia?
Não me quero pronunciar.
Ouvi dizer que, nos últimos anos, anda em guerras por terras eslavas com o Ded Moroz, que já conseguiu expulsar de partes da Ucrânia. Tem planos para invadir a Rússia para o expulsar daí também?
A conversa estava a correr tão bem, Brás…
Certo. Como estamos em espírito natalício, não abordaremos esses seus pecadilhos beligerantes… Falemos então dos outros políticos que lutam mais pela guerra do que pela paz. Que lhes tem para oferecer?
Ai, ai… Carvão” E não chegaria para tanta gente. Entre líderes que jogam à roleta com vidas humanas e países que fazem discursos e vendem armas ao mesmo tempo, quem sobra são os inocentes. Aliás, ando com vontade de trocar o trenó por um tanque!
Vamos então ao ambiente, que é tema quente. O Ártico, a sua casa, continua a derreter? Mas gostava também de lhe perguntar o que sente ao ver os políticos portugueses preocupados com o plástico nos areais, mas esquecidos do betão nas falésias?
Ah, Brás… Até as renas já me pedem um plano de contingência! Mas a hipocrisia também é muita. Portugal, tal como outros países, gosta de dar umas voltas às políticas ambientais, mas aquilo que gostam é de plantar árvores em conferências e deixar depois as florestas arderem…. Enquanto isso, temo que as minhas renas precisem de aulas de natação nos próximos tempos…
Falta de educação, é o que é… Mas falemos então do ensino em Portugal. Vai entregar livros escolares gratuitos ou não acha que seria mais prioritário ensinar mais ética política às crianças?
Os livros gratuitos são uma ideia bonita, mas ética política? Ai, Brás, essa é uma utopia que nem eu consigo fabricar na oficina. Entre uma criança que acredita em mim e um deputado que acredita no povo, prefiro a primeira.
Falando em acreditar: acha que o Almirante Gouveia e Melo faz bem em acreditar que vai ser o novo Presidente da República em 2026?
Brás, ó pá, estás a querer que eu entre na política portuguesa de vez? Olha, se o Gouveia e Melo quiser ser Presidente, que me leve as renas a tiracolo. Ao menos são honestas e sabem trabalhar em equipa, não se importando com a falta de ética.
Será ele um Marcelo Rebelo de Sousa ao contrário?
Credo! Eu não quero chamar o diabo para escolhas. Este tipo pareceu-me sempre um duende hiperactivo: sempre em todo o lado, sempre a apertar mãos, sempre a dar abraços e sempre a distribuir simpatia até à exaustão. Não dele, mas de quem o recebia. Não deve haver português que não tenha uma selfie com ele… Quando o Marcelo sair de Belém, meto-lhe umas barbas e fica a substituir-me.
E a Justiça? Com tantas operações policiais, mas depois tudo a ficar em banho-maria, não acha que daqui a nada vai haver mais prescrições do que quilos de bacalhau na Consoada?
Justiça em Portugal? Oh, Brás, aqui vou ser sincero. A justiça portuguesa anda tão lenta que as renas já se oferecem para puxar o sistema judicial. Mas só se for mesmo, mesmo urgente, porque temos as férias judiciais a respeitar, claro.
Pai Natal, está-me a parecer afinal desanimado. Começou nesta entrevista a falar-me do seu saco estar cheio de esperança… Daqui a nada ainda me diz que os portugueses nem têm espírito natalício, que é tudo negócio
Brás, o português tem espírito natalício… para sacar o décimo terceiro mês, que é até o décimo quarto salário… e até à fatura da luz de Janeiro. Aí, transforma-se num pequeno Grinch a resmungar sobre subsídios e impostos.
Agora falemos em aspectos mais prosaicos. Sei que tem sido pressionado por associações de defesa dos animais por causa da exploração das renas. Já equacionou pedir apoio do Estado português para eletrificar o trenó?
Apoio? Ah, Brás, até parece que não me conhece! Se pedisse apoio ao Estado, ainda estava a preencher formulários quando o Natal de 2030 chegasse.
Estou a ficar preocupado com o rumo desta entrevista. Acho que será melhor ficarmos por aqui… Mas antes de terminar: se pudesse dar um presente ao Mundo, qual seria?
Ah, meu caro… Antes eu diria “Paz e Amor”. Agora? Talvez um bom par de chapadas bem dadas em certos líderes mundiais. Que tal?
Pai Natal, atrevo-me a perguntar: está a ficar com mau feitio?
E quem não ficaria, Brás? Ano após ano a mesma ladainha: promessas não cumpridas, injustiças que se multiplicam, gente que só quer enganar o outro. Quer saber? Já nem saco trago no próximo ano! Dou-lhes é um… Bom, deixa… Que vá tudo pastar no deserto, incluindo os meus duendes! Raios que partam todos.
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