Aquele golo sofrido, no fim-de-semana passado, no último lance do jogo contra o AVS – que nem sei bem o que significa – doeu muito. Não tivesse o Trubin despachado tão mal aquele atraso, não houvesse falta, não tivesse a defesa do Benfica andado a ver navios… Enfim, o prazer faz-se pagar caro, mas, de igual sorte, quanto mais tarde chega, mais saboroso parece ser. E estou confiante, depois de mais um percalço do Sporting, graças ao excelente treinador João Pereira (longa vida lhe desejava eu aos comandos dos lagartos, mas, infelizmente, como o peru, não sobreviveu à quadra), desta vez é que é: vamos mesmo chegar ao Natal em primeiro lugar. Presumo eu, que comeceu esta crónica pouco depois dos primeiros pontapés, ali em baixo.
Nisto, depois de tudo o que se passou com o Roger Schmidt, prenunciar o Benfica em primeiro lugar é melhor do que aquela filhó que chega à mesa, dourada como o sol deste Inverno, estaladiça na borda e macia no centro, com um aroma subtil de aguardente a aquecer a alma.
Não há melhor. Nem que fosse uma daquelas rabanadas que se desfazem na boca, banhada em calda de açúcar e canela, húmida e perfumada, como se trouxesse o abraço do Natal num pedaço.
O Benfica em primeiro no Natal será melhor do que uma fatia generosa de bolo-rei, de brilhantes frutas cristalizadas, de crocantes nozes e amêndoas, daquele que liberta perfume a laranja e vinho do Porto, ou melhor, aquilo é mais do Douro, ou, vá lá, de Vila Nova de Gaia.
(tudo calmo ali em baixo, já agora… e já agora, poderia o Benfica ofertar uma fatia de bolo-rei que este famigerado farnel merecia melhorias; se melhoraram o treinador, metendo o Lage, não sei a razão para manterem o lanche como está…)
Enfim, continuemos nestas analogias. Acrescento eu que ver o Benfica no topo da clasificação será mais apetitoso do que qualquer tronco de Natal, mesmo se com aquela textura cremosa de chocolate, laivos de açúcar como neve fresca em decoração, a envolver as papilas num abraço de sabores.
Nem qualquer sonho se iguala, que sonho já vivem agora os benfiquistas depois do pesadelo alemão – e mesmo que fosse um daqueles sonhos que parecem flutuar, leves como uma nuvem, por terem sido fritos até à perfeição, com a superfície caramelizada e polvilhada de açúcar.
E metam também os pudins de ovos em calda de caramelo, ou as broas-de-mel em farinha de trigo ou as tartes de amêndoa de crosta dourada – tudo perde no confronto com o Benfica em gloriosa posição.
(é goloooooooo; golooooooooooooo… já está. O nosso PAVlidis a dar-nos melhor música do que o Vangelis!)
E digo mais agora, que o primeiro lugar me parece garantido: nem todo o ouro, nem todo o incenso, nem toda a mirra valem mais do que este momento. Exagero? Talvez. Acho que exagero mesmo. Quer dizer, pelo ouro de todo o Mundo eu até prescindia – que não sou doido –, mas só para que pudesse guardar uma pequena porção. Para quê? Ora, para alguns reforços cirúrgicos na ‘janela de Janeiro’, claro, que o assalto final à época não se faz com romantismos, mas com pragmatismo. E, além disso, temos a Champions, e eu não quero mais ver derrotas desta varanda.
Em todo o caso, sendo certo que o ouro pode comprar jogadores, não compra o espírito. Não compra o grito da multidão, o abraço colectivo nos golos, nem o sabor desta vitória. Aquilo que desejo vincar é que o Benfica no topo, antes deste Natal, transcende qualquer presente material. É um presente que se sente, que nos percorre as veias e nos aquece melhor do que qualquer lareira da casa das nossas avós.
O prazer de ver este nosso Glorioso no cume da tabela não é só estatística; é a chegada de triunfo que, como dizia Nietzsche, só se torna verdadeiramente glorioso depois de superados os obstáculos. E superámo-los: os percalços com o Roger Schmidt, o renascimento com Bruno Lage, e até os deslizes que pareciam comprometer o destino.
(chega o intervalo, e o Benfica, na verdade, não deslumbra, mas mostra-se competente, mas tem de marcar mais golos para nos sossegar)
Enquanto isto, filosofo mais, enquanto os guerreiros descansam, sobre esta reconfortante sensação que é o prazer, e que, desde tempos imemoriais, tem sido um tema central da Filosofia – e que me parece ter nesta Da Varanda da Luz o local ideal para uma competente dissertação.
Sabemos que o prazer para os antigos gregos, mesmo sem saberem nada das artes da ludopédia, não era apenas uma questão de experiência, mas de equilíbrio e significado. Epicuro, frequentemente mal compreendido como hedonista, defendia que o verdadeiro prazer residia na ausência de dor, tanto no corpo quanto na alma. Para ele, a gratificação era maior quando obtida com moderação, ponderação e, sobretudo, depois de se ultrapassarem grandes dificuldades.
(e recomeça o jogo; força Benfica!)
Por outro lado, Aristóteles via o prazer como um complemento da virtude; era bom, mas nunca deveria ser o objectivo em si. Para ele, o esforço e a excelência eram a chave para uma vida bem vivida, e o prazer surgia como uma consequência natural desse caminho. Talvez devessem mesmo experenciar a dor de ter um treinador como o Roger Schmidt no início da temporada… – ou, para quem é do sportinguista, ver o João Pereira a desbaratar um início perfeito do Ruben Amorim, que, aliás, quis ir sofrer para Manchester.
Passando agora dos antigos para os modernos. Sobre o prazer, podemos sempre recorrer ao útil Nietzsche, que desafiou o ideal da busca pelo conforto. A sua ideia de amor fati, ou o amor ao destino, sublinha que é no confronto com as adversidades que se encontra o verdadeiro sentido da existência. Não sei ainda bem se isto se aplica ao futebol. Aplica-se?
(ai ai ai!, desgraça! Penalti contra o Benfica. Grande porcaria… espera… espera… o VAR ‘anulou’, ou melhor, o árbitro reverteu a decisão depois de ir ver o VAR. Alivio! Depois da dor pela antecipação de uma desfeita, foi como se viesse o prazer depois de uma dor percebida)
Suspiro, aliviado. Tréguas para continuar a filosofar nesta Varanda da Luz. E respondo à pergunta. Claro que sim. Se o amor fati nos ensina a abraçar o destino, com todas as suas adversidades, então aplica-se, sim, ao futebol. E porquê? Porque o futebol, como a vida, não é uma sucessão de vitórias fáceis e momentos perfeitos; antes sim, é feito de frustrações, de reviravoltas, de lesões inesperadas, de golos sofridos no último minuto – como aquele contra o AVS, que ainda me dói só de lembrar. O amor fati é isso: aceitar que a dor faz parte do jogo da vida, e é precisamente essa dor que torna as vitórias mais doces.
Quando pensamos na travessia inicial desta época, com Roger Schmidt a transformar-se numa fonte de frustração, ou quando olhamos para o Sporting – cujo início parecia prometer glórias, apenas para que o João Pereira desmoronasse tudo como um castelo de cartas –, percebemos que o futebol é um microcosmo da existência humana. É a luta contra as probabilidades, o confronto com a imperfeição, que dá significado ao jogo. Nietzsche diria, se vivesse agora, que, ao amar essas adversidades, ao encontrar beleza nas derrotas e nos momentos de dúvida, crescemos enquanto adeptos – e enquanto seres humanos.
(goloooooooooo!!!! Benfica! Zeki Amdouni, acabadinho de entrar, e logo a marcar. Alívio. E o Natal está a 17 minutos de chegar, mais os descontos)
E veja-se: se não fosse pelo sofrimento inicial, e até o sofrimento deste jogo, que houve, onde encontraria eu o sabor pleno do momento actual? O Benfica em primeiro lugar antes do Natal é um presente que só faz sentido porque passámos por altos e baixos. Se a vitória fosse certa, constante, garantida, perderia o seu valor. O futebol seria uma monotonia, sem emoção, sem intensidade. A glória de PAVlidis a marcar hoje, como se fosse o outro Vangelis a compor uma sinfonia em campo, mostra-se arrebatadora porque é fruto de esforço, de trabalho, e, sim, de dor superada… Acho que estou a exagerar, mas, enfim, quem não…
Talvez seja isso que Nietzsche, mesmo antes do futebol ser inventado como o conhecemos, nos ensina: não há prazer genuíno sem luta, não há glória sem adversidade. Por isso, amar o destino, com as suas curvas e tropeços, constitui uma declaração de amor ao futebol em toda a sua imprevisibilidade. Por isso, sim, o amor fati aplica-se ao futebol – e talvez o futebol, no fundo, seja um dos maiores exercícios de amor fati na vida moderna. Afinal, que outra paixão nos leva a sofrer tanto e, ainda assim, a amar cada instante?
No coração de cada adepto, sinto agora nestes benfiquistas, um pouco mais de 60 mil aqui no estádio, reside um ethos semelhante ao dos filósofos: o prazer supremo destas últimas semanas, e de hoje em particular, esteve inextricavelmente ligado à paciência, sobretudo com o alemão, ao esforço, à espera e, muitas vezes, à dor de suportar derrotas e empates. Não é o sabor mais ou menos fácil das vitórias sucessivas com o Bruno Lage que agora cativa; é o momento glorioso que chega após uma sequência de desafios superados.
(e golooooooooooo… 3-0; novamente o suíço com o nome esquisito, que me parece que está a ficar melhor do que o Seferovic)
Termino, como termina o jogo, em glória, afirmando que o Gloriosa, nesta temporada, será é o exemplo perfeito desta Filosofia da Ludopédia aplicada à vida. Qualquer adepto já saberia que as conquistas mais satisfatrórias são aquelas que surgem depois de períodos de frustração. E agora, basta seguir o caminho. Alvalade será o próximo bastião a quebrar: dizem-me que já sem o João Pereira… Agora, até podiam contratar o Pep Guardiola…
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