A HISTÓRIA POSSÍVEL DE BENGUELA: uma novela (III)

Um cemitério de ilusões

landscape of trees and mountain

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 9, 2025


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Artur Matos costumava acreditar que as dificuldades enfrentadas pelos navegadores portugueses na costa africana tinham sido, por si só, uma prova de resiliência e génio. Quer dizer, até começar a trabalhar com Elias Mukuba, para quem as “dificuldades” dos colonizadores eram um eufemismo irritante para descrever a brutalidade das expedições e o impacto devastador sobre as populações locais. Já se começara a habituar, mas continuava a ser um cabo de guerra constante: Artur tentava enfatizar os perigos da empreitada em tempos inóspitos, Mukuba insistia que o verdadeiro perigo fora trazido pelos próprios portugueses.

O capítulo que Artur estivera a redigir durante mais de uma semana abordava o fracasso da colonização inicial de Benguela. Descrevera como as expectativas ambiciosas de Paulo Dias de Novais e, mais tarde, de Manuel Cerveira Pereira tinham dado lugar a uma realidade de desastres logísticos, doenças e conflitos com os sobas locais. Era uma narrativa que misturava tragédia e ironia, mas pressentia que Mukuba desejaria que fosse transformado numa lição de moral.

Por isso, Artur não conseguia deixar de se sentir dividido enquanto escrevia. Parecia-lhe claro que a narrativa histórica, mesmo quando embasada em factos, teria sempre, pelo menos aos olhos do seu editor, um prisma interpretativo. E, como escritor, teria de encontrar um equilíbrio, mesmo se a responsabilidade de escolher as palavras servia também para moldar percepções. Havia dias em que sentia que estava apenas a esculpir sombras, contornos de verdades, mas nunca a totalidade.

Chegou o dia daquilo que Artur começou a denominar “revisão”, ou seja, os encontros com o editor, após lhe enviar o manuscrito uns dias antes.

– Matos, o seu texto faz com que estes homens pareçam heróis trágicos. – Mukuba disparou logo que Artur abriu a porta.

Esticou-lhe o manuscrito. Estava densamente sublinhado; passagens com uma força exagerada da caneta vermelha, quase rasgando o papel.

– Colocou os portugueses como se fossem mártires numa cruzada gloriosa. Já parou para pensar que os nativos eram aqui as vítimas, e não os seus patrícios os protagonistas desta tua epopeia de falhanços?

Artur levantou o olhar. As palavras de Mukuba tinham um peso que ressoava, porque ele sabia que, em parte, eram verdadeiras. Mas sentia também que existia uma necessidade de olhar para os eventos com as lentes da complexidade, reconhecendo não apenas o sofrimento infligido, mas também os paradoxos dos que infligiam.

– Elias, estou apenas a relatar os factos. – Artur tentava manter a calma, mas sentia o estômago a apertar. – Sim, eles enfrentaram doenças, dificuldades e hostilidade local. Isso é inegável. Não estou a dizer que foram mártires, mas também não posso ignorar que as condições eram extremamente adversas.

– Adversas para quem, Matos? Para os homens que chegaram em navios armados e deixaram destruição por onde passaram? Ou para as populações que já estavam ali, a viver tranquilamente, até que apareceram os tais “exploradores”?

Eis o dilema do historiador: descrever a História pelos factos, ou pela ética? Este pensamento rondava agora a mente de Artur Matos, desde que conhecera Elias Mukuba, como uma sombra persistente, mesmo se se esforçava para conciliar duas perspectivas irreconciliáveis: a dos vencedores, com as suas narrativas de poder e progresso, e a dos vencidos, cujas vozes muitas vezes se perdiam entre os escombros do tempo. Mas, afinal, quem são os vencedores e os vencidos?

Artur sabia que os factos eram o ponto de partida inegável de qualquer narrativa histórica. Datas, nomes, eventos: eram pilares sólidos, ou pelo menos assim pareciam. Mas os factos raramente são neutros. A escolha de quais factos incluir, de como os enquadrar, de que voz privilegiar ao narrá-los; tudo isso é um acto de interpretação que inevitavelmente reflecte valores e prioridades. Mais do que descrever o que aconteceu, o historiador tinha de decidir o que significava.

Mas a ética, essa companheira incómoda, se lhe abrem a porta, não permite que o historiador se refugie na neutralidade aparente dos factos. Havia algo de perturbador em relatar a violência, o sofrimento, a exploração, sem uma perspectiva crítica. Artur sabia que a História estava cheia de horrores perpetrados sob a bandeira do progresso, mas como capturar a humanidade das vítimas sem cair na armadilha de demonizar todos os que estavam do outro lado?

Esse dilema começara a manifestar-se em cada linha que escrevia sobre Benguela. Relatar as dificuldades enfrentadas pelos colonizadores portugueses poderia ser interpretado como uma tentativa de gerar simpatia por aqueles que, afinal, eram os invasores. Por outro lado, enfatizar apenas os horrores infligidos aos nativos corria o risco de reduzir os acontecimentos a uma batalha simplista entre bons e maus.

Artur queria explicar esses dilemas a Mukuba, mas o editor continuava no ataque.

– Olhe para isto. – Mukuba apontou para um parágrafo que descrevia a escolha de Cerveira Pereira de fundar São Filipe de Benguela num local que mais tarde se revelou insalubre. – Aqui, escreve: “Os sonhos de Cerveira Pereira foram afogados pelos pântanos e pelas febres.” Sonhos, Matos? Sonhos? Este homem chegou, queimou aldeias, matou nativos e roubou terras. E chama a isto sonho?

– É uma figura de estilo, Elias. – Artur suspirou. – Não estou a glorificar o homem. Estou a descrever a ironia do fracasso dele.

Mukuba inclinou-se para trás na cadeira e olhou para Artur com uma expressão que era metade exasperação, metade diversão.

– Ironia, diz? A verdadeira ironia, Matos, é que eles achavam que estavam a civilizar, mas acabaram a construir a sua própria sepultura. Benguela tornou-se um cemitério de brancos porque eles não entendiam a terra, não respeitavam o clima, e, acima de tudo, porque estavam cegos pela ganância.

Artur ficou em silêncio, reflectindo. Havia algo profundamente desconcertante naquela visão. Ele sempre vira os colonizadores como figuras de uma tragédia maior, mas Mukuba conseguia despir a narrativa de qualquer resquício de simpatia. Não havia tragédia em quem vê na exploração uma escolha deliberada. Esse ponto o perturbava mais do que queria admitir.

Saiu da reunião pouco depois, com as folhas avermelhadas de sublinhados e nota para “reflexão”, vincara o editor. Artur passou as duas semanas seguintes a reescrever o capítulo, tentando encontrar um equilíbrio entre a crítica às acções dos colonizadores e a contextualização histórica das suas motivações, descrevendo como os portugueses, ao tentarem transformar Benguela num posto avançado lucrativo, enfrentaram uma resistência feroz dos sobas locais, além do confronto com a Natureza, ou melhor, com a malária que dizimava as tropas, alimentando os motins internos por força do desespero e da desorganização.

Quando enviou, de novo o manuscrito, recebeu três dias depois um telefonema de Mukuba.

– A parte dos motins contra Cerveira Pereira parece-me interessante, excepto a classificação: escreveu que ele foi “vítima de insubordinação.” Mas não menciona que essa insubordinação veio de soldados que estavam a morrer de fome e de doença, enquanto esse homem acumulava escravos e riquezas pessoais.

– Está implícito – retorquiu Artur, embora sabendo que Mukuba não aceitaria esse argumento.

– Implícito? Matos, esse é exactamente o problema. A História nunca é explícita sobre o que os poderosos fazem de errado. Está sempre tudo nas entrelinhas. E sabe quem é que nunca lê as entrelinhas? As pessoas para quem vocês, escritores brancos, escrevem.

Artur ficou calado por um momento. Sentia na pele a cor da sua pele. O editor continuou:

– Ok, Elias. O que sugere, então?

– Sugiro que deixe os seus “sonhos” e “ironia” de lado e que sejas honesto. Escreva como foi: um grupo de homens que chegou para roubar terras, matar pessoas e falhou miseravelmente. É isso que quero ver neste capítulo.

Telefone desligado, Artur Matos sentiu-se também derrotado, e assim despachou a versão final em três tempos, iniciando o capítulo com uma frase que sabia que Mukuba aprovaria: “Benguela tornou-se a tumba de quem chegou para transformar sonhos de conquista em pilhagem.”

No manuscrito que, pouco depois, enviou ao editor, estava lá tudo: os detalhes das batalhas, das alianças instáveis com sobas locais e da doença que devastava tanto portugueses quanto nativos, destacando em detalhe episódios particularmente sombrios, como a destruição de libatas inteiras como represália por ataques aos soldados portugueses, mas também a resistência local e da terra.

Quando reencontrou o editor, Artur estava confiante de que agradaria a Elias Mukuba:

– Este capítulo tem potencial, Matos. Mas ainda falta uma coisa – disse-lhe um sorridente Elias.

– O quê? – perguntou Artur, já receoso.

– A voz dos que resistiram. Não basta dizer que resistiram; quero saber como. Quero ouvir o soba que enfrentou Cerveira Pereira. Quero que a resistência tenha um rosto.

Artur sabia que já nem valia a pena argumentar, assentiu, pegou no manuscrito e regressou a casa. No dia seguinte, adicionou um diálogo ficcional entre Cerveira Pereira e um soba chamado Cangombe. No texto, o soba confrontava o governador português, dizendo-lhe: “Os vossos canhões podem derrubar as nossas casas, mas nunca vão compreender a nossa terra. E é por isso que ela vos vai devorar”.

Poucas horas depois de ter enviado a última versão do terceiro capítulo, a secretária de Elias Mukuba ligou-lhe.

– O doutor pediu-me para lhe dizer: “agora sim, agora estamos a chegar lá”.

[continua…]


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