Diziam que o poeta vivia num mundo só dele. Não era verdade. O poeta trabalhava, tinha prazos, contas para pagar, e um cão. O poeta, despido da poesia, era apenas um homem na Terra.
Certo dia, terminou um livro. Imprimiu-o. Lembrou-se, então, de que nem sabia quando tinha comido pela última vez. Dirigiu-se ao frigorífico. Estava vazio. O estômago também. O poeta apontou numa folha: “ovos, galinha, milho e…”. Havia de lembrar-se do que faltava.
Colocou o manuscrito num envelope. Ia entregá-lo pessoalmente na editora. Já que tinha de ir ao supermercado, logo tratava dos dois assuntos.
O espelho da sala mostrou-lhe que estava de pijama e chinelos. O poeta foi ao quarto, arranjou-se e voltou. Pegou no envelope, procurou a lista das compras, mas tinha desaparecido. Nada que o espantasse. Chegou mesmo a duvidar da sua existência. Estava exausto. Já não tinha certeza de nada.
Foi até à editora e entregou o envelope. Sentiu-se aliviado, mas sem vontade de ir às compras. Decidiu, por isso, encomendar o almoço e aproveitar para deitar mãos a um novo projeto.
Algumas semanas depois, o livro foi publicado. Sentia-se ansioso. Os últimos dois não tinham sido recebidos como esperava.
Chegou o dia do lançamento. Sala cheia numa importante livraria da capital. A apresentação a cargo de um conhecido e reputado académico. Tudo corria como no seu melhor sonho. O poeta, no entanto, não percebia o que levava o professor a considerar que a sua obra remetia para temas como o princípio do mundo, o ovo cosmogónico, a dúvida relativa à primazia do ovo ou da galinha, nem porque referia a incerteza expressa pelo final deixado em aberto.
O público aplaudiu. O poeta, encolhido, com cara de ponto de interrogação, perguntou:
– Em que página está esse poema?
– Na página 23. – respondeu o professor. – A propósito, pergunto-lhe: por que não o colocou na página 1? Qual foi o critério de edição?
O poeta abriu o livro e leu:
“Ovos,
galinha,
milho
e…”.
Sem hesitar, dissertou sobre as grandes questões que pretendeu levantar com este poema. Esclareceu todas as dúvidas.
O académico ficou estarrecido com a explicação. Era brilhante. Elogiou e agradeceu a humildade e generosidade do autor.
O poeta, de livro na mão, dirigiu-se ao supermercado:
– E… arroz. – completou.
Críticos, estudiosos, jornalistas, leitores ávidos e grandes conhecedores apressaram-se a ler a obra e ajoelharam-se perante o génio do bardo.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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