correio mercantil

Trump visto pelos profetas do caos e mercadores das catástrofes

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Deliciam-me mais os profetas da desgraça do que os arautos da esperança. Há algo de magnético em quem, armado de pena ou verbo, anuncia o caos como um comerciante de banha da cobra no meu Mercado de São José ou um vendilhão de quinquilharias na vossa Feira da Ladra. Não é que me falte simpatia por um Bloch, mais as suas utopias de um amanhã ideal; por um Rousseau, mais o seu contrato social que redime o homem moderno; ou por um Marcel, e mais o seu amor humano como antídoto contra o desespero – mas há uma certa majestade sombria em Hobbes, com o seu Leviatã a triturar liberdades; uma certa gravidade lúgubre em Schopenhauer, que fez das cegas vontades o motor do sofrimento universal; ou mesmo uma certa altivez tenebrosa em Nietzsche, que, proclamando a morte de Deus, nos legou a necessidade de criar sentido num universo vazio.

A verdade, minhas graciosas leitoras e veneráveis cavalheiros, o pessimismo é mais convincente do que o optimismo. Afinal, o desgraçado que tropeça, e cai, tem a gravidade como aliada; já o esperançoso que tenta voar, desafia Newton e os seus dogmas, e ademais se escaqueira, volta e meia, qual Ícaro, no empedrado da realidade. Se, na História, os arautos do colapso anunciaram catástrofes – muitas vezes concretizadas –, na Filosofia ofereceram-nos sempre uma doce melancolia, um antídoto contra o excesso de alegria que, amiúde, turva os olhos da razão.

Porém, ah!, sublime ironia, os profetas da desgraça raras vezes se revelam derrotistas em absoluto. Há, em si, intrinsecamente, nos seus lúgubres presságios uma oculta centelha de esperança. Por exemplo, quando Hobbes pintava, de forma austera, o homem como um lobo, murmurava uma redenção pelo contrato social. Quando Marx previa a luta de classes, vislumbrava também, a despontar no horizonte, um paraíso do proletariado. Quando Hannah Arendt, traçava um diagnóstico implacável sobre os totalitarismos, desvendando a banalidade do mal, sonhava com a resistência como redenção da Humanidade contra a apatia moral.

Destarte, os melancólicos visionários resguardam no bolso um sonho envergonhado de salvação – como quem, prevendo tempestades, secretamente leva um guarda-chuva na esperança de, enfim, poder dar conta do recado.

Ora, se até os filósofos, nos seus extensos e densos tratados, revelam essa dualidade entre a desgraça e a redenção, o que diremos dos jornalistas? Esses modernos agoureiros que, com teclados em riste, anunciam o juízo final em directo, embora escondendo um brilhozinho nos olhos, porque, para eles, o apocalipse é uma mercadoria.

Os jornalistas são, nos tempos hodiernos, as Cassandras de antanho, mas escrevendo agora textos escatológicos, cheios de metáforas vulcânicas e de previsões de derrocadas iminentes. Porém, ao pintar o caos, buscam redenção nas vendas de assinaturas ou nos gráficos de audiência, e sem o peso trágico de qualquer maldição. Enquanto Cassandra era ignorada na sua clarividência, os jornalistas da calamidade são amplificados por cliques, partilhas e manchetes. Não é a verdade que os move; é a economia do pânico.

Mas – ah, ironia das ironias! –, no fundo do seu ser, eles não desejam o fim do mundo. Não, nanja, nunca! Eles querem, sim, o mundo à beira do abismo, suspenso, sem cair. Que proveito lhe daria um apocalipse consumado? O fim das receitas publicitárias, das transmissões urgentes, dos likes e das partilhas que alimentam o seu pecúlio. Convenhamos, uma ruína universal lenta e documentada é bem mais proveitosa do que um esvaziamento cósmico vertiginoso e sem papel.

O agora subdirector do jornal Expresso, Pedro Candeias, mostrou-se por estes dias, em letras, um belíssimo exemplar dessa nova linhagem de Tirésias contemporâneos. Não, não me refiro à cegueira literal, mas àquela outra, mais sofisticada, que, pré-anunciando um desastre – iminente ou improvável, indiferente lhe é –, logo congemina a oportunidade de o transformar em manchete.

Escreveu ele – e logo ele, que até há pouco andava a narrar pontapés na bola e os meandros de suas transações comerciais – uma pungente ode ao alarmismo apocalíptico internacional! Confesso que, ao lê-lo, senti-me transportado para uma assembleia medieval de oráculos vaticinando a queda iminente do céu.

E que espectáculo, este seu texto! Uma verdadeira sinfonia de exageros que faria o meu saudoso Quincas Borba gargalhar ao ponto de quase sufocar na própria filosofia. Imagino-o, ao ler tal peça, a exclamar triunfante: “Ao vencedor, as batatas… e ao Candeias, o pânico!” Sim, porque ali não há lugar para o tom sereno do cronista ponderado, somente para a verve inflamável de um fervoroso profeta..

Ora, garantiu-nos o Candeias – com a solenidade de quem descobre a pólvora explodida há séculos – que bastará Trump ser empossado na segunda-feira para que, vejam bem, “o mundo que acordar na terça-feira pouco terá a ver com o que se deitou no domingo anterior.” Um “facto”, segundo ele!

Ah, e que magnífica obra do engenho humano é a sua capacidade de se anunciar uma “nova ordem mundial”! Não importa que a História, essa senhora teimosa e sarcástica, já tenha discorrido com séculos de caos perfeitamente ordenado: cruzadas, colonizações, revoluções industriais, mundiais e digitais; sempre a mesma orquestra, de homens explorando homens, apenas com novos instrumentos a desfiar e a desafinar.

Nada que o cândido Candeias subverta e descubra no senhor Trump o inédito protagonista de uma ópera bufa onde o protecionismo é o prelúdio, o aquecimento global o refrão e as ameaças geopolíticas a batida do tambor. “Nova era”, diz-nos. Oh, e já não ouvimos antes variações desta sinfonia? Quando os Habsburgos dominaram meio mundo com a subtileza de um rinoceronte num salão de porcelanas? Quando Napoleão, em delírios cartográficos, decidiu que um mapa não era mais do que um rascunho à espera da sua assinatura, caneta numa mão, baioneta na outra? E Hitler? Ah, o que me faz o Candeias: descambei no desgraçado reductio ad Hitlerum. Pronto: vejamos então o Tio Sam, já um tanto pançudo e cheio de corantes, fast food e diabetes. Bem antes de Trump, não singrou o Tio Sam por mares nem calcorreou continentes para ajustar umas tacadas entre um embargo e outro, umas pancadas entre uma invasão e outra.

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Para o Candeias, de que serve olhar para Woodrow Wilson, para Franklin Roosevelt e até para Ronald Reagan, que alternavam entre o escudo do isolacionismo e o florete do protecionismo, qual mosqueteiros indecisos? Ah, esses, claro, não eram magnatas imobiliários de frases curtas, mínimos substantivos e tweets bombásticos. E não havia, para lhes acender as chamas do ego, um Musk, essa figura que é o sonho húmido tanto dos capitalistas aventureiros como dos jornalistas paladinos na luta contra a desinformação que, amiúde, alimentam.

Mas Candeias, esse santo observador, acredita que cada nova fanfarra trumpiana inaugura um concerto jamais ouvido. E ignora, coitado, que, per saecula saeculorum, se têm tocado as mesmas melodias, somente variando os arranjos. O mundo, sei bem, não é senão um velho teatro, com actores renovados e cenários gastos.

Para o Candeias, tudo lhe é novo. A Gronelândia, coitada, diz ele, uma vítima trágica de “insinuações musculadas”. Já não bastava a Rússia, agora surge a ameaça norte-americana? A base aérea de Thule caiu de para-quedas em 1951, presumo. Imagino agora os fiordes em polvorosa a preparar discursos de boas-vindas com tradutores simultâneos para o peculiar dialecto trumpiano, porque encontrar lá uma população equivalente à da Póvoa de Varzim disseminada em território vinte e quatro vezes maior do que Portugal não será tarefa fácil para os marines.

Ah, e o Canadá, tão ordeiro, deve estar a polir as suas folhas de ácer por antecipação à suposta – que digo!, garantida! – invasão dos vizinhos norte-americanos. Quanto ao Canal do Panamá, se o Candeias diz que vai suceder, porque não? Nem sei como se esqueceu de nomear a intenção do Trump de cambiar o Golfo do México para Golfo da América. Acho uma excelente ideia para quem já teve um casino chamado Taj Mahal em Atlantic City e o vendeu depois ao Hard Rock Café…

Candeias é um ingénuo. Se Trump tossir, ele anunciará um surto pandémico de proporções bíblicas. Se Trump sorrir, ele verá nesse singelo gesto o prelúdio de uma nova praxis diplomática. Se Trump elevar a mão para compor a cabeleira ou coçar a cabeça, ele vislumbrará uma conspiração, talvez envolvendo piolhos radioactivos. Se Trump cruzar os braços, ele descortinará o arquétipo de embargos económicos que nem pastel de nata e o queijo de Nisa pouparão. Se Trump bocejar, ele proclamará o despontar de uma era de desmotivação global, um fenómeno tão profundo que Nietzsche, da tumba, virá denunciar. Se Trump errar o caminho para o quarto na Casa Branca, ele afirmará que o mapa dos Estados Unidos se redesenhou durante a madrugada pela secreta tinta de um cartógrafo mefistofélico. Se Trump, enfim…

Candeias, pobre Candeias, viverá da crença inabalável de que cada gesto de Trump será um decreto; cada palavra um édito; e cada silêncio, ah, cada silêncio, minhas esclarecidas leitoras e doutos leitores, a mais temível das estratégias. Se Trump um dia decidir ficar quieto, Candeias talvez venha anunciar o fim do mundo.

Na certeza do seu cataclismo, Candeias lançou, porém uma trágica pergunta de ouro: “O que aí vem?” Ninguém sabe”, respondeu, o tonto. Que candura, depois de tudo o que antes postulara. Que leveza de espírito, que irresponsável abertura ao desconhecido! Como se não estivesse estado, neste mesmo texto, a traçar cenários dignos de um Nostradamus em delírio. Ora, afinal acaba a dizer que ninguém sabe o que vem, quando garantiu antes que seria terrível. É a eterna arte do jornalismo sensacionalista: criar um vácuo de incerteza para ali semear o medo e regado a ansiedade.

Trump e Musk, na narrativa de Candeias, serão, neste cenário de efabulação e de especulação, os monstros míticos que habitarão o seu Olimpo editorial. E então, com a altiva pose de quem carrega a tocha da verdade, Candeias e o seu Expresso vão “oferecer contexto” aos leitores. Enquanto o fim dos tempos não chega ao mundo, aproveita-se o tempo para fazer negócio sobre o fim do mundo.

Eis, pois, a verdade nua e crua: os jornalistas da desgraça, como Pedro Candeias, têm um segredo quase freudiano. Na sua alma, não são arúspices do fim dos tempos; são gestores da calamidade. Querem o caos, mas que seja um caos lucrativo, como uma girândola em chamas perpétuas que atrai curiosos e vende bilhetes à entrada. Deles se pode dizer que são como Ícaros invertidos: não alçam voo rumo ao sol, descem à escuridão, como garimpeiros malabaristas explorando as profundezas da vertigem até ao tutano. Afinal, é do precipício que vivem, nunca da queda.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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