Recensão: Onde as pêras caem

As trágicas vidas dos pequenos super-heróis

por Maria Afonso Peixoto // Junho 1, 2022


Categoria: Cultura

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Título

Onde as pêras caem

Autora

NANA EKVTIMISHVILI (tradução: Maria do Carmo Figueira)

Editora (Edição)

Dom Quixote (Março de 2022)

Cotação

16/20

Recensão

A premiada realizadora georgiana Nana Ekvtimishvili fez o seu debut como escritora em 2015 com Onde as pêras caem, e foi uma aposta ganha: publicado em inglês no ano passado, o seu (ainda) único romance foi nomeado para o International Booker Prize.

Dos seus filmes, destacam-se In Bloom, selecionado para representar a Geórgia na categoria de Melhor Filme Internacional na edição dos Óscares de 2014, e My Happy Family, exibido no Sundance Film Festival de 2017.

Onde as pêras caem é uma homenagem aos pequenos super-heróis da vida real, aqueles dos quais ninguém fala, que lutam diariamente pela sobrevivência em circunstâncias adversas. Por outras palavras, é a história de órfãos e crianças com deficiências mentais que são abandonados à sua sorte pelas respectivas famílias num colégio interno conhecido como a “Escola dos Idiotas”. O pano de fundo é o início da década de 1990, após a dissolução da União Soviética, na rua de Kerch, em Tiblissi, capital da Geórgia.

Nesta obra ficcional, a heroína é Lela, apresentada com traços heróicos: destemida, aguerrida e com uma personalidade vincada. O seu espírito rebelde e independente é, no entanto, contrabalançado por um lado bondoso e altruísta que, devido à sua “capa” protectora, não é logo perceptível a um mero estranho.

Os vilões da história são adultos: os pais que viraram as costas aos filhos, e lhes alimentam falsas esperanças de um dia os irem buscar, ou os “educadores”, como Vano, professor de História do colégio, e às mãos de quem as meninas sofrem abusos sexuais constantes. Já com dezoito anos, Lela vai, ao longo dos dias, congeminando o assassinato de Vano, que a violou repetidas vezes durante a sua infância.

Para além de motivada pelo desejo de vingança, Lela faz o papel de irmã mais velha e assume a missão de proteger o seu amigo Irakli, acalentando o sonho de o ver partir para uma nova vida fora das paredes do orfanato. Ika, como os colegas lhe chamam, é um menino que espera, há anos, que a mãe o venha buscar num “próximo fim de semana” que nunca chega.

A chance de deixar aquela instituição putrefacta, e de sentir pela primeira vez o calor de um lar e o aconchego de uma família parece estar ao alcance de Irakli quando um casal americano envia uma representante à Escola para adoptar um dos residentes. Porém, quando finalmente surge a oportunidade de Irakli começar do zero, dá-se uma reviravolta.

Escrito sem sentimentalismos, Onde as pêras caem é um retrato fiel e verossímil de um mundo à margem, mas que todos sabemos que existe. Nomeia, dá voz e corpo a estes anónimos que, tal como tantos outros, podemos não conhecer mas que andam por aí, num qualquer “edíficio-escola” nas periferias das cidades; e de quem ouvimos falar, de vez em quando, na televisão ou nos jornais. Talvez por isso, as personagens nos pareçam estranhamente familiares e as descrições tristemente reais. 

Todos nós, de resto, já nos teremos cruzado com vítimas de abusos e de abandono que, porventura, engrossam os relatórios de instituições de solidariedade social. Ou com as que, omissas dessas listas, vivem as suas vidas como as personagens deste romance: relegadas ao esquecimento depois de serem “saqueadas” pelos seus carrascos, a não ser que alguém como Ekvtimishvili se lembre de escrever sobre eles.

Onde as pêras caem é, enfim, sobre crianças especiais com vidas marcantes que, aqui, neste romance, como na vida real, vale a pena conhecer para evitar que ainda existam em próximas gerações.

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