Recensão: Paraíso

África é outro planeta

por Maria Carneiro // Junho 6, 2022


Categoria: Cultura

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Título

Paraíso

Autor

ABDULRAZAK GURNAH (tradução: Eugénia Antunes)

Editora (Edição)

Cavalo de Ferro (Maio de 2022)

Cotação

17/20

Recensão

Abdulrazak Gurnah, o surpreendente prémio Nobel da Literatura de 2021 (ninguém estava à espera), nasceu em 1948, em Zanzibar, Tanzânia, mas vive, desde a década de 1960, no Reino Unido, para onde fugiu, devido às convulsões políticas, no seu país, que levaram à perseguição, de cidadãos de origem árabe, como é o seu caso.

Começou a escrever aos 21 anos e a temática da sua obra passa pelos estudos pós-colonialistas, a vivência dos refugiados entre culturas e continentes, procurando sempre uma verdade que foge à explicação simplista e que é de alguém que sofreu na pele essa situação.  Para além disso, como profundo conhecedor do seu continente, Gurnah apresenta-nos uma África plural, multicultural, e não o retrato de um continente uniforme.

África é, de facto, um caldeirão de culturas que o autor nos descreve, com mestria, trazendo-nos a sua sensualidade, cheiros e cores e beleza selvagem omnipresentes em toda a obra.

A ação deste Paraíso, originalmente publicado em 1994, passa-se no tempo imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, ou seja, no preciso momento em que o complexo e tenso sistema social pré-colonial, da atual Tanzânia, se desmorona na presença dos primeiros europeus no território, os alemães.

São eles uma presença mítica, neste romance, e de quem se diz que “comem ferro” e são “cintilantes homens encarnados com pêlos nas orelhas” e que, para além disso, “apoderaram-se das melhores terras sem pagar uma única missanga, forçam as pessoas a trabalhar para eles e, qual praga de gafanhotos, a sua voracidade não conhece limites ou pudor”.

O romance conta-nos a história de Yusuf, que, aos doze anos, é entregue, pelo próprio pai, a um rico comerciante a quem se habituara a chamar tio. Parte um dia, com ele, numa viagem de comboio e “nunca ocorreu a Yusuf, nem por um instante, que iria ficar afastado dos pais por muito tempo ou que talvez não os tornaria a ver”. Foi isso mesmo que aconteceu.

Na sua nova vida, como escravo, Yusuf soube, por Kahlil, companheiro de infortúnio de quem se tornará amigo, e lhe diz logo no primeiro encontro: ”Quanto ao teu tio Aziz, para começo ele não é teu tio (…) está aqui porque o teu Ba deve dinheiro ao seyyid. Eu estou aqui porque o meu Ba lhe deve dinheiro…só que já morreu. Deus tenha piedade da sua alma”.

E é neste mundo que a criança vai crescer e tomar consciência de que aquele a quem chamava tio não é, realmente, seu tio e sim seu senhor, “um comerciante implacável de subtis odores e modos”, hábil nos negócios e admirado (e invejado) por muitos.

Grande parte do livro narra, precisamente, a expedição de Aziz e Yusuf e uma caravana enorme de transportadores e servos, capatazes e guias através da África profunda, numa viagem de milhares de quilómetros comercializando vários produtos e matérias primas que trocam, compram, vendem e dão de tributo a tribos por onde vão passando, sofrendo as mais variadas violências e ataques quer de animais, quer de homens.

Há referências a uma montanha nevada, um lago que conseguem atravessar num único dia e algumas quedas de água majestosas, mas não há nomes, nem mapas. “Escrevi presumindo que quem lesse conheceria o terreno e reconheceria o Kilimanjaro e o lago Tanganica.” disse o autor, numa entrevista ao El Pais. E de facto é possível ver o caminho que eles seguem, mas, ao não nomeá-lo, abre-se de alguma forma a possibilidade de que seja mais mítico, e de que o que é narrado possa acontecer noutro lugar qualquer. “O leitor pode imaginar sem ter que se vincular a um lugar específico”, acrescentou Gurnah, na mesma entrevista.

Nessa viagem Yusuf deixa de ser criança, mas continua a importar-lhe mais a beleza das paisagens por onde passam, no coração do país, e a do jardim da casa do seu senhor e as histórias que ouve aos seus companheiros de viagem e aos habitantes dos lugares por onde vão passando, do que a sua própria liberdade. Yusuf é um escravo, mas não se sente como tal, e só mesmo no final do livro veremos um gesto de resistência e de libertação, surpreendente pela decisão inesperada que toma.

Um livro de uma agradável leitura misto de romance, novela, literatura de viagens e História.

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