NICOLA VEGRO

Santo António de Lisboa: ‘Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas’

por Nuno André // Junho 13, 2022


Categoria: Entrevista P1

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Aos 63 anos, e com vasta experiência cinematográfica e televisiva, o italiano Nicola Vegro dá-nos uma visão diferente do santo que une Portugal e a Itália, Lisboa e Pádua: Santo António ou, para o mundo, Fernando de Bulhões. No romance António secreto: a força de um santo, e lançado agora em Portugal pela Paulinas Editora, conhecemos sobretudo o lado humano de alguém que não se coibiu até de lançar desbragadas críticas aos vícios da Igreja, como fez num seu escrito em Coimbra, em Junho de 1219: “Quantos são hoje os bispos que pregam a pobreza e, entretanto, são avarentos! Quantos são hoje os bispos que pregam a castidade e, entretanto, vivem na luxúria! Quantos são hoje os bispos que pregam o jejum e a abstinência e, entretanto, são glutões e gulosos. (…) Como anel de porco em focinho de porco, assim são os padres frouxos e bem ataviados; são como prostitutas que se entregam por dinheiro (…).” O PÁGINA UM esteve em conversa com Nicola Vegro durante a sua passagem por Lisboa.


Tem-se a ideia de que sobre Santo António já praticamente tudo foi dito. Dois grandes escritores portugueses – Aquilino Ribeiro, com Humildade gloriosa, e Agustina Bessa-Luís, com Santo António – ficcionaram a sua vida. Porque decidiu escrever agora sobre ele?

Existem muitos pontos em comum entre a situação social do tempo em que viveu Santo António e os dias de hoje. No seu tempo, a Igreja vivia um período de instabilidade, o Mundo estava no meio de guerras.

Como hoje…

Diria que se vivesse agora, António repetiria, por exemplo, a Embaixada de Paz que organizou quando Pádua estava em guerra, e iria ao encontro de Putin e Zelensky para lhes pedir que suspendessem o conflito de imediato. Escutava as duas partes. E fomentava o diálogo. António era uma figura de primeira linha, destemido, corajoso, contra corrente. Jamais seria passivo numa situação como esta que estamos a atravessar. Então, por isso mesmo, parece-me muito oportuno seguir as pisadas deste homem que a Igreja acabou por canonizar. Enfatizo no romance o homem culto, oportuno; o ser humano que atacava ferozmente a sociedade hipócrita e corrupta do seu tempo, mas que oferecia as soluções para a mudança. Apontava o caminho.

Nicola Vegro, autor de António secreto: a força de um santo.

No entanto, não é exatamente essa a imagem que o povo guarda dele… O casamenteiro e o milagreiro…

Todos conhecem o nome de Santo António, conhecem a figura, mas não conhecem o seu pensamento nem a sua personalidade. Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas, e que invadem a nossa imaginação, com as suas atitudes patéticas com um ar melancólico, com aquele toque anémico e evanescente que emana de todo o seu ser, como se fossem eunucos… Ele enfrentou todo o tipo de batalhas, principalmente pedindo apoios sociais, combatendo contra a pobreza e as desigualdades. Mas, também tocava em feridas profundas da Igreja, tais como a corrupção, a luxúria, as incongruências…

Era então uma espécie de activista?

De certo modo, sim. António obrigou a que se mudassem algumas leis, assegurou a criação de uma efectiva segurança social, deu a cara pela libertação de reclusos – muitas vezes injustamente condenados. Neste romance, António surge como um crítico, um pensador, um homem proactivo que deve ser redescoberto nos dias de hoje. Por exemplo, o custo do pão ou o custo da gasolina… são situações lamentáveis que não passariam despercebidas ao santo. Estou certo de que ele estaria ao lado do povo, a reclamar por preços mais justos apontando o dedo aos tiranos que fingem nada poder fazer quanto à descida dos preços.

Quis então desconstruir a imagem do santinho milagreiro…

Este livro é uma proposta e uma oportunidade para conhecer o pensamento de António. A força dele está na sua obra em vida, nas suas ideias. O seu legado não está propriamente na aparência simpática de um homem vestido de franciscano que sorri como se estivesse tudo bem. Não está tudo bem, nunca esteve!

O que mais destaca então na figura de Santo António?

Destaco o seu exemplo, a rectidão e o comportamento. A sua grande humildade… Foi capaz, em simultâneo, de apontar erros e soluções. Vejamos: como orador podia limitar-se a falar bem – tinha todos os dons para isso – e apontar todos os erros da sociedade. Mas ele fez muito mais do que isso. E não se limitou a atacar os pecadores ou os hereges, apontou sim para dentro da sua própria Igreja, para os bispos, para os padres, para os frades…

Onde e em que é que se baseou para escrever este romance?

Li os seus sermões e as cartas. Aliás, os discursos e as ideias no meu romance são o reflexo desses sermões. Apesar de ser uma obra de ficção, o livro não se trata de uma pura invenção da minha cabeça; pelo contrário, fui o mais fiel possível à sua palavra, ao seu carácter, à sua personalidade. A melhor forma de entender Santo António é lendo os seus textos originais e, depois, fazer uma espécie de destilação, tal como se faz com os licores, para no final recolher o mais precioso. Considero esta obra uma destilação das palavras de Santo António.

Nicola Vegro (ao centro), no passado sábado, durante o lançamento do seu romance, no Museu de Lisboa – Santo António.

Veio a Portugal para o lançamento do livro. Sentiu que a capital portuguesa tem o espírito de Santo António de Lisboa, que é também Santo António de Pádua?

Santo António encarna o espírito português. A minha visita a Portugal ajudou-me a entender a garra deste povo que foi capaz de se aventurar pelo mar, por exemplo. Pensei nisso esta manhã ao visitar Belém. Este espírito de aventura também estava no coração de Santo António. Aliás, é necessário olhar o horizonte e desejar ir mais além. É uma característica bem portuguesa!

Ainda que este seja o seu primeiro romance, mas tem já larga experiência em cinema e televisão. Essa experiência teve influência no momento de o escrever?

Este livro foi pensado como preparação para um filme. A minha esperança e o meu empenho é o de chegar à produção cinematográfica. Acredito que seja um mote para uma união entre vários países como Portugal, Itália, França, Espanha… e até Marrocos. Seria um investimento com retorno garantido. Divulga História, Cultura… é universal.

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