A ex-presidente do INFARMED, a pediatra Maria do Céu Machado, tem sido o rosto da acusação da líder do extinto movimento Médicos pela Verdade, Margarida Oliveira. Por alegadas violações deontológicas quer aplicar uma suspensão de três meses à sua colega. Porém, enquanto decorria o processo disciplinar, a mulher do falecido neurologista João Lobo Antunes deu consultadoria pontual à Janssen, uma das produtoras das vacinas contra a covid-19. E foi também júri de um prémio patrocinado por uma farmacêutica, ao lado do bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e de Pedro Rebelo de Sousa, irmão do Presidente da República.
A relatora do processo disciplinar da Ordem dos Médicos que castigou a anestesiologista Margarida Oliveira – acusada de “negacionismo” por integrar o extinto movimento “Médicos pela Verdade” e de violar uma dezena de normas do Regulamento de Deontologia desta profissão – tem ligações à indústria farmacêutica e, no ano passado, chegou a prestar serviços de consultadoria à Janssen Cilag, uma das produtoras de vacinas contra a covid-19. O acórdão final, datado de 7 de Dezembro do ano passado, foi divulgado no final da passada semana, podendo ser consultado aqui.
De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Maria do Céu Machado – que foi casada com o cirurgião João Lobo Antunes, falecido em 2016 – tem colaborado pontualmente com empresas farmacêuticas, após a sua saída do INFARMED, a que presidiu entre 2017 e 2019.
Pela consulta do Portal da Transparência e Publicidade desta autoridade nacional que regula os medicamentos, a pediatra Maria do Céu Machado – também professora jubilada da Faculdade de Medicina de Lisboa e com um vastíssimo currículo académico e institucional – apresenta em 2021 um registo de recebimento por “serviços de consultoria” não especificados à Janssen, no valor de 700 euros, com duração e âmbito incertos.
Também recebeu, naquele ano, montantes de mais três farmacêuticas: Lilly Portugal (600 euros), Ferrer Portugal (130 euros para participação no Congresso Português de Cardiologia) e ainda 1.550 euros pagos pela Boehringer Ingelheim por ser membro do júri no “BI Award for Innovation in Healthcare”.
Note-se que estes montantes, constante numa base de dados do INFARMED, podem não reflectir todos as vantagens económicas que envolvem médicos e farmacêuticas, uma vez que basta ser usada uma empresa para que seja difícil rastrear o beneficiário final.
Aliás, no caso específico dos montantes concedidos pela Boehringer Ingelheim para o júri daquele prémio, apenas Maria do Céu Machado e o psiquiatra Júlio Machado Vaz registaram um valor no Portal da Transparência e Publicidade. Sobre outros pesos-pesados da Medicina e influencers da política de Saúde do país que também foram membros do júri deste prémio, nada consta. São os casos, entre outros, de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem do Médicos; Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares; Ana Paula Martins, bastonária da Ordem dos Farmacêuticos; Carlos Robalo Cordeiro, catedrático de pneumologia da Faculdade de Medicina de Coimbra; David Marçal, comunicador de Ciência da Universidade Nova de Lisboa; Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde; e ainda Pedro Rebelo de Sousa, irmão do actual Presidente da República.
Estas ligações não terão sido consideradas incompatíveis pela própria Maria do Céu Machado, que liderou um grupo de 17 membros do Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Numa primeira decisão, em Fevereiro do ano passado, pretendeu suspender Margarida Oliveira por um período de seis meses. Agora, por recurso, estipula uma pena disciplinar de três meses.
Em causa, neste polémico processo, iniciado em finais de 2020 após três denúncias – entre as quais a de Pedro Abreu, ex-presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior –, estão, segundo a relatora Maria do Céu Machado, “conversas na rede social Telegram” em que Margarida Oliveira terá aconselhado “terceiros nas formas de eliminação de ‘restos virais’ dos locais onde é feita a recolha das amostras para testagem (PCR) ao vírus SARS-CoV-2”, e a sua participação em Janeiro do ano passado “numa manifestação, junto da Assembleia da República, onde proferiu diversas declarações contra a DGS [Direcção-Geral da Saúde], a Ordem dos Médicos, os testes RT-PCR e as Vacinas”.
Margarida Oliveira defendeu, segundo os autos, que “a dita ‘receita’ para a lavagem das fossas nasais e da orofaringe (…) é na sua essência uma recomendação de higiene e de hábitos de vida saudável a que qualquer médico está obrigado”. E, apesar de ser acusada de “negacionista”, sempre assumiu que “há efetivamente um surto epidémico associado a um agente virológico”, embora contestando o conceito de pandemia aplicado à covid-19 e muitas das medidas da DGS. Na mesma linha estiveram os médicos que testemunharam a favor desta anestesiologista, entre os quais Fernando Nobre, também ele alvo de um processo disciplinar.
O fundador da AMI, que tem sido uma das poucas vozes críticas à gestão da pandemia, comparou mesmo o processo contra Margarida Oliveira aos processos inquisitoriais dos séculos passados: “No julgamento da inquisição, ele [Galileu] contestava aquela ideia peregrina que tudo girava à volta da Terra e para não ir parar à fogueira ele até, enfim, deu o dito por não dito, perjurou-se, não obstante à saída disse, no entanto, a Terra gira à volta do Sol”, afirmou Fernando Nobre, transcrito nos autos, defendendo o arquivamento por estar apenas em causa um delito de opinião.
Os testemunhos dos defensores, ouvidos quase como pro forma, acabaram em saco roto. Maria do Céu Machado entendeu “que tem a médica arguida liberdade para ter as suas próprias convicções, todavia tais convicções devem estar associadas a um dever de cuidado no aconselhamento médico que faz à comunidade”. A pediatra defendeu também, por escrito, que ao médico não cabe proferir declarações “sobre a credibilidade em tratamentos, vacinas e testes numa situação em que impera o princípio da precaução em saúde pública.”
Porém, Maria do Céu Machado entra aqui em contradição com o que praticou durante o ano passado, pois prestou, por diversas vezes, declarações sobre a credibilidade das vacinas em crianças, mas nesses casos sempre de forma muito favorável. Por exemplo, em Agosto passado, defendeu no Público “a vacinação de jovens saudáveis a partir dos 12 anos só com uma dose”. E ainda mais falou, no mês passado, em entrevista ao Diário de Notícias, quando estalou a polémica sobre o parecer da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 sobre as crianças, com alguns pediatras a aconselharem prudência ou a desaconselharem mesmo o avanço do programa vacinal para esta faixa etária. Recorde-se que, conforme revelou recentemente o PÁGINA UM, ainda não se registou ainda qualquer morte por covid-19 em crianças portuguesas e a taxa de internamento tem sido extremamente baixa.
No acórdão do processo disciplinar a que o PÁGINA UM teve acesso, Maria do Céu Machado advoga mesmo a subjugação dos médicos, em geral, e de Margarida Oliveira, em especial, às posições e decisões governamentais. Na página 8 deste acórdão advoga “o dever especial de cuidado a que a médica [visada no processo] está adstrita, bem como o dever de garante da saúde em geral, norteada pelas orientações emanadas pela DGS, [que assim] deveriam tê-la impedido de expor as suas exaltações e preocupações em público e de dar recomendações públicas a terceiros, contrárias ao veiculado pelos órgãos de soberania portugueses.”
E a antiga presidente do INFARMED ainda vai mais longe no veredicto, ao afirmar, de forma dogmática, que “a médica arguida, ao agir da forma como agiu actuou de forma leviana e infundada, utilizando tanto uma rede social, como o espaço público, para transmitir mensagens de inquietação pública, instigando a um clima de tensão e colocando em causa, tanto a DGS, como os seus colegas médicos, bem como, em última análise, esta ordem profissional.” No total, a relatora apontou a violação de uma dezena de normas do Regulamento de Deontologia Médica.
O acórdão deste processo da Ordem dos Médicos – que curiosamente Maria do Céu Machado assina em nome de mais três colegas – ainda é passível de apelo para o Conselho Superior da Ordem dos Médicos, e posteriormente, se a defesa assim entender, para os tribunais. Ou seja, a anestesiologista Margarida Oliveira ainda não cumpriu nem cumprirá qualquer sanção enquanto a decisão sancionatória não transitar em julgado, algo que pode demorar anos.