No jornalismo há heresias. E há hereges. Bem sei, e por isso, herege me confesso: faço perguntas. Muitas perguntas. Faço perguntas incómodas. Sou relapso e pertinaz: insisto em fazer perguntas e incómodas perguntas. E até pergunto a pessoas que se incomodam porque lhes fazem perguntas. E as pessoas que mais se incomodam quando lhes fazem perguntas são paradoxalmente as pessoas cuja principal função é fazerem perguntas. Questionarem. Questionarem-se.
Os jornalistas, hélas.
Sim, os jornalistas gostam de fazer perguntas; mas detestam que lhes façam perguntas. Ofendem-se se lhes fazem perguntas. Muitos pelam-se em ser inquisidores, em ser verificadores de factos, em serem, enfim, fact checkers, mas jamais aceitam de bom grado o papel oposto.
Quando, na sexta-feira passada, abordei a recusa do Instituto Superior Técnico (IST) em ceder um pretenso relatório que atribuía mortes concretas aos festivais musicais e às festas populares, não estava em causa apenas a legítima desconfiança sobre a idoneidade científica de investigadores universitários, obrigados ao cumprimento de uma ética de abertura à comprovação e ao debate.
Em Portugal, perguntar ainda é visto como sinónimo de desconfiança; e se assim é, em muitos casos deve-se ao facto de existirem motivos para tal; e quem se incomoda por ser alvo de desconfiança – ou dúvida –, na verdade é porque tem motivos fundados, íntimos, para não querer justificar-se.
Por isso, a recusa do IST – que, certamente, será dirimida no Tribunal Administrativo de Lisboa, até porque o senhor professor Rogério Colaço não pagará aos advogados nem pagará custas nem sequer se envergonhará nem se demitirá se um juiz o obrigar a ceder documentos públicos ou a admitir que estamos perante um relatório-fantoche – releva outro tipo de problema. Grave. Muito grave.
Ou melhor, vários, e todos muito graves.
Primeiro, o jornalista (não identificado) da Lusa que relatou ter tido acesso a um relatório do IST tinha a obrigação – de contrário só pode ser tachado, sem complexo, de falta de rigor e ser um “pé de microfone” – de o validar, com sentido crítico. Teria de se questionar se, efectivamente, era plausível que as festividades e o levantamento das restrições em Junho passado tivessem tido a responsabilidade pela morte de 790 pessoas com covid-19, das quais 330 associadas às festas populares.
O jornalista da Lusa não podia ignorar que a sua própria agência noticiosa tinha divulgado, em 8 de Junho, umas previsões da mesma equipa de investigadores do IST, que se mostraram um falhanço rotundo.
Esse relatório de 6 de Junho – esse sim, comprovadamente publicado – estimara que “o número de contágios produzidos sem máscara com os níveis actuais de susceptíveis, em eventos como ‘Rock in Rio’ ser[ia] de 40.000 no total, sendo maior no caso dos santos populares em Lisboa e Porto”, e apontara para “um mínimo de 60.000 contágios nos dias mais movimentados em Lisboa e 45.000 no Porto”. Os investigadores do IST garantiam então, nesse início de Junho, que “todas as festas populares no país poder[iam] traduzir-se num total de contágios directos de, num mínimo, de 350.000 no país, podendo atingir valores mais elevados se novas variantes entr[ass]em em Portugal.”
Ora, na verdade o número de casos positivos em Portugal – em todo o território – foi quase linearmente diminuindo ao longo de Junho. Sempre. Paulatinamente. Não houve qualquer aumento nem estagnação. Nem com festas nem sem festas.
O SARS-CoV-2, caprichoso bicho, foi imune às vontades e às presciências dos modelos catitas dos senhores professores do IST. Do ponto de vista epidemiológico, o impacte das festividades foi nulo. E nem era preciso ser matemático, nem inteligente – bastaria ser um jornalista decente e com uma destreza numérica de quarta classe – para verificar que jamais se poderia identificar, com um modelo matemático ou de forma empírica, qualquer incremento nas transmissões.
Por absurdo, na realidade, em quantas mais festas se entrava – Santo António, São João, Rock in Rio e outros festivais –, menos casos positivos surgiam.
Por exemplo, para todo o país, no dia 1 de Junho a média móvel de sete dias estava nos 24.602 casos positivos para todo o país, no dia 8 tinha descido para 20.575 casos, no dia 15 já estava nos 15.368 casos positivos, no dia 22 baixou para os 12.939 casos positivos e no final do mês estava mesmo abaixo dos 10 mil casos.
Durante o mês de Junho, para desespero dos senhores investigadores – inexactos nas estimativas e precisos no erro –, a covid-19 acelerou mas na redução. Em Julho sucedeu o mesmo. De acordo com os dados do Worldometer para Portugal, no final de Julho contabilizavam-se 3.258 casos positivos (média móvel de sete dias).
Perante isto – e sobretudo perante o facto de o take da Lusa ter proliferado como notícia viral por outros órgãos de comunicação social –, será legítimo que eu desacredite na veracidade de um relatório, mesmo se citado por jornalistas? Eu julgo que sim, sobretudo porque, de forma clara, não foram cumpridos pelo jornalista da Lusa os preceitos de rigor e de isenção exigíveis à profissão.
Ademais, não se vislumbra qualquer motivo plausível para que o IST – uma instituição pública da área da Ciência – tenha escolhido especificamente a Lusa para ceder um suposto relatório em exclusivo e recusado posteriormente, e de forma tão enfática e veemente, o acesso a outros órgãos de comunicação social.
Será porque só a Lusa tem jornalistas credíveis e com capacidade para tratar estudos estatísticos e epidemiológicos? Ou será antes o contrário: os jornalistas da Lusa são permeáveis a aceitar qualquer tipo de “relatório”?
É, portanto, legítimo um jornalista pedir à direcção da Lusa que lhe apresente uma prova – e não necessariamente o relatório, porque essa é, na verdade, uma obrigação do IST – da existência do dito relatório. E perguntar se foram cumpridas as regras deontológicas e de verificação interna da veracidade dos elementos?
Claro que é. Defendo ser justificável e, neste caso em concreto, as dúvidas subsistirão, legitimamente, até que o relatório veja mesmo a luz do dia e possa ser analisado do ponto de vista jornalístico e científico. A gravidade do caso exige-o.
Mas, na mesma medida que é legítimo eu perguntar, também é legítimo que a jornalista Maria de Deus Rodrigues, directora-adjunta de Informação da Lusa, responda da seguinte forma: “O relatório que refere existe, naturalmente, caso contrário a Lusa não teria feito notícia. E foi tratado segundo as regras jornalísticas. Não cabe à Lusa, no entanto, facultar estudos a terceiros, o que é uma prorrogativa dos autores do mesmo.”
E, perante estas duas posições – e de não termos provas cabais da existência de um relatório cuja revelação a terceiros é recusado por uma instituição pública científica – que os leitores formem a sua opinião. No limite, que até me critiquem.
Na verdade, até eu – mantendo dúvidas sobre a existência formal deste (inacreditável) relatório – já formei uma opinião: nos moldes transcritos pela Lusa, gostava que este suposto documento não existisse, porque a existir constituirá uma vergonha científica – as supostas conclusões, com atribuições de mortes concretas, é uma vergonha científica, repito. Existir um relatório assim, saído do IST, será pior do que nunca ter existido, porque aí só estaríamos perante uma fraude. Assim, estamos perante uma vergonha para a credibilidade das instituições científicas portuguesas.
Mas, além de tudo isto, há um aspecto que verdadeiramente me preocupa: a facilidade que a imprensa mainstream tem de propalar notícias, tanto verdadeiras como falsas sem qualquer verificação prévia séria. Questionei responsáveis editoriais do Público, Observador, Visão, TSF, Correio da Manhã, jornal i, Sábado e CNN Portugal para saber se, tendo sido publicado o take da Lusa, houvera uma confirmação da veracidade dos dados, se houve confronto de outras fontes e, hélas, se alguém vira o famigerado relatório do IST.
Só dois responderam: Sábado e jornal i. E confirmaram que não tinham tido acesso ao relatório. Depreendo que todos os outros também não, até porque nem responderam… Responder a perguntas de um jornalista? Onde isso já se viu?
Mas o relatório existe, diz-nos a Lusa. E existe mesmo, mas só se tivermos fé. É nesta fase que hoje o jornalismo está: acredita por uma questão de fé, de confiança, sem questionar. E quem questiona, ah!, malvado! abrenúncio!, arreda satanás!, meu apóstata!, seu herege!