Mário Ferreira amuou e já não quer os 40 milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Disse, numa declaração à imprensa, que a campanha levada a cabo por Catarina Martins e Ana Gomes tinha sido indecente. Embora nenhuma delas seja a fiel destinatária do meu voto, o que fizeram, em especial Catarina Martins, foi perguntar aquilo que qualquer um de nós, se tivesse voz pública, perguntaria.
Ora, a empresa de Mário Ferreira garante agora que irá fazer o aumento de capital com fundos próprios em vez de recorrer ao empréstimo do PRR. A verdadeira questão é então: porque não o fez logo de início?
Por que razão decide um milionário gastar 28 milhões para ir 11 minutos ao espaço e depois recorre, sem qualquer pejo ou vergonha, a um empréstimo estatal de 40 milhões para financiar a sua empresa? A resposta é simples: porque pode.
Em Portugal, o risco do empreendedorismo é um mito. Histórias como a de Mário Ferreira, os empresários que estão sempre no sítio certo e desde sempre com os contactos certos, vão-se repetindo e raramente descobrindo. Não há nada ilegal, é o argumento repetido. Mas não precisa de ser ilegal para ser imoral.
Tal como nos negócios do BES, sobre os quais Salgado diz não se recordar.
O lucro foi sempre privado, o prejuízo sempre público. Luís Filipe Vieira terá sido o caso mais emblemático. Contraía empréstimos monstruosos, construía prédios e vendia os apartamentos. Beneficiava da especulação imobiliária e do acesso fácil ao dinheiro do BES para enriquecer ou, nas palavras dele, para ser um “homem que subiu a pulso”.
No dia em que tudo rebentou, a dívida foi dividida por 10 milhões de pessoas. Um daqueles jantares em que, comendo sardinha ou bifanas, todos pagámos lagosta.
É esta a essência portuguesa dos milionários do regime: o acesso a fundos que o comum dos cidadãos não tem. Se o BES me emprestasse 500 milhões, como fez ao Vieira, mesmo sem ter uma construtora, julgo que também o conseguia multiplicar. Sem sair de Lisboa, diga-se.
Interessa-me pouco que Mário Ferreira concorra a apoios públicos. Aliás, até percebo que o faça. Quem é que quer arriscar dinheiro do seu bolso quando pode usar o que é de todos?
Preocupa-me, isso sim, que a tão afamada comissão que ia controlar o destino dos dinheiros da bazuca, ache normal dar metade do orçamento previsto para o turismo a um só empresário, que, por acaso, tinha esses fundos em capital próprio.
Se não fosse o escândalo da viagem ao espaço e toda a celeuma pública, Mário Ferreira teria embolsado tranquilamente um empréstimo estatal, deixando várias pequenas e médias empresas sem nada.
Como é que isto acontece, quem é que controla os dinheiros da bazuca, como é que é possível que este empréstimo tivesse sequer sido aprovado e por que admirável coincidência o grosso dos dinheiros públicos aparecem sempre na órbita de empresários amigos?
Bem sei, perguntas que jamais serão respondidas enquanto os governos se alternarem na distribuição dos fundos.
A sociedade civil fez barulho, e Catarina Martins capitalizou-o. E fez bem, acrescente-se. O problema português nunca foi a falta de dinheiro, mas sim a forma como este é canalizado. Ao fim de 30 anos de subsídios europeus (ou empréstimos), continuamos a usar esses rios dourados para enriquecer uma pequena elite e alimentar uma clientela fixa, enquanto o português médio continua pobre. O salário médio em Portugal é um salário miserável à escala da Europa que se encaixa no Primeiro Mundo. Repito: o salário é miserável.
Enquanto isso, os Mários Ferreiras, bem colocados, vão usando os milhões próprios para brincarem aos Bezos, e o Estado, com dinheiro de todos nós, vai alimentando as suas empresas.
Resta-nos desejar boa viagem ao Mário e rezar pelos sucessos da Douro Azul. Tanto está garantida a magia dos 11 minutos que aguardam o Mário no espaço como é elevada a probabilidade de nos chamarem a pagar quando a coisa descambar.
Cada um nasce para o que nasce. Estudassem – ou tivessem andado na jotinha certa.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
P.S. Senti alguma vergonha alheia quando ouvi Mário Ferreira a dizer que todos os portugueses deviam ter orgulho nele. Pergunto…porquê? Por ser um utlizador da tecnologia desenvolvida por outros? Por ser um turista de luxo num tipo de “charter” aberto apenas a uma pequena elite? Por pagar para andar? Ou por ter a sua própria televisão a cobrir o “feito”?
Só existe em todo aquele processo um “feito” e esse foi conseguido pelas equipas de engenharia que desenvolveram os foguetões. De resto, são apenas recursos e mais recursos gastos por uma elite de milionários, em viagens absolutamente insignificantes, e pagas a um preço que nos deveria envergonhar: há crianças ainda a morrerem à fome no Planeta que, durante 10 minutos, os Mários vão observar ao longe.
E sim, o dinheiro é dele, faz o que quiser e até o pode gastar a acender charutos, que a ninguém diz respeito. Desde que seja, de facto, dinheiro dele e não sacado ao erário público, é-me absolutamente indiferente. Mas por amor da santa, endeusar um gajo que pagou para andar num carrossel de luxo e comparar a “epopeia” à do Fernão de Magalhães, está ao nível daquele orgulho luso, apenas porque, nos jardins da Casa Branca, os Obama passeavam um cão de água português.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.