RELATÓRIO DA FARMACOVIGILÂNCIA DAS VACINAS CONTRA A COVID-19

Infarmed e a “arte” dos três E: esconder, enviesar e enganar

white and black plastic bottle

por Pedro Almeida Vieira // Agosto 14, 2022


Categoria: Exame

minuto/s restantes

O PÁGINA UM apresenta hoje uma análise detalhada ao recente relatório do Infarmed da farmacovigilância das vacinas contra a covid-19. Além da fé em estudos com mais de um ano, o relatório com dados até final de Julho esconde muito, interpreta de forma enviesada e tenta fabricar uma narrativa. Com esta análise, o PÁGINA UM não pretende afirmar que as vacinas contra a covid-19 são inseguras; exige sim que a informação seja disponibilizada para análise independente e que o Infarmed mostre uma efectiva transparência, defendendo os interesses da Saúde Pública.


Com dados referentes a 31 de Julho, o Infarmed acaba de publicar mais um relatório de farmacovigilância sobre a monitorização da segurança das vacinas contra a covid-19 em Portugal.

Antes de debater o estilo deste relatório do Infarmed, diga-se que não disfarça ao que vem: logo na primeira página da Introdução, à terceira frase, dispara-se: “A vacinação contra a COVID-19 é a intervenção de saúde pública mais efetiva para reduzir o número de casos de doença grave e morte originados pela infeção pelo SARS-CoV-2. Diversos estudos comprovam que as vacinas contra a COVID-19 são seguras e efetivas.”

Mostra-se muito curioso observar um “árbitro”, que ainda por cima tem como função a defesa da saúde pública, fazer essa declaração de princípios. Pode-se dizer que, na verdade, remete para a existência de “diversos estudos”, e até os cita.

person holding white ballpoint pen

Fomos ver.

Descontando a referência ao INFOMED (Base de dados de medicamentos de uso humano) e a relatórios do Public Health England, o Infarmed remete os “comprovativos” de que as vacinas contra a covid-19 para cinco estudos em concreto, presumindo-se que fossem as últimas actualizações com dados científicos independentes e inquestionáveis.

Desenganem-se já.

O primeiro intitula-se “Effectiveness of Pfizer-BioNTech and Moderna Vaccines Against COVID-19 Among Hospitalized Adults Aged ≥65 Years” – e, portanto, abrange apenas população com mais de 65 anos – e foi publicado como relatório do United States Department of Health and Human Services em Maio de 2021. Portanto, há 15 meses.

Refere-se este artigo a dados recolhidos, portanto, numa fase muito prévia da vacinação – ou seja, sem se poder aferir de efeitos a médio e longo prazo. Além disso, este relatório integra quatro investigadores com ligações à Pfizer. Daqui se compreende, desde já, a necessidade de uma regulação independente em termos de farmacovigilância, e que o Infarmed não pode nem deve assumir que este estudo (não inteiramente independente) constitui uma garantia da eficácia e da segurança das vacinas.

O segundo estudo intitula-se “Effectiveness of BNT162b2 mRNA Vaccine Against Infection and COVID-19 Vaccine Coverage in Healthcare Workers in England, Multicentre Prospective Cohort Study (the SIREN Study)”, e ainda se mostra mais fraco como argumento científico para o Infarmed. Aconselho mesmo que seja retirado de um próximo relatório.

Capa do último relatório do Infarmed. São 13 páginas com parca e enviesada informação.

Integrando investigadores associados à vacina da AstraZeneca, este artigo está a “marinar” desde 22 de Fevereiro de 2021 num portal como Preprint. Passaram mais de 17 meses desde a pré-publicação e custa a ser validado pelos seus pares. Formalmente, ainda não é um artigo científico e os 17 meses de espera não são uma boa notícia.

O terceiro estudo intitula-se “Vaccine side-effects and SARS-CoV-2 infection after vaccination in users of the COVID Symptom Study app in the UK: a prospective observational study”; e este sim está já publicado na revista científica The Lancet Infectious Diseases. Porém, foi publicado em Julho de 2021.

Como facilmente se compreende aborda apenas os efeitos de curto prazo das vacinas, ainda mais numa fase em que ainda não se tinha decidido politicamente dar doses de reforço (terceira e quarta toma). Basta, aliás, citar a parte final das conclusões deste estudo para perceber que utilizá-lo, como faz o Infarmed, como garantia da eficácia e da segurança das vacinas é perfeitamente abusivo:

In conclusion, short-term adverse effects of both vaccines are moderate in frequency, mild in severity, and short-lived. Adverse effects are more frequently reported in younger individuals, women, and among those who previously had COVID-19. The post-vaccine symptoms (both systemic and local) often last 1–2 days from the injection. Our data could be used to inform people on the likelihood of side-effects on the basis of their age and sex and the type of vaccine being administered. Furthermore, our data support results from randomised controlled trials in a large community-based scenario showing evidence of reduction in infection after 12 days and substantial protection after 3 weeks.”

Na verdade, estudos desta natureza mostram, sim, a necessidade de uma farmacovigilância independente – e que analise a informação recolhida ao longo do tempo (e não apenas de curto prazo) sem estar com uma postura pré-concebida de que um medicamento é seguro porque… há estudos.

Mas avancemos. O quarto estudo citado pelo Infarmed intitula-se “BNT162b2 mRNA Covid-19 Vaccine in a Nationwide Mass Vaccination Setting”. Digamos que “sofre” do mesmo problema do anterior.

Publicado em 24 de Fevereiro de 2021 no New England Journal of Medicine, mostra bem os “estranhos tempos” da Ciência em tempos de pandemia: o artigo científico aborda a eficácia da vacinação com base na recolha de dados entre 20 de Dezembro de 2020 e 1 de Fevereiro de 2021, e foi logo aceite menos de um mês após ser encerrado. Turbo-ciência. Além disso, estamos perante um estudo da primeira fase da vacinação, e nem sequer se debruça sobre eventuais efeitos secundários. Também não abrangeu população com idade inferior a 16 anos nem população com infecção prévia do SARS-CoV-2.

Não sei se vale a pena referir que os valores apontados de eficácia das vacinas neste estudo – numa altura em que a variante Ómicron ainda não surgira – são hoje pouco realistas.

woman in white long sleeve shirt sitting on chair
Onde está a Ciência e o rigor nos tempos que correm?

O quinto estudo intitula-se “FDA-authorized mRNA COVID-19 vaccines are effective per real-world evidence synthesized across a multi-state health system” e foi publicado na revista Med em Agosto de 2021. Consiste num estudo feito por uma empresa médica (Mayo Clinic), e considerando a data da sua publicação, fácil se mostra concluir que se aplica às primeiras fases da vacinação e quando se estava perante outras variantes dominantes. As anotações sobre as limitações deste estudo, expostas no próprio artigo, deveriam levar o “nosso” Infarmed a uma maior contenção.

Dissecar estes estudos “lançados” pelo Infarmed para sustentar uma “tese” – que não lhe cabe fazer, porque a sua função é avaliar, de forma independente, eventuais efeitos adversos não detectados nas fases prévias dos ensaios clínicos – serve para demonstrar a falta de independência do regulador nacional nesta matéria.

E constitui a antecâmara para mostrar a forma enviesada como o Infarmed apresenta números e os comenta no seu relatório.

Aliás, como esconde dados e como interpreta de forma enviesada as reacções adversas (e a sua gravidade). E quando se esconde ou se interpreta abusivamente, legitimamente há motivos para desconfiar das motivações.

Através da leitura deste relatório do Infarmed – e dos anteriores – não se sabe, por exemplo, o número de casos por grupo etário das hospitalizações, risco de vida (e quais as afecções e as eventuais sequelas) e morte decorrentes da vacinação.

Essa informação é vital, porque não é indiferente o risco em função da idade, tendo em conta uma doença (que a vacina pretende evitar) que apresenta taxas de letalidade (também em função da variante e também da imunidade natural) absolutamente distintas.

clear glass bottle
Quem sai beneficiado por não se saber toda a informação? E quem sai prejudicado?

Um efeito adverso grave num grupo etário em que a doença é bastante letal não pode ser visto da mesma forma que um efeito adverso grave num grupo etário em que a doença é praticamente benigna. Uma morte causada por uma vacina (medicamento), contra uma doença que tem uma taxa de letalidade de 15% num determinado grupo etário numa certa fase, não pode ser olhada nem analisada da mesma forma que uma morte causada num grupo etário em que a taxa de letalidade seja praticamente de 0,00% numa faixa etária de pessoas jovens e saudáveis. Para o primeiro caso, a decisão de manter o medicamento pode justificar-se; no segundo caso não.

Aliás, veja-se como reagiram as autoridades de saúde da Dinamarca perante a vacinação de menores de idade por força do (re)conhecimento científico. Aliás, este país escandinavo já deixou de permitir a vacinação de menores de 18 anos.

Ora, no seu relatório, o Infarmed esconde intencionalmente toda essa informação.

Por outro lado, o relatório do Infarmed impossibilita também de se saber quais os efeitos adversos de médio e longo prazo sobre as pessoas vacinadas, até porque lança logo um aviso quando se refere às mortes causadas pelas vacinas:

Estes acontecimentos não podem ser considerados relacionados com uma vacina contra a COVID-19 apenas porque foram notificados de forma espontânea ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. Na grande maioria dos casos notificados em que há informação sobre história clínica e medicação concomitante, um resultado adverso fatal pode ser explicado pelos antecedentes clínicos do doente e/ou outros tratamentos, sendo as causas de morte diversas e sem apresentação de um padrão homogéneo. A vacinação contra a COVID-19 não reduzirá as mortes provocadas por outras causas, por exemplo, problemas de saúde não relacionados com a administração de uma vacina, pelo que durante as campanhas de vacinação é expectável que as mortes por outras causas continuem a ocorrer, por vezes em estreita associação temporal com a vacinação, e sem que necessariamente haja qualquer relação com a vacinação.

girl in white and blue striped long sleeve shirt holding baby doll

Estas frases são muito verdadeiras, mas com um “problema”: quando se tratou ou trata da doença propriamente dita – a covid-19 –, as autoridades de saúde nunca tiveram a mesma interpretação.

Veja-se como ficaria esta passagem do relatório do Infarmed se se aplicasse à covid-19 [marca-se a negrito as partes alteradas do texto original do Infarmed]:

“Estes acontecimentos não podem ser considerados relacionados com a COVID-19 apenas porque foram notificados de forma espontânea ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. Na grande maioria dos casos notificados em que há informação sobre história clínica e medicação concomitante, um resultado adverso fatal pode ser explicado pelos antecedentes clínicos do doente e/ou outros tratamentos, sendo as causas de morte diversas e sem apresentação de um padrão homogéneo. A COVID-19 não reduzirá as mortes provocadas por outras causas, por exemplo, problemas de saúde não relacionados com a esta doença, pelo que durante a pandemia é expectável que as mortes por outras causas continuem a ocorrer, por vezes em estreita associação temporal com a COVID-19, e sem que necessariamente haja qualquer relação com a COVID-19.”

Parecem lógicas as frases assim, certo?

womans blonde hair in front of black leather couch
Quem tem medo da informação? Quem tem medo dos olhares independentes?

Aliás, há um outro aspecto onde se mostra um enviesamento na análise. Como se sabe, as autoridades andam a inculcar a ideia de existir uma “pandemia” de long-covid – efeitos de longo prazo da covid-19. Porém, se uma parte muito substancial da população que teve covid-19 também foi vacinada, como atribuir cientificamente uma deterioração da saúde a uma causa ou a outra? Ou a outra qualquer?

Na verdade, está verdadeiramente o Infarmed a considerar os efeitos de longo prazo da vacinação?

Por outro lado, veja-se o rigor “científico” do Infarmed mesmo quando, escondendo dados essenciais, deixa “rabos de fora”. Na página 6 escreve que “verifica-se que as reações adversas às vacinas contra a COVID-19 são pouco frequentes, com cerca de 1 caso em mil inoculações, um valor estável ao longo do tempo”. Mentira. Falso.

Fazendo umas contas simples a partir dos quadros disponibilizados, e se compararmos globalmente as vacinas administradas em Abril-Maio de 2022 (441.980 doses) e em Junho-Julho (700.997), verificamos que foram registadas, respectivamente, 480 e 1.204 reacções adversas. Significa que no primeiro período se passou de um registo de 1,08 casos por 1.000 vacinas para 1,72 por 1.000 vacinas no período mais recente. Resultado: temos um incremento de 59% nas reacções adversas que coincidiram com a fase da quarta dose para os mais idosos. Mesmo que existam reportes deferidos (que não é dito), o Infarmed não considera isto relevante?! Não batem as sinetas de alarme?

E também o Infarmed não considera relevante que, face aos dados de Dezembro de 2021, as reacções adversas da vacinação – contra uma doença que é genericamente benigna para crianças e adolescentes saudáveis – tenham subido de 0,06 casos por 1.000 vacinas para 0,21 na faixa dos 5 aos 11 anos – ou seja, um aumento de 250% –, e tenha incrementado de 0,17 para 0,22 na população dos 12 aos 17 anos (aumento de 25%)? Nada disto conta para o Infarmed?

Infarmed declara que a “transparência é um [seu] princípio fundamental”, mas luta pelo contrário no Tribunal Administrativo de Lisboa.

E depois de tudo isto, ainda tem o Infarmed o descaramento de terminar as suas 13 páginas cheias de coisa nenhuma, e parca e enviesada informação, com a seguinte frase: “A transparência é um princípio fundamental para o Infarmed e para a Agência Europeia do Medicamento”.

Claro que é! Por isso mesmo, o Infarmed anda a batalhar no Tribunal Administrativo de Lisboa para evitar ser obrigado a entregar os dados anonimizados e em bruto do Portal RAM ao PÁGINA UM. O processo de intimação do PÁGINA UM, recorrendo ao FUNDO JURÍDICO financiado pelos leitores, foi intentado em Maio, aguardando-se nas próximas semanas uma decisão. Fundamental para se saber a verdade.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.