Tomámos conhecimento este mês, pelos órgãos noticiosos, do comunicado conjunto dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de nove países europeus (onde Portugal não figura) de que o Governo de Israel ocupou, encerrou e expulsou fisicamente das sedes respectivas seis organizações não-governamentais (ONG) na Cisjordânia, acusando-as de terrorismo, de serem associadas da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP).
Esta acção vem na sequência da designação pelo mesmo Governo, já a 22 de Outubro de 2021, dessas mesmas organizações enquanto entidades terroristas, concretamente do desvio de fundos a favor dos guerrilheiros.
Ora, sucede que, apesar de serem compreensíveis, de um ponto de vista lógico-argumentativo, os interesses que orientam estas acções do Estado de Israel (bastando para tal ler ou ouvir um qualquer teórico israelita hodierno sobre estas matérias, como seja Boaz Ganor) – com as quais, de resto, discordamos –, já diz a vox populi que se tudo for algo, então nada o é.
Existe, por isso, um problema definitório, conceptual, quanto ao Terrorismo, “palavrão” tantas vezes usado, a maioria delas errónea ou imprecisamente.
Havendo mais de uma centena de definições deste conceito, em termos doutrinários as Nações Unidas adoptaram a formulação académica do holandês Alex P. Schmid (1984) no seu Political Terrorism: A Research Guide to Concepts, Theories, Date Bases and Literature (apud Bessa, 2016), considerando o Terrorismo como um método “de reiterada acção violenta inspirada na angústia, utilizado por pessoas, grupos ou Estados de forma clandestina, por razões idiossincrásicas, criminosas ou políticas, por meio das quais – a diferencia do assassinato – o objectivo imediato da violência não é o objectivo final.”
Esta abordagem é prosseguida por diversos autores, menos e mais actuais, sendo que perfilamos uma visão distinta (de elevado impacto em termos práticos), onde se distingue “terror” de “terrorismo”, com o vector decisivo deste último ser a alteração política: “(…) the fundamental aim of the terrorist’s violence is ultimately to change ‘the system’ (…)” (Hoffman, 1998), o que redunda na circunstância de se considerar o terrorismo como “(…) the deliberate creation and exploitation of fear through violence or the threat of violence in the pursuit of political change” (Hoffman, 1998). Na prática, o que as instituições nacionais e internacionais que nos regem optaram por fazer, confrontadas que foram com este problema de falta de acordo universal para a definição desta realidade, foi contorná-lo, descrevendo e definindo as acções, os agentes, as consequências do terrorismo, e mesmo por referência às intenções de actos já criminalizados, utilizando até uma técnica jurídica remissiva não só confusa como pouco eficiente, pensamos.
Numa perspectiva não-Ocidental, a Convenção Árabe do Terrorismo que foi levada a efeito no Cairo em Abril de 1998, preconiza este fenómeno como “[q]ualquer acto ou ameaça de violência, quaisquer que sejam os seus motivos ou propósitos, que surjam por iniciativa própria ou colectiva, procurando semear o pânico entre os povos causando-lhes danos, ou colocando as suas vidas, liberdades ou segurança em risco, ou procurando causar prejuízos no ambiente, instalações públicas ou privadas, ou ocupando ou apoderar, ou procurando expor ao perigo recursos nacionais.” (Bessa, 2016).
Compreensivamente abrangente e laica esta formulação, determinada a expurgar preconceitos de ordem religiosa.
Qual a solução, então? Conhecimento e compreensão, com rigor. “Classificar um ato, um grupo, uma pessoa, mesmo um Estado ou uma entidade supranacional, como terrorista, depende do contexto, de quem classifica, de quem interpreta e da época histórica (os terroristas de uns podem ser os combatentes da liberdade para outros).” (Lemos Pires, 2017), ou seja, falamos da perspectiva.
O terrorismo depende da perspectiva. Depende do olhar de quem se debruça sobre esta temática, depende da compreensão de que este jogo de realidades nunca é apenas preto ou branco, mas sim de diversos matizes de cinzento – a “[z]ona cinzenta (…) onde encontraremos o terrorismo”, nas palavras de Townshend (2006) – que carecem de entendimento. É sobretudo uma questão de perspectiva, sobre quem olha para uma determinada realidade e sente medo (consequência) ou, por outro lado, desejo de iniciativa para alterar essa realidade, estando (normalmente) subjacente a isto um sentimento de injustiça.
Injustiça percebida esta, muitas vezes, na base de processos de radicalização, mesmo com ausência de um input radicalizador externo, o que aumenta a exposição societária a retóricas de extremismos violentos. Para mais, hodiernamente, potenciados pelas TIC.
Para este desiderato, sustentamos que o terror (e não o terrorismo) é que pode ser considerado simplesmente um método, como ensina o politólogo Sunil Khilnani (citado por Townshend, 2006), sendo que, tendo presente que o terrorismo não se reconduz apenas àquele denominado jihadista, concebemo-lo com as seguintes características:
- Existência ou ameaça de violência;
- Acção voluntária, individual ou grupal, organizada ou não;
- Contra pessoas ou alvos indiscriminados ou com representação simbólica;
- Para atingir um objectivo secundário de condicionar uma acção ou abstenção duma entidade com poder, normalmente estatal, ou de perturbar os termos do «nexo sinalagmático» de uma sociedade;
- Orientada por uma arquitectura ética que o(s) autor(es) considera(m) legítima;
- Cujas consequências ou impacto potencial serão graves ou danosas;
- Este estado de coisas seja passível de difundir uma mensagem ou sentimento generalizado, seja apelativo/cativante ou negativo (como o medo), condizente com a ética legitimadora subjacente.
Identificamos também, mesmo no dia-a-dia, imprecisões conceptuais (sendo o conceito de jihad um caso paradigmático) que prejudicam uma boa construção dogmática das tipologias de terrorismo (conscientes de que existe mais do que uma categorização admissível), sendo fundamental, a nosso ver, compreender que aquilo que está em causa é o extremismo violento, tendo por base uma ideologia (normalmente) política.
Se algumas destas imprecisões fossem ultrapassadas, alçando-nos em maior conhecimento, seria possível não se promoverem sentimentos de rejeição sem causa, afastando-se uma certa terminologia não só errónea como contraproducente, bastando atentar no caso do termo “terrorismo islâmico”. Apreenderíamos, destarte, que organizações como o ISIS (e outras semelhantes) não são organizações políticas que praticam violência, mas grupos armados que racionalizam politicamente as suas acções violentas.
Estas conclusões convocam, como pretendemos demonstrar mais demoradamente noutros escritos, uma resposta contra-terrorista com base na investigação criminal preventiva (e proactiva) do terrorismo, não só por imperativos de acção, mas de princípios fundacionais do nosso ordenamento jurídico, como os direitos fundamentais, a legalidade democrática ou a separação de poderes.
Daqui resultam aspectos de análise que poucas atenções têm obtido até agora, em termos de doutrina portuguesa, como sejam o ‘crime-terror nexus’ ou o estudo das ‘root causes’ do terrorismo. Rectius, compreender as razões de aparecimento de grupos, neste domínio, como os da aliança HTS (onde se inclui a Jabhat Fateh al-Sham, anteriormente Jabhat al-Nusra), na Síria, ou a da AQMI, al-Mourabitoun, Frente de Libertação de Macina e Ansar Dine (denominada JNIM), no Sahel, são de singular importância.
No mesmo sentido, as especificidades ciber, nas suas vertentes do ciberterrorismo e da dimensão ciber do terrorismo, por serem realidades criminógenas distintas, exigem um tratamento diferenciado, mesmo tecnicamente. Em oposição, uma resposta meramente securitária (ou militarista) não alcançará os efeitos pretendidos a longo prazo: “[m]ore sophisticated technology and increased military force will not end terrorism in the longterm.” (Moghaddam, 2005).
Após aturado discorrer, concluímos pela indissociabilidade e interdependência do trinómio Segurança-IC-Intelligence no âmbito CT, o qual, na verdade, é uma disciplina que lida com um fenómeno criminal, simultaneamente prosseguindo fins securitários, com recurso a produção de informações, onde a garantia do conteúdo substantivo da segurança interna é inerente à defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos. Decorre daqui, ainda, a desnecessidade dos serviços de informações internos, pelo menos no que ao campo CT diz respeito, o que advogámos.
De um ponto de vista hermenêutico, o terrorismo, considerado holisticamente, para além de ser um fenómeno hodierno político-social, é, sem margem para dúvida, um fenómeno criminal. Não só é criminal ao nível do combate e das respostas que as nossas sociedades lhe encontram (neocriminalização de comportamentos normais num determinado contexto, cf. nº 11 do artigo 4º da Lei nº 52/2003), uma vez que contende com bens jurídicos que elegemos com a maior dignidade jurídica (nomeadamente a constitucional e a do direito natural), mas é também criminal ontologicamente.
Na sua origem identificámos dois níveis. Um, porquanto as acções de que lança mão, ab initio, são em si já tipificadas ou genericamente consideradas como crime, com especial manifestação no ciberespaço (designadamente na utilização da darknet, etc.). Outro, visto as motivações subjacentes à actividade terrorista, mesmo na sua vertente ciber, serem muitas vezes, em primeira linha, mas ocultas, razões mais orientadas para a obtenção de vantagens ilícitas individuais, com um mero “aparente” radicalismo ideológico.
Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança
Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”
BIBLIOGRFIA
BESSA, João Manuel de Andrade Pinto – “As Nações Unidas e o Terrorismo”. Revista Militar n.º 2458 – Ano III, Novembro de 2016.
HOFFMAN, Bruce – Inside Terrorism. 1.ª Ed. London, 1998, ISBN: 0575065095.
LEMOS PIRES, Nuno – “As plataformas cibernéticas para a exponenciação do terrorismo transnacional”. Revista CYBERLAW (CIJIC). ISSN: 2183-729. N.º III (2017), p. 80-92.
MOGHADDAM, Fathali M. – The Staircase to Terrorism: A Psychological Exploration. American Psychologist. Ano LX, n.º 2 (Feb./Mar. 2005), p. 161-169.
TOWNSHEND, Charles (2002) – O Terrorismo. 1.ª Ed. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2006. ISBN: 989-552-189-8.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.