Vértebras

Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Agosto 28, 2022


Categoria: Opinião

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Muitas vezes – ainda hoje, por sinal –, detecto pequenos erros ou imprecisões naquilo que escrevo. Por exemplo, constatei que há uma semana escrevi um artigo intitulado: “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior de sempre”. Errado. E o artigo foi corrigido passando agora a intitular-se “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980”. Está 100% correcto – e, aliás, acertarei a minha previsão. E está um título escrito com prudência, porque, na verdade, talvez seja desde 1970 ou até desde um ano anterior, mas assim excluo o “sempre”, porque não era verdade.

De facto, é sempre arriscado escrever “sempre” num artigo; por mais aliciante que seja, é um perigo.

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Embora os meus detractores não me desculpem – embora tenha sido eu a apanhar o erro –, confesso que este adveio de um excesso de confiança nos meus conhecimentos. Por vezes, dá maus resultados, mesmo se não estamos perante uma situação que altere a gravidade daquilo que se denunciou: um excesso de mortalidade desde Fevereiro de 2022, inexplicável e intolerável nos tempos modernos.

Com efeito, para escrever “sempre”, baseei-me nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Pordata desde 1980 (o ano a partir do qual existe uma base de dados de fácil consulta). Ora, sabendo eu que, nos tempos modernos, os Verões são muito menos mortíferos do que os meses de Inverno, extrapolei abusivamente que, para uma população menor em décadas passadas, não encontraria tanta mortandade em meses estivais, como Agosto.

Não é bem assim. Ou melhor, não era bem assim. Deu-me para procurar dados nos relatórios da Estatística do Movimento Fisiológico de Portugal do INE dos anos 20 e 30. Trabalho árduo e demorado, mas que acabou por ser a merecida penitência para os meus erros.

De facto, embora sejamos agora uma população mais envelhecida e maior do que nas primeiras décadas do século passado, houve vários anos em que se morreu mais. Por exemplo, em 1918 – o ano da gripe espanhola – morreram cerca de 248 mil pessoas, o que dá uma média mensal de 20 mil pessoas. Diga-se, contudo, que “apenas” cerca de 9% foram por gripe espanhola – voltarei, aliás, a este tema muito em breve.

Portanto, embora não tenha encontrado valores mensais disponíveis para aquele ano, de certeza absoluta que na Primavera e Verão de 1918 terão morrido muito mais do que 10 mil pessoas em cada mês.

Mas mesmo depois da gripe espanhola – que atacou Portugal quase em exclusivo no ano de 1918 – houve anos de maior mortalidade. Verifico agora a raiz do meu erro: não considerei a dimensão da mortalidade infantil sobretudo até à primeira metade do século XX.

De facto, a mortalidade total estava muitíssimo dependente da taxa de mortalidade infantil, que atingia proporções inauditas, completamente assombrosas, sobretudo por diarreias, enterites e outras doenças profundamente letais nos primeiros anos de vida. Além disso, a mortalidade por malformações era também elevadíssima. Natural, na verdade – ao contrário do que se diz agora – era ver-se pais a enterrar filhos.

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Acresce que, nas décadas de 20 e 30, a fertilidade era elevada. Por ano, era habitual nascerem cerca de 200 mil crianças numa população de 6 milhões de habitantes. Agora, que somos 10 milhões de habitantes, nascem cerca de 80 mil crianças por ano.

Porém, nas primeiras décadas do século XX, as doenças até aos cinco anos de idade dizimavam uma grande parte dessas esperanças de vida. Para se ter uma ideia, em 1918 morreram 77.550 crianças com menos de cinco anos. Destas, estão incluídas 11.370 falecidas antes de completarem dois anos por causa de diarreias e enterites, e mais 5.862 por “debilidade congénitas”.

Meia década mais tarde, em 1923, num ano já sem resquícios da gripe espanhola – a gripe endémica causou então “apenas” 2.000 (exactos) óbitos –, a mortalidade infantil cifrou-se em 56.933 óbitos, sendo que 12.719 se deveram a diarreias e enterites, enquanto as “debilidades congénitas” causaram 5.764 mortes infantis.

Se considerarmos, que em 1923, a mortalidade total foi de 141.775 óbitos, conclui-se então que a morte de crianças com menos de cinco anos representou 40% do total!

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Nos anos antecedentes e posteriores, durante algumas décadas, este foi o peso relativo das fatalidades infantis, que tinham um maior peso nos meses de Verão, período onde certas doenças infecciosas – muito por via da falta de saneamento – incidiam.

Portanto, o meu erro foi subestimar a elevadíssima mortalidade infantil nos primórdios do século XX. O “sempre” estava ali a mais, porque bastaria, para aquilatar da gravidade do que se está a passar agora, dizer que a situação é a pior dos últimos 10 ou 20 anos, porque é esse o contexto histórico que nos deve guiar sempre.

Ora, mas daqui quero passar – e não é por acaso que se faz referência ao ano de 1923 – para um outro tipo de erros, muitíssimo mais grave, cometido pela comunicação social mainstream, sobretudo aquela que se presta ao fact-checking.

Neste aspecto, peguemos então no paradigmático exemplo de um fact-checking do Observador sobre se “estamos perante a maior mortalidade de sempre em Portugal”. A “análise” conclui, entre outros aspectos, que a “mortalidade geral não é maior de sempre em Portugal: houve mais óbitos em 1923, revelam dados do INE”.

Fact-check do Observador sobre se 2022 apresenta a maior mortalidade de sempre e a falta de contextualização

Ora, na linha do que disse anteriormente, um fact checking desta natureza não pode jamais olhar para os números de forma estática. Há um “dinamismo” social que deve entrar na equação. Temos de saber o que estamos a comparar e como devemos comparar. E sobretudo qual o objectivo dessa comparação.

Um fact-checking não deve ser uma mera análise quantitativa. Na verdade, saber se a mortalidade de um Verão assume ou não o valor mais elevado de sempre – desde que Portugal é um país – mostra-se irrelevante. É uma curiosidade histórica.  

Em Saúde Pública devemos olhar sim para uma série longa de indicadores apenas aferir as melhorias tecnológicas e dos cuidados médicos. Mas não serve para identificar, numa perspectiva de uma ou duas ou três décadas, anomalias graves num sistema de Saúde.

Por isso, não faz sentido algum andar à procura de um ano como o de 1923, tão para trás, para mostrar que a situação de 2022 não está a ser assim tão má. Para concluir que, afinal, houve um ano pior do que o presente está a ser. É um disparate. É uma irresponsabilidade. Não é jornalismo. É um péssimo trabalho de fact-checking.

Este é o caso do fact-checking do Observador no caso em apreço. Diz isso quem acabou de confessar um erro, que se penitenciou e que o explicou.

E digo isto do fact-checking do Observador, e de tantos outros, porque, neste caso, desde logo é uma rotunda aselhice comparar um ano (1923) em que a mortalidade infantil representava 40% da mortalidade total com outro ano (2022) em que a mortalidade infantil representa apenas 0,23% (até 27 de Agosto houve 194 mortes de menores de cinco anos, entre os 82.868 óbitos registados)

Não podemos comparar dois anos (1923 e 2022) – e os anos intermédios – sem enquadrar a evolução na esperança média de vida, no tratamento de doenças, em tudo e mais alguma coisa.

Se um jornalista não souber sequer fazer uma contextualização, daqui a nada ficaremos satisfeitos por nos tirarem todos os direitos conquistados em 25 de Abril de 1974, porque afinal um fact-checking surge a concluir que, mesmo assim, estamos melhor com o regresso aos tempos da Outra Senhora do que estavam os nossos antepassados no tempo do Feudalismo.

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