PLANANDO NA TERRA REDONDA

A caminho do Árctico: dia 3, entre glaciares, montanhas e vida

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Prestes a realizar um dos meus sonhos, de ver ursos polares no seu habitat natural, passei o dia a caminhar no meio de paisagens deslumbrantes. O frio não esmoreceu a minha vontade de ainda ir “espreitar” o cofre global de sementes. Nem de realizar o meu sonho (mais ao final do dia).


Glaciares e montanhas. Era o que me esperava na caminhada de seis horas programada para o início do meu terceiro dia de viagem ao Árctico.

Acordei sem despertador. Na sala do pequeno-almoço só se falava dos ursos avistados no caminho para Pyramiden, um povoado soviético abandonado junto a uma mina de carvão, tornado atração turística. Optei por não fazer essa tour, pela falta de tempo e por ser a mais turística. Por momentos, passou-me no pensamento que talvez me pudesse arrepender de não ter ido. Mas recentrei os pensamentos. Acreditava que os guias iriam dar o seu melhor para conseguirmos avistar o rei do Árctico.

Às 9h30, os guias apanharam-me para caminhada de Sarkofagen, entre montanhas e glaciares. Eram o Frederik e o Pete, um sueco e um geólogo norueguês que está em Svalbard a estagiar. Recolhemos entretanto outros montanhistas, incluindo Roman, um lituano que está a visitar Svalbard e que depois permanece por mais duas semanas pelo norte da ilha, passando pela Islândia e Gronelândia. Sobram os dois casais sexagenários, que me fizeram recordar que é possível envelhecer em forma e saudável.

Depois de nos mostrarem no mapa o trajeto que iríamos fazer, seguimos para o local de início da subida da montanha, que fica mesmo por detrás da Guest House. Adormecia e acordava a olhar para ela.

Começámos a subida por um trilho com pedras muito grandes e caminhámos uns 30 metros, até termos a primeira grande subida. Olhando para trás, víamos a cidade cada vez mais longe e uma vista deslumbrante.

As montanhas pareciam ter rostos de guardiões. Durante mais 2h30, subimos até ao miradouro, com neve e muitos pássaros. Fizemos pausa para almoço e Frederik ofereceu um chá com xarope de morango, muito doce e muito aconchegante. Estava um frio de rachar lá em cima – zero graus – e esta bebida soube muito bem, acompanhada por umas bolachas suecas também oferecidas pelo guia.

(Pensei que era engraçado, que quando estamos longe de casa procuramos os sabores que nos confortam. Comemos o pacote todo.)

Começou a descida até ao glaciar e, quando chegámos, colocámos a proteção nas botas para descermos o glaciar a pé. É uma sensação boa. Vamos vendo as cavernas de gelo. Frederik reconhece algumas onde já dormiu no Inverno.

Quando chegámos a terra firme, começámos a procurar fósseis, o que tornou a tour ainda mais interessante pois, nunca tinha visto fósseis na mão e ainda podemos levar para casa.

Conversando com Frederik, perguntei-lhe se achava boa ideia eu ir buscar uma bicicleta ao posto de turismo – que as emprestam gratuitamente por três dias – e ir até ao cofre global de sementes. Esta maravilha, que contempla todas as sementes do mundo inteiro plantadas pelo homem, encontra-se fora da zona de segurança, mas não tenho tempo de fazer a tour que leva os viajantes até a esta Arca de Noé da actualidade. Disse-me para ir e que, durante o dia, com os carros e o barulho das obras da estrada, os ursos não se aproximam.

No final da tour, deixaram-me no posto de turismo para ir buscar a bicicleta e comecei a minha nova aventura, a pedalar como se não houvesse amanhã (nem ursos polares por perto). São 30 minutos até ao cofre global de sementes onde apenas vemos a entrada. Mas é uma experiência que recomendo, pois é a esperança de um recomeço em caso de catástrofe global.

Quando me aproximei do cofre, tive a sensação de ter viajado para o futuro e de ter encontrado algo deixado por uma civilização que não conheci. Algo de valor. E mesmo que não soubesse do que se trata, perceberia que, lá dentro, está guardado um presente. Mas o que vejo é apenas a entrada.

Para chegar às sementes, é preciso atravessar um túnel de 120 metros com cinco portas à prova de explosões, atravessando o interior da montanha até chegarmos a três salas com 880.000 sementes de 5.403 espécies vegetais, vindas de todos os lugares do mundo. O cofre fica trancado 350 dias por ano e só é aberto para inspeções ou para receber sementes. Em 2015, aconteceu a primeira e, até hoje, única retirada do cofre. Devastada pela guerra, a Síria tirou 38.000 espécies de sementes do Oriente Médio. Mas os criadores do bunker dizem que foi uma vez sem exemplo, pois este cofre foi construído para não ser usado.

Regressei à Guest House na “super” bike (sendo que seria ainda mais super se fosse elétrica), numa subida de 30 minutos. Tinha 15 minutos para iniciar o percurso pelo qual tanto ansiava desde que comecei a organizar esta viagem: a possibilidade de ver ursos polares.

Às 18 horas chegou o capitão do barco, Matt, um sueco, a quem cumprimentei. “Então, Matt, preparado para me mostrar pelo menos um urso polar? Disseram-me que esta é a melhor tour, não espero menos que isso”. Matt, um calmeirão simpático, riu-se: “Ver os ursos é todos querem, mas é muito difícil”.

Chegámos ao barco. Éramos 12 passageiros. A guia mostrou-nos os mapas e deu duas opções de trajeto. As possibilidades eram: Pyramiden ou aos fiordes. Instantaneamente, indiquei que o destino seria Pyramiden e tentar encontrar os ursos avistados por lá. A guia perguntou-me se eu tinha ouvido algo. É que há três dias que são avistados três ursos: mãe ursa e dois pequenos de dois anos.

Começámos a viagem. Não havia vento. O mar estava calmo. Começámos a ver golfinhos, depois baleias pequenas e ainda baleias maiores. No barco, respirava-se alegria e estava uma energia incrível.

Senti que estava tudo a acontecer como preparativo para a aparição do Rei do Ártico. Sabia que iria ver os ursos. Sei que é estranho, mas sempre soube.

Pedi os binóculos. Vi um barco mais pequeno junto às rochas. Era um bom sinal. Aproximámo-nos e vi algo bege nas rochas: eram três ursos. Que emoção! Estava a vê-los como sonhei, no seu habitat natural. Olhei à volta e estavam todos em êxtase.

Vi um dos passageiros indianos ao telefone, com os olhos a brilhar. Desligou o telefone. Perguntei se estava telefonar a alguém importante. “Sim, liguei à minha mãe”, disse ele. “Estava a dormir. Na Índia, é muito tarde mas era com ela que gostava de partilhar o momento”, explicou. Fiquei emocionada a pensar que, talvez um dia, o meu filho também me ligue de um lugar qualquer do mundo, a partilhar essa maravilha que está a ver.

Matt abriu uma garrafa de champanhe. Aplaudimos todos o seu excelente trabalho e ficámos a degustar uma maravilhosa sopa goulash, um pão delicioso e, de sobremesa, um brownie óptimo. Tudo tão simples, mas parecia o melhor de sempre.

(Mais um sonho tornado realidade. Obrigada, Universo, por permitires que eu viva estes momentos. É o que se levamos desta vida, o que vivemos. Tudo mais fica cá.)

Regressámos a Longyearbyen – a capital do arquipélago de Svalbard – com uma escolta de golfinhos a surfarem as ondas do barco. Um dia em cheio. Vivenciei muito mais do que podia sonhar.

Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

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