Se há alguma novidade na relação entre Brasil e Portugal nesses últimos duzentos anos – depois que aquele jovem fidalgo dado a aventuras galantes resolveu criar uma nova nação – é a inversão do fluxo dos viajantes.
Desde a incursão pioneira de Pedro Álvares Cabral, os lusitanos nunca deixaram de viajar à Terra de Santa Cruz. Vieram aos milhões. As últimas levas significativas talvez sejam as decorrentes da descolonização da África no começos dos anos 1970.
Porém, o que se nota agora, nos últimos dez ou vinte anos, é a alteração radical da corrente migratória.
Existem números provando isso.
As cidadanias lusitanas concedidas a brasileiros pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros nos últimos anos são somadas em dezenas de milhares.
Todo ano, incontáveis jovens brasileiros chegam a Portugal em busca de empregos melhor remunerados – e olha que os salários por aí, sabemos todos, não são lá essa maravilha!
Também desembarcam aposentados que recebem pensões que, mesmo depois de transformadas em euros, ainda podem ser consideradas razoáveis.
Por fim, aparecem os casais com filhos em idade escolar que pensam economizar um belo dinheirinho todo mês se colocarem os filhos nas escolas públicas portuguesas.
Para certos brasileiros, em especial os de classe média que perdem renda, ser obrigado a matricular as crianças em colégios do Governo é algo tão assustador quanto cair na malha fina do Imposto de Renda.
Pois bem, arrematando: estimativas apontam que os brasileiros residentes em Portugal, atualmente, seriam entre 180 e 200 mil.
O direito de ir e vir
São muitas as explicações para essa nossa hoje fortíssima inclinação por voltar à viver na Terrinha dos ancestrais. Uma delas, bastante singela, é o fato de que em Portugal se pode sair à noite sem medo de ser assaltado ou assassinado.
Em Lisboa ou no Porto, brasileiros oriundos de grandes e médias cidades podem desfrutar de um valor que perderam nos anos 1960: o simples, velho e bom direito de ir e vir após a queda do sol.
Mas onde, como e por quais motivos a coisa começou a desandar para esta nação gigantesca que, nos diziam orgulhosos os professores primários dos anos 1950 e 60, logo seria o país do futuro?
São muitas as razões, sejam elas alevantadas por acadêmicos de capelo e beca ou por cachaceiros de botequim. Vejamos umas poucas.
População
Comecemos pela explosão demográfica.
A população brasileira saltou de 70 milhões no final da década de 1960 para 143 milhões em 1991. Mais que duplicou em três décadas, fato que certamente não se repetiu em nenhum outro país.
Diante da grandiosidade desse número só resta perguntar em português claro e direto: Foi possível construir escolas e hospitais para tanta gente em tão curto espaço de tempo?
A ocupação das cidades
Paralelamente à bomba demográfica, Pindorama registrou outro fenômeno social igualmente devastador e também de dimensões bíblicas: a urbanização acelerada.
A população vivendo nas cidades brasileiras, que era de apenas 12 milhões de almas (31 por cento do total) em 1940, saltou para cerca de 137 milhões (81 por cento da soma) no ano 2000. Para simplificar, decuplicou em sessenta anos.
Logo, imensos círculos de moradias precárias se estreitaram em redor das metrópoles regionais e das cidades de médio porte, estrangulando-as.
Daí decorreram, dizem os estudiosos, a desorganização das cidades, o trânsito caótico, a poluição da água e do solo e a violência desembestada.
De novo, aqui, podemos indagar: Conseguiriam os nossos governantes, mesmo que dotados de poderes mágicos, acomodar a avalanche humana que nos chegava dos campos?
Corrupção e incompetência
A bomba demográfica e a urbanização descontrolada, como vimos, podem ser dimensionadas. Há, porém, outros fenômenos que não podem ser exatamente delimitados porque ocorrem nas brechas e desvãos da administração pública. Como, por exemplo, corrupção e incompetência.
Nós, brasileiros, sempre críticos, temos a tendência de achar que a nossa corrupção é a maior e a mais sofisticada do mundo – ler noticiário recente – e que a nossa incompetência gerencial não têm similares no vasto universo.
Pode ser que sim, pode ser que não.
Os portugueses, por exemplo, em tempos remotos, conheceram muito bem a corrupção, quando ela grassava à solta nas muitas colônias daquele império que se estendia por quase todo o globo.
O voo da penosa
Dizem os economistas brasileiros que há cerca de meio século o país não cresce de forma sustentada. A nossa atividade econômica caracteriza-se pelos voos de galinha. Ou seja, decola por um aninho ou dois para aterrissar logo a seguir, dando com o bico no chão e perdendo penas, em mais uma recessão.
Isso quando a penosa não voa para trás.
Detalhe sórdido: esses voos galináceos não são propriedade de um só grupo político, não. Ocorreram tanto nos desgovernos de direita quanto nos de esquerda.
Mas será mesmo que o Brasil deu efetivamente com os burros na água? Há exemplos internacionais mostrando isso?
Espanha e Coreia
Para demonstrar o nosso insucesso econômico nos últimos 50 anos, alguns analistas recorrem aos exemplos de Espanha e Coreia do Sul.
Em meados da década de 1970, cidadãos do Brasil, Coreia e Espanha tinham rendas médias semelhantes. Hoje, coreanos e espanhóis dispõem de ingressos duas ou três vezes maiores que o nosso.
Ações governamentais concretas explicariam essas diferentes performances. A Coreia, por exemplo, revolucionou seu sistema de ensino e criou grandes grupos industriais que hoje atuam – em dimensão planetária – na fronteira tecnológica.
Já a Espanha ingressou na endinheirada Comunidade Europeia e, com os generosos fundos comunitários, renovou sua infraestrutura e melhorou todos os seus indicadores sociais. Como fez Portugal.
O Brasil, isolado numa América Latinha que parece ter feito uma opção preferencial pela imobilidade, continuou a correr. Mas parado no mesmo lugar.
É por isso que, hoje, comentam economistas impiedosos, exporta um transatlântico carregado com soja em troca de uma canoinha com computadores.
Que falem os imigrantes
Mais interessante que debater tema tão surrado – por que o gigante permanece deitado no berço esplêndido? –, seria tentar adivinhar o que diriam os milhões de portugueses que, nesses séculos todos, se transferiram para o Brasil.
O que nos contariam os mais modestos participantes – quase sempre muitos jovens – dessa epopeia?
O que esperavam encontrar na imensa terra selvagem e desconhecida para onde seguiam?
Como era viajar mais de um mês – vendo só água e horizonte – sobre o mar do solerte Ulisses?
O que mais afligia aqueles que se viam obrigados a deixar a terra áspera e dura que os partejou, a língua de todo o dia e os parentes amados?
Alfredo e Henriqueta
No meio desse povo retirante, estavam meus avós maternos: Alfredo e Henriqueta, nascidos na aldeia de Santiago de Piães, no Concelho de Cinfães.
Na primeira década de 1900, separadamente, eles desembarcaram em uma cidade do extremo Sul brasileiro, então muito rica e industrializada, chamada Pelotas, que hoje tem 300 mil habitantes.
Lá, ajudados por conterrâneos já instalados, deram início à vidinha. Trabalhavam duro. Meu avô era padeiro, tarefa que lhe consumia grande parte da noite, mas também mantinha uma grande horta onde – durante o dia – plantava hortaliças para o consumo da família e para venda aos vizinhos. Minha avó, considerada florista de boa mão, enfeitava casamentos e batizados para reforçar o caixa da família.
Com rédeas curtas e pancadas, educaram os rebentos para que não se tornassem vadios ou debochados. As recriminações e advertências, obviamente, vinham no mavioso linguajar dos lusos. Criaram seis filhotes. Outros três morreram na infância, como era comum na época.
As crianças só conseguiram atravessar as cinco séries do Curso Primário, mas paralelamente tiveram aulas de Mecânica, Contabilidade e Corte e Costura. Tornaram-se mecânicos, costureiras, comerciárias e operárias.
Alguns dos netos chegariam à Universidade nos 1970.
O silêncio
Eram gente de pouco palavrório.
Minha avó só relatava às filhas brasileiras, para assustá-las, o medo imenso que sentia, quando pequenina, caminhava sozinha por escarpas nevadas ouvindo bem próximos os uivos dos lobos.
Nem ela nem meu avô falavam dos parentes que haviam abandonado na Terrinha. Vô Alfredo deixou para trás mãe e três irmãs.
Uma só frase
Minha avó portuguesa ficou paralítica aos 47 anos e penou por mais de duas décadas sobre cadeiras e camas até que a bondosa Velha-com-a-foice veio resgatá-la deste Vale.
Meu avô português, de bigodes de pontas retorcidas, olhos verdes e vasta e lustrosa careca, morreu aos 57 anos, meses antes do meu nascimento.
Da cantante língua lusitana só me ficou uma frase, dita e repetida por minha avó.
Na penumbrosa saleta da casinha de madeira onde morava, presa à cadeira de balanço, vó Henriqueta não podia me impedir – guri irrequieto de seis ou sete anos – de dar incontáveis saltos mortais no sofá de molas arrebentadas.
Contrariada, porque era uma velha muito brava, que nunca fizera um só carinho nos seus filhos machos ou beijado suas filhas fêmeas, resmungava:
– Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!
Assim, neste momento, enquanto rabisco sobre esses tais duzentos anos, a imagem mais forte que me vem à mente é a da minha avó aleijada, com a mão esquerda torcida como a garra de um pássaro contra o peito seco, me mirando com seus frios olhos cinzentos e resmungando com o sotaque de Maria Lionça:
– Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!
Lourenço Cazarré é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas, A misteriosa morte de Miguela de Alcazar e A longa migração do temível tubarão branco
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