EDITORIAL

Portugal vai ter um GRITE – Gabinete de Registo das Incompetências e Trapaças do Estado

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Setembro 15, 2022


Categoria: Opinião

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O Ministério do Ambiente e da Acção Climática e o seu titular, Duarte Cordeiro, estão tão imbuídos da missão de facilitadores e fazedores do Bem que, enfim, até na fase de consulta pública do denominado Simplex Ambiental – ou, mais pomposamente, do diploma que visa a “simplificação de licenças e procedimentos para empresas na área ambiental” – dão dicas para quem quiser comentar ou tecer recomendações, até amanhã.

Escrevem eles – ou, enfim, o Governo – que se deve incluir “uma reflexão sobre impactos em termos de custos de contexto (i.e., aumento ou diminuição de encargos associados ao cumprimento das obrigações legais que decorram desta iniciativa legislativa)”, e que se considere “o custo de oportunidade associado ao tempo em que os procedimentos administrativos ficam parados (ou seja, a duração média dos processos de licenciamento) (…), bem como ao facto de, na prática, não ser possível, muitas vezes, beneficiar efetivamente da figura do deferimento tácito.”

Duarte Cordeiro, ministro socialista do Ambiente e Acção Climática

O diabo costuma estar nos pormenores; mas, neste caso, aparenta estar em toda a proposta, e em todo o seu esplendor. Todo o diploma cheira mal em cada um dos seus poros.

Sejamos claros: com este diploma – que também elimina a obrigatoriedade de muitos projectos de apresentarem avaliação prévia do impacte ambiental (em grande parte sob o “chapéu” da urgência de medidas de descarbonização, bondade que parece justificar tropelias e atropelamentos) –, o Governo não deseja desburocratizar.

Não o move, na verdade, encurtar prazos para o avanço daqueles projectos com impacte ambiental que, com a devida e ponderada “regulação” da Administração Pública, mereceriam sempre uma aprovação. Se assim fosse, bastaria ao Governo eliminar algumas redundâncias burocráticas, e apostar sobretudo num reforço dos meios humanos e técnicos, retocando a logística administrativa. Aumentava-se a eficiência da máquina administrativa, e eis que tínhamos prazos encurtados e tramitações simplificadas.

Ah, mas isso não! O Estado não quer instruir nem treinar os “jogadores” que lhe batem à porta, fazendo com que acertem as suas bolas numa baliza estreita. O bondoso Estado – ou melhor, o Governo que circunstancialmente detém o poder de gerir o território do país – está disposto a arranjar uma baliza gigantesca, onde tudo caberá: os projectos normais, que seriam aprovados mesmo com avaliação de impacte ambiental, e, enfim, os outros projectos “anormais” que, com as actuais regras do jogo, jamais seriam aprovados.

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Portanto, assim se conseguirá, com o álibi de acelerar prazos – como se o ontem já fosse tarde para os amanhãs gloriosos – autorizar todas as tropelias.

Porém, aquilo que verdadeiramente me assusta neste diploma é a figura do “deferimento tácito”. Causa-me calafrios. Apetece logo puxar da pistola (leia-se, caneta) e disparar sem perguntas nem remorsos.

Sou jornalista desde os anos 90, e ademais comecei no jornalismo ambiental e de urbanismo, pelo que bem sei o significado de um “deferimento tácito”: caminho aberto para esquemas menos claros.

Para quem não conhece o termo, o deferimento tácito significa uma aprovação por ultrapassagem do prazo de análise pelo Estado. Ou seja, é um prémio concedido pelo Estado à incompetência involuntária ou intencional da Administração Pública. Ou ainda um prémio ao requerente que, por “artes mágicas”, consegue que, algum funcionário estatal ou membro do Governo, vá colocando outros projectos em análise sempre em cima do seu, de modo que, enfim, hélas, o prazo passa… e voilà, aprovação.

No diploma em causa, promovido pelo bondoso ministro Duarte Cordeiro, conta-se 25 vezes o termo “deferimento tácito”, e lá estão estabelecidos, em detalhe, os trâmites, céleres e desburocratizados, para a obtenção de um “licenciamento de secretaria”. Portanto, passa o prazo, e o promotor de um determinado projecto tem a garantia de que, fazendo um requerimento electrónico, a Agência para a Modernização Administrativa lhe passará uma “certidão no prazo de três dias úteis”, após os serviços tutelados pelo ministro do Ambiente confirmarem, no prazo de um dia, que houve deferimento tácito. Se os serviços do ministro do Ambiente nada disserem em um dia, segue a certidão à mesma.

Modelo de requerimento previsto no Simplex Ambiental para o pedido de deferimento tácito.

Só para mostrar que não se cumpriram prazos de análise, o Estado mostra rapidez e eficiência.

Tão competente se mostra Duarte Cordeiro em prever os momentos de incompetência da Administração Pública que, vejam lá, até já se preparou um “modelo de certidão de deferimento tácito” (vd. página 128 do Simplex Ambiental).

Reza assim: “A presente certidão atesta que (colocar a firma ou nome do interessado) obteve uma (colocar a designação legal do tipo de ato requerido e que foi obtido por deferimento tácito) para (identificar a atividade permitida através do ato de deferimento tácito). As autoridades públicas competentes devem, para todos os efeitos legais, assumir que a (colocar a firma ou nome do interessado) obteve todos os atos necessários para a realização da atividade em causa junto das entidades competentes, não podendo, designadamente, aplicar coimas por ausência da licença/autorização/permissão necessária para o desenvolvimento desta atividade.

Eis como se produzirá um salvo-conduto para todo o tipo de arbitrariedades, sob a capa da bondade da transição energética, para salvar o Planeta do aquecimento global torpedeando todos os princípios de conservação da Natureza que demoraram décadas a consolidarem.

E vejam lá ainda, pormenor relevante: Duarte Cordeiro é tão amigo do deferimento tácito que até o concede mesmo se o requerente nunca tiver pagado quaisquer taxas enquanto aguardava que a Administração Pública se mantivesse incompetente.

Perante isto, tenho uma proposta para Duarte Cordeiro: em vez de ser a Agência para a Modernização Administrativa a gerir os deferimentos tácitos, crie o GRITE, acrónimo de Gabinete de Registos das Incompetências e Trapaças do Estado. Pelo menos, fica mais claro aquilo que sairá deste Simplex Ambiental.

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