Elucubrações

Em torno do herói intemporal da narrativa popular

selective focus photography of red candle

minuto/s restantes


(…) O deus cabeludo disse ao vencedor menino:

“Em brios medra Iulo; assim se vai aos astros,

procriador e rebento divino […]”

Virgílio, Eneida (IX, 638-641) Trad. de A. Feliciano Castilho


Singular, sem dúvida, foi o destino de Héracles, herói quase imortal e invencível, que teve de decidir, na solidão do seu desastre, a morte que o iria arrancar ao convívio dos mortais, seus semelhantes e seus irmãos.

Nenhum herói, como ele, na Antiguidade Grega (e nos ecos que dos seus feitos nos deram os Romanos, quando passou pela península Itálica com o gado de Gérion) foi tão solitário entre os homens e, ao mesmo tempo, tão solidário com o destino destes. Não houve, para a sua epopeia, todo a percurso terrestre, um aedo capaz de um só canto. Nem sequer um implacável Rabelais para cantar o seu gigantismo.

naked man statue

Mas talvez tivesse sido essa, também, a sua sorte: não ser, assim, assimilado, na unidade de um discurso, a uma “raça”, a uma “casta”, a uma classe social. Nem Pantagruel escapou a isso, inserido na “linhagem” dos reis dos gigantes. Héracles, porque viveu na boca da lenda, no sussurro fraterno dos convívios populares, nunca se fixou num painel, como os seus pares da “raça” dos Aqueus.

Eurípides e Sófocles aproveitaram o efeito da sua loucura e da sua morte, mas o conjunto fantástico dos seus feitos, em que chegou a enfrentar os poderosos deuses e senhores do macrocosmo, apenas ficou registado em notas esparsas de eruditos e comentadores… e na evocação sonhadora que, pedaço a pedaço, o manteve vivo, às vezes respigado por intelectuais de passagem.

 “O herói dotado de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular de Hércules e Siegfried, de Roldão a Pantagruel e até Peter Pan” afirma-nos Eco (1979, p. 246).

brown statue of man near green trees during daytime

Quase tão atemporais como o arquétipo enteado de Hera, sempre perseguido pela ira da madrasta alguns heróis de FC e da BD (ficção científica e banda desenhada) parecem reassumir, de forma variada, de acordo com os padrões  e condicionalismos históricos, uma estrutura mítico-narrativa elementar que equaciona com a mesma persistência infantil, imatura (revelando as aspirações que têm muito mais a ver com inflexibilidade fantástica do inconsciente do que com o dimensionamento razoável com o real), as pulsões elementares, os impulsos radicais do limitado e condicionado para a imensidão do tempo infinito e para as metas mais longínquas do espaço.

De acordo com os saberes científicos e as observações empíricas que a tecnologia permitiu nas mais variadas épocas, os heróis populares gozaram sempre de uma omnipotência delirante, plasmada nas fantasias mais arrojadas, relativamente ao espaço e ao tempo. Quer para Héracles, quer para Superman, quer ainda para Odin, que “pela infinita importância do valor se tornou deus” (Carlyle, 1956: 61), os limites cronotópicos não existiam. Intermédios, por aparente “realismo” (verosimilhança, diria o Estagirita), introduzido pela ciência pós-positivista nas suas potencialidades, os heróis de FC assemelham-se, nas viagens que fazem aos astros remotos, às galáxias mal entrevistas a essa estirpe gerada na imaginação popular desde tempos lendários e que encontra em Héracles, o dos doze trabalhos, o ilustre antepassado modelar.

Contrariamente aos heróis micénicos. que as palavras de Lukács tão bem enquadram, Héracles não e só um herói dos “bem-aventurados tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir […] tempos cujos caminhos são iluminados pela luz das estrelas (1962:27). Ou melhor, ao contrário dos que bateram às portas de Ílion, nas planícies de Troia, o vencedor de Leão de Nemeia, o que frechou o sol num arrebatamento de fúria, o que substituiu Atlas, o Titã, enquanto este lhe colhia os pomos, não é um herói só desse tempo.

Os tempos em que ele se moveu, para dizer melhor, os da U-cronia, persistiram nos sucessores que lhe herdaram os genes e o génio do imaginário. Para Superman, para o herói de O Construtor de Universos (The Maker of Universes), de P. José Farmer, para os “Jedi” de A Guerra das Estrelas, filme realizado por George Lucas, e mesmo para o “cavaleiro” da África fantástica que Burroughs criou em Tarzan dos Macacos, não existe o fim desses tempos – de nenhum tempo.

 “Para eles”, citando ainda Lukács, na mesma obra, “tudo é novo e, todavia, familiar; tudo significa aventura e, todavia, tudo lhes pertence. O mundo e o eu, a luz e o fogo distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente alheios um ao outro, porque o fogo é a alma de toda a luz e todo o fogo se veste de luz. Assim não há um único acto de alma que não adquira plena significação e não venha a finalizar nesta dualidade […]” (p. 27) e por isso o tempo não existe, ou melhor é um absoluto, criado no espaço pelas suas acções.

Este universo de que o autor húngaro nos fala magistralmente só na literatura dita “culta”, a dos canonizados deixou de existir. Apenas persiste nos leitores e espectadores de “culto”[1]. Para os heróis de FC ou mesmo para o seu irmão, Tarzan do “planeta África”, o fim da orbe conhecida não significa o alheamento ou a perdição. Para eles é apenas o espaço da aventura e o tempo ali não tem significado. São incomensuráveis porque U-tópicos e como tal são U-crónicos.

Nenhum deles, evidentemente, resiste à prova da historização à clepsidra da biologia. Héracles é o dos doze trabalhos, não o conquistador que se vincula à história da Grécia e nela procria. São as suas histórias de iniciáticas passagens, sobreponíveis e permutáveis, que fazem dele um corpus heroico, um ser infinito que só se decide a morrer quando a perfídia do Centauro o arranca à pele que era sua, limite do próprio, invólucro que o limitava, como cosmo, no cosmo maior, em intercâmbio, mas sem dissolução.

gray concrete statue under cloudy sky during daytime

O próprio retorno cíclico à aventura marca essa eclosão do tempo. Se o passado legendário encerra as indeterminações de  Héracles  no  tempo  da civilização  que o “lê” e nele se podem inserir os feitos sem que a cronologia implique o desgaste da personagem, o mundo moderno, onde vivem os heróis herdeiros da tradição dos trabalhos, põe, por vezes,  o tempo entre parêntesis de forma mais adaptada ao comum consumo  dos romances de aventuras  em  que o  herói  evolui, é marcado pelo tempo, como se vê na sucessão de Dumas e continuadores: Os Três Mosqueteiros, Vinte Anos Depois, O Homem da Máscara de Ferro, talvez pela incitação do romance realista.

Dessa reintrodução do tempo cíclico no pós-folhetinesco, fala-nos Eco de forma exemplar:

O Superman não pode consumir-se porque um mito é inconsumível […] deve, portanto, permanecer inconsumível, e, todavia, consumir-se segundo os modos de existência quotidianos. Possui as características do mito intemporal, mas só é aceite porque a sua acção se desenvolve no mundo quotidiano da temporalidade, paradoxo que os argumentistas de Superman têm, de algum modo, que resolver (com) uma solução paradoxal! […] Os argumentistas exco­gitaram uma solução muito sensata e original. Estas histórias desenvolvem-se numa espécie de clima onírico – inteiramente inadvertido pelo leitor – onde aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecera depois,  e quem narra retoma continuamente o fio da história como se se tivesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns por­ menores ao que já dissera.» (1979,  pp.  253, 257-258).

  Não é verdade que também para os feitos de Héracles é indiferente que ele tenha lavado primeiro os currais de Augeias e só depois tenha matado a Hidra?… e não é verdade que, de forma surpreendente, ele nos surge na Gigantomaquia[2] ajudando os olímpicos contra os titãs, paradoxo do tempo como sucessão das clausulas aristotélicas? É essa imagem que nos dá Lacassin do herói da selva fantástica:

Passando da situação inconfortável das vítimas à altitude do reparador de defeitos, ele conhecerá, neste novo empenho, um campo de acção ilimitado, intrigas renováveis até ao infinito (sublinhado do autor). Sacrificando a afectividade à metafísica, passa a encarnar e a simbolizar a luta contra a injustiça […] Deixando os lugares fechados do melodrama e da vingança ele vai percorrer um universo fantástico povoado de cidades mortas ou luminosas, divindades obscuras e ferozes; fantasmas barrocos e cruéis. […] Antes de percorrer este continente mítico numa busca iniciática, Tarzan, como um cavaleiro sujeito a provas similares, deverá arrancar-se ao contexto familiar e afectivo (sublinhado do autor), despojar-se da existência anterior. É-lhe necessário perder a recordação de tudo o que pudesse evocá-la: título, nome, fortuna, parentes, amigos e inimigos” (1971: 99-100).

green mountain near cloudy sky

Que mais será necessário para forjar o herói salvífico à dimensão do cosmo?  Não era essa, também, a obrigação de “jedi” Luke Skywalker de A Guerra das Estrelas para se opor à arrogância do Império, num confronto que envolve o Universo inteiro, com os seus milhões de galáxias? Nesta orbe alargada até aos limites do vislumbre astrofísico o que é o tempo para ele como para qualquer outro “astronauta” da FC senão uma coisa que se atravessa onde a morte não existe, dimensão ínfima de um segundo? Para o homem que viaja à velocidade da luz, acima dela, que vai do “big-bang” à “luz-fóssil”, o sentido da temporalidade existencial não existe. É nesse senti do, creio, que Marie Françoise Dispa, afirma: 

Na FC os astros representam apenas um dos fins do percurso; eles são, antes de mais, um símbolo da insatisfação eterna do homem. A raça humana mal tinha nascido  já pensava em evadir-se da Terra. Em todos os tempos as estrelas foram objecto de ambição dos homens; e acabaram por as atingir. […] Falta qual­ quer coisa aos homens que eles esperam encontrar nas estrelas. (107-108)”

Farmer, que foi em toda a literatura de FC que conhecemos o autor que mais se aproximou conscientemente dos ecos que nela emergem dos velhos mitos, especialmente os de Héracles e os de Zeus, não hesita em fazer do seu herói de O Construtor de Universos, o inominável “senhor da fortaleza situada acima das nuvens, suspensa no espaço”.

Para a ela regressar, depois de um percurso terrestre em que perdeu a memória da origem e atingiu a velhice, o senhor da morada dos imortais tem de atravessar mil aventuras, vencer centauros, titãs e a própria Górgona para recuperar a memória e poder. Escutando ainda M. F. Dispa, que expressamente compara os heróis da FC aos cavaleiros da epopeia medieval na perspectiva de Bédier[3], podemos concluir com ela, acerca do problema da morte nestas fantasias: “O amor, amizade, a ternura, enfraquecidos pela proximidade constante da morte, não podem desenvolver-se num tal estado de coisas… a imortalidade, que cada indivíduo procura com tanto ardor, provoca necessariamente, a mais ou menos longo prazo, a estagnação da espécie humana” (Dispa 114).

Se o herói (e mais uma vez o revemos como Héracles) opta pela sua humanidade, se esquece a ânsia de absoluto que o levará a desafiar os deuses, os monstros e as distâncias entre os astros, acaba por se entregar, por cansaço, à morre. Não esqueçamos que para Troyes, Percival e Galaaz eram cavaleiros celestes! A FC e todo o sistema que em seu torno se move é, nas ambições astrais, metafísicas e epistemológicas, o processo de um mito, às vezes subterrâneo e subalternizado, mas sempre presente. Como diz Muniz Sodré “pretendemos aqui afirmá-la como um mito vivo e contínuo (ou seja, uma grande “narrativa” constituída e não fragmentada em discursos), um saber que se quer totalizante em relação ao passado e ao futuro” (Sodré, 1973: 107).

No fundo, na audácia da fantasia, a FC e os heróis que na sua esfera se movem, pelo poder de nomeação, pela capacidade de integração de novos lugares no universo conhecido, o cosmo ilimitado do viajante, conseguem o acro de cosmização de que fala Eliade: “Importa compreender bem que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração: organizando o espaço reitera-se a obra exemplar dos deuses” (s/d. [1960?]: 35).   

Exemplaridade que o herói assume normalmente seguro da sua origem divina, semidivina, maravilhosamente extraterrestre, extraordinário pelo poder da tecnologia ou, ainda, consagrada pela grande Mãe: a Terra/Gea. Como nas escrituras ou no como maravilhoso, o herói quanto mais perto está do super-homem, do semideus, mais certo é ser a sua origem fabulosa, mesmo divina. Novo paradigma em que Héracles ocupa o centro.

Mas também a ele pertencem Superman, vindo de um planeta de seres que só lá não são excepcionais, e o terrestre Tarzan, originário de uma “raça” de senhores, que, perdido, em criança na selva, se tornou hegemónico entre todos os seres selváticos, incluindo os indígenas humanos. Para não nos alargarmos mais, citamos de Marthe Robert este passo lapidar:

selective focus photography of boy wearing black Batman cape

“Estabelecendo uma correlação tão visível entre as calamidades do nascimento e uma carreira abençoada pelos deuses, o conto não faz mais do que seguir a linha de pensamento própria do mito e da lenda, no que esta tem, precisamente, de mais singular. […] O ser privilegiado ao eleito, em virtude de tarefas sobre-humanas, não pode deixar de ser um mal vindo, uma criança abandonada, sacrificada, crivada de golpes por aqueles mesmos que estavam encarregados de a proteger. Não que o herói seja exaltado unicamente por causa da força de que dá provas nas desgraças dos seus começos. Mas porque, sobretudo, expulso de casa é obrigado, dessa forma, a romper os laços de sangue, liberta-se assim das coacções carnais e espirituais que constituem para o homem do comum o essencial da fatalidade” (1979: 55).

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

Carlyle, Tomás, 1956, Os Heróis, Guimarães Editores

Dispa MarieFrançoise, 1976, Héros de la sciencefiction, DE BOECKA, Bruxelles

Eco, Umberto, 1973 Diário Mínimo, Península, Barcelona

Eco, Umberto, 1979, Apocalípticos e Integrados, Perspectivas, São Paulo

Eliade, Mircea (s/d [1960?]) O Sagrado e o Profano, Livros do Brasil, Lisboa

Grimal, Pierre,1986, A Mitologia Grega, Europa-América, Lisboa

Lacassin, F., 1971 Tarzan, UGE, col.  10/18, Paris

Lukács, Georg, 1962, Teoria do Romance, Presença, Lisboa

Robert, Marthe, 1979, Romance das Origens e Origensdo Romance, Lisboa, Via edit.

Sodré, Muniz, 1973 A Ficção do Tempo, Vozes, Petrópolis (Brasil)


[1]Cult Films have limited but very special appeal. Cult films are usually strange, quirky, offbeat, eccentric, oddball, or surreal, with outrageous, weird, unique and cartoony characters or plots, and garish sets. They are often considered controversial because they step outside standard narrative and technical conventions. They can be very stylized, and they are often flawed or unusual in some striking way.” (26/9/2018). É evidente que esta noção é extensível à produção literária e à BD/Graphic Novels

[2] Súmula unitária coligida a partir de diversos autores, constitui parte da Teodiceia de Hesíodo. “El asalto al Olimpo: La Gigantomaquia“.

EL MITO Y SUS FUENTES. De acuerdo con Homero1, los Gigantes fueron una raza de hombres salvajes, gobernados por Eurimedonte que habita-ban en la isla de Thrinacia, en el lejano oes-te y que fueron exterminados por su insolencia hacia los dioses. Pertenecen, por tanto, a una tribu ancestral que fue destruida por su soberbia, y no por un combate, que no se cita en los poemas homéricos. La ver-sión más difundida sobre su origen la da Hesíodo, quien les considera seres divinos, nacidos de la sangre vertida en el seno de la tierra, Gea, cuando Urano fue mutilado por Crono. De ellos se dice que son seres enormes, de armaduras lustrosas e ingentes lanzas. Según Píndaro, los gigantes nacieron en los campos Flegreos, en Sicilia, Campa-nia o en Arcadia, y según otras fuentes (Apolodoro, Pausanias, Píndaro o   Estrabón), en Palene (Tracia). Homero y varios escritores tardíos los sitúan en zonas volcánicas, por lo que parece probable que el origen de la historia de los gigantes esté relacionado con una explicación sobrenatural de determinados fenómenos físicos de la naturaleza, asociados con fenómenos volcánicos.

[3] De origem bretã, passou a infância em Reunião, depois tornou-se professor de literatura francesa da Idade Média. Publicou muitos textos medievais em francês moderno, como Tristan e Iseut (1900), La Chanson de Roland (1921), os Fabliaux (1893). Foi eleito membro da Academia Francesa em 1920.

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