Quando se criticam os maus cuidados de saúde nas cadeias portuguesas, a resposta mais usual é a de que, de um modo geral, não é grande a diferença entre os cuidados prestados aos utentes reclusos e aos cidadãos em liberdade.
Ainda que tal fosse verdadeiro – mas não é – o problema é que, estando o cidadão em reclusão ao cuidado do Estado, e sem possibilidade de recorrer a cuidados diferentes daqueles que o Sistema Prisional lhe confere, este terá de lhe garantir um tratamento eficaz e digno.
O que, habitualmente, não acontece.
O facto dos reclusos não poderem beneficiar, na íntegra, do Serviço Nacional da Saúde, o que, há que reconhecer, é de difícil aceitação, ajuda a perceber a origem de muitos problemas.
Um enfermeiro especialista, que já prestou serviço em vários Estabelecimentos Prisionais, considerou que o recurso a “outsourcing para necessidades permanentes” é um “flagelo”.
Deu como exemplo uma proposta de trabalho, que recebeu por parte de uma empresa de trabalho temporário, a “CV Healthcare Solutions”, denunciando que “as empresas pagam menos de 5 euros à hora aos enfermeiros”, o que “desmotiva e desqualifica o serviço”, contribuindo para a “situação dramática existente nos estabelecimentos prisionais ao nível dos cuidados de saúde”.
Nada de estranhar se tivermos em conta a falta de cuidado na análise às propostas das empresas concorrentes à “exploração” das enfermarias das quarenta e nove cadeias portuguesas.
Como prova o facto de a que ganhou o concurso, não há muitos anos, ser propriedade de um recluso, no Estabelecimento Prisional de Coimbra, que a geria a partir da cadeia.
Em Julho de 2017, o então director-geral dos Serviços Prisionais, Dr. Celso Manata, dizia à Rádio Renascença que as prisões tinham “menos de metade dos enfermeiros de que precisavam”.
E acrescentava: “A nível operatório temos unidades completamente fechadas. Os médicos que estão aqui, e os enfermeiros, têm sido heróis, porque praticamente têm feito omeletes sem ovos”.
Nada disse, como é habitual, sobre o resultado que tais falhas tiveram no que concerne aos reclusos doentes.
Talvez esperando que o cidadão normal pense que ficou tudo bem graças a heroicidade dos profissionais de saúde.
Não querendo pôr em causa a qualidade técnica e o empenho pessoal dos mesmos (que, bem ao contrário, faço questão de realçar) a verdade é que não podemos esperar “ad aeternum” que essa entrega seja suficiente para resolver, por si, problemas de extrema gravidade.
Até para defesa dos próprios médicos e enfermeiros que aceitam correr riscos por falta de alternativa.
Contrariamente ao que seria de supor os próprios responsáveis pelo Sistema Prisional são críticos desta solução.
O Dr. Celso Manata confessou, publicamente, que “do ponto de vista económico, as empresas médicas, nas cadeias, são uma má resposta porque como o médico está sempre a rodar, não conhece a pessoa, pede os exames todos e prescreve toda a medicação que lhe é pedida”.
Outra medida nunca devidamente explicada foi a decisão de substituição da Central de Compras de Medicamentos (que tinha sede no Hospital Prisional de Caxias) pela possibilidade de os diversos Estabelecimentos Prisionais comprarem muita da medicação destinada aos seus reclusos.
Não só os medicamentos ficaram mais caros – por ser diferente adquiri-los através de uma central de compras ou por quarenta e nove Estabelecimentos, alguns deles com umas dezenas de reclusos – como a ruptura de stocks se tornou, em muitos deles, mais frequente. Para não dizer constante.
À APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso chegam diversas queixas, de muitos reclusos, contra a falta de alguns medicamentos e, mais estranho, contra o facto de terem de ser os seus familiares a comprar alguma da medicação que necessitam.
Incluindo a receitada pelos médicos dos Estabelecimentos Prisionais.
Algo que pensávamos proibido mas que é, de qualquer modo, incompreensível e condenável a todos os títulos.
Seria importante saber se os Ministérios da Justiça e da Saúde têm conhecimento desta situação e se concordam com a mesma.
A entrega de medicamentos fora de prazo, ou sem data de validade visível, ou com rótulos e documentação em língua estrangeira, tudo ilegalidades de extrema gravidade, é comum em todos as prisões e foi profusamente documentada por um Delegado da “APAR”, farmacêutico, que dessas situações deu conta a todas às entidades sem resultado algum.
A dispensa de medicamentos, feita por enfermeiros e guardas, sem luvas, retirando-os do “blister” e entregando-os na mão do preso, é a rotina diária que tem, como consequência, a alteração da composição qualitativa e quantitativa provocada pelo contacto directo com a luz, humidade, calor e conspurcação das mãos.
Resultado de tudo isto – e de muito mais com que poderia encher dezenas de páginas – são os trágicos números de mortes nas cadeias portuguesas: 50 por 10.000 reclusos.
O dobro da média europeia, segundo as “Estatísticas Penais Anuais do Conselho da Europa” que comparam a situação prisional nos 47 países membros e podem ser consultadas em relatórios anuais.
Nos últimos cinco anos morreram, nas nossas cadeias, 303 reclusos.
Inexplicavelmente, só seis dessas mortes foram investigadas pela Polícia Judiciária, embora a Lei obrigue a que sejam todas.
Nada de grave.
Falamos de presos que, todos sabemos, são cidadãos de segunda e não dão votos.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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