Elucubrações

Os comics: da strip ao book

selective focus photography of red candle

minuto/s restantes


Observemos um dos processos básicos da criação da banda desenhada a partir das suas formas mais simples que deram origem ao termo mais universalmente adoptado no mundo para a designação desta forma gráfico-narrativa: comic ou comic strip, como os americanos lhe chamaram no momento inaugural em que ela era usada e difundida em tiras nos jornais.

No fundo, segundo Jolles (1972), trata-se de um embrião mítico, de acordo com o qual o “homem pede ao universo e aos seus fenómenos que se deixem compreender” (1972: 81) ou enigmático, que ele entende ser com a forma que “apresenta a questão” à qual o “mito ‘dá’ a resposta” (1972: 105). No sentido que Jolles dá a estes termos, eles são apresentados de tal modo que o cómico desponta no desenlace e na revelação típicos do conto, no qual “um facto ou um incidente chocam de tal maneira que que temos a impressão de um acontecimento real e que esse incidente nos parece, por si só, mais importante do que as personagens que o vivem” (1972:183).

person holding opened book

Contudo, no caso do cómico surgem ligados ao riso ou mesmo à paródia sob forma de uma reviravolta ou peripécia que altera o curso dos acontecimentos, de maneira inesperada, e modifica o sentido da acção agir das personagens.

No exemplo apresentado acima, podemos entender a sua produção de comicidade acompanhando a proposta de Charles Mauron, referente ao riso e à sua relação com uma situação, ou seja, ao modo como se processa a “diferença de potencial entre duas representações.

A primeira é a visão prevista como provável do que se seguirá, segundo a vamos construindo, em cada minuto, mais ou menos consciente e que tende sempre a formar-se e preside à nossa atitude” (1998: 20). Assim aparecem, na gravura as evocações relacionadas com um projecto (o apetite), emblematicamente evocado nas gravuras do cabeçalho, de um adolescente com a mãe, à esquerda, e um jovem com a namorada ou noiva, à direita, que fazem escolhas em listas, que podem fazer parte de sonhos ou fantasias.

As imagens inferiores vão fazendo o mesmo uso do projecto, em fases de duas filas de dois quadrados cada, com “a visão prevista” relativa à vontade de comer. A primeira série é, em si mesma a revelação do final feliz daquilo que Danny pensa, ou como diria Mauron, “está carregada de afectos a formarem-se, mas faz-se acompanhar também de uma certa estimativa do esforço para adaptar-se à nova realidade” (1998: 20), o que é evidente na figura inchada que se vêm objecto de admiração na sua rotundidade ─ a qual, pelo exagero acaba por lançar a suspeita dos inconvenientes não considerados.

Convenhamos, com o autor que aqui acompanhamos, que “esta espécie de previsão implica uma mobilização da atenção, do interesse e, em geral da energia psíquica disponível de forma imediata” e que, “uma representação deste tipo se forma, embora de modo mais vago, no nosso espírito quando consideramos como exemplo o que se passa com os outros” (1998: 20)

Os quadradinhos desenhados do comic, apresentam a representação da personagem mas, em simultâneo oferecem-se-nos como representações, e, neste caso, o “acontecimento real” que seria a confrontação do nosso devaneio com o real que se nos oferecesse, aparece como representação “da estimativa” da personagem, que aparece a corrigir o devaneio, e revelando-se como o seu contrário, ao apreserntar a tremenda indisposição de Danny depois de comer com sofreguidão a refeição real que conseguiu obter. (cf. Mauron, 1998: 20-21) 

No entanto, o entendimento do cómico como aspecto do chiste (a que Eça, frequentemente, se referia como pilhéria,[1] mas que poderíamos traduzir por facécia, em gosto mais clássico, evocando a facetia) cuja a melhor tradução para o termo freudiano witz, que deve estar na origem do termo inglês wit, com o qual o cómico, nos comics, acaba por se entrosar de modo quase inextricável, parece-nos de ponderar. Como diz o fundador da psicanálise:

“Parece-nos que os chistes, ordinariamente considerados como uma subespécie de cómico, oferecem-nos bastante peculiaridades para serem atacados diretamente; assim evitamos sua relação com a categoria, mais inclusiva, do cômico, enquanto isso foi possível, embora não tenhamos deixado de colher, en passant, algumas sugestões que podem lançar luz sobre o cômico”. (1969: 177)

A nossa ideia, neste ponto, é que o cómico, podendo apresentar dimensões onde o mecanismo da revelação súbita possa parecer independente, acaba por denunciar, em muitas características o trabalhar do dinamismo do chiste. Regressando ainda a Freud, vejamos: “o cómico comporta-se diferentemente dos chistes. Pode contentar-se com duas pessoas: “a primeira que constata o cómico e a segunda, em quem se constata. A terceira pessoa, a quem se conta a coisa cómica, intensifica o processo, mas nada lhe acrescenta” (1969: 277).

Ora, esta “terceira pessoa”, no funcionamento dos processos artísticos, performativos e de representação é aquela a quem o procedimento do cómico se destina e, o efeito, como acto poético, se comunica, “é indispensável para a completação do processo de produção de prazer” (277).

woman in black, blue, and red shirt lying on surface while reading magazine

Assim a terceira pessoa, no caso das produções poéticas, que se apresentam como integráveis no género cómico, ou fazendo parte da criação mais recente e afeita ao gosto popular, toma o lugar de leitor, espectador ou visualizador, uma vez que “a segunda pessoa do chiste”, está no lugar da entidade ficcionalizada,  já que nos chistes, jocosidade ou trocadilho  a segunda pessoa pode estar ausente, “excepto quando se trata de um chiste tendencioso, agressivo” (1969: 277) podendo nós encontrar casos limites fronteiriços dessa utilização em discursos poéticos como as cantigas de escárnio e maldizer, ou nas diatribes de cuidadosa elaboração retórica “Um chiste produz-se, o cómico constata-se ─ antes de tudo, nas pessoas; apenas por uma transferência subsequente, nas coisas, situações etc.” (1969: 277). Ora, ainda segundo Freud, no mesmo texto:

“O tipo de cômico mais próximo dos chistes é o ingénuo. Como o cómico em geral, o (cómico) ingénuo é ‘constatado’ e não ‘produzido’, como o chiste. De facto, o ingênuo não pode absolutamente ser confeccionado, enquanto no interior do cómico puro devemos levar em conta o caso em que alguma coisa é tornada cómica – a evocação do cómico. O ingénuo deve originar-se, sem que tomemos parte nisso, nos comentários e atitudes de outras pessoas, que assumem a posição da segunda pessoa no cómico ou nos chistes” (1969: 279).

Não é preciso um grande esforço para o ver aparecer na comic strip que se segue, Mutt & Jeff  de Al Smith, na linha herdada de Bud Ficher em que um ponto de vista perfeitamente infantil, acerca do peixe dourado de aquário como mecanismo de agitação do líquido  para dissolver o açúcar. O gesto, na sua inverosimilhança, é bem ilustrativo de como a lógica infantil prevalece, sobre a dos adultos que a praticam e aceitam.

books on black wooden shelf

Alguns estudiosos, na cultura anglo-americana,  consideram esta última nuance central, no chiste, designando o fenómeno por wit, que pode significar “inteligência” mas, com mais pertinência, “ingenuidade” ou “raciocínio rápido” ou seja desde a “divertida inteligência verbal” até à capacidade de “invenção” (a ‘inventio’ da sabedoria retórica) através da qual “os escritores podem descobrir apropriadas figuras e conceitos, na percepção e compreensão de semelhanças entre coisas aparentemente dissemelhantes” (cf Baldick, 1990: 242; entrada WIT).

A historieta comic, “à semelhança” por exemplo “da obra teatral, como toda a obra artística apresenta um universo” que nos é “necessário desde esse instante” e por um período variado de tempo, desde os poucos minutos da leitura de uma tira, ou de um pequeno conjunto delas, como vimos acima, até à hora e meia de um filme padrão, podendo ser alargada para quase o dobro, nalguns filmes modernos, ou em peças de teatro (cf. Souriau, 1950: 15).

Mas pode ser bem mais longo, como acontece no romance, na novela de aventuras, ou, mais modernamente, nos episódios narrativos comuns às televisões. É claro que o quadro clássico comum à arte ocidental, pelo menos desde o renascimento como “obra pictórica também tem a sua duração” embora mais distanciada da figura humana encarnada que o teatro nos dá e o cinema simula com muita plenitude em duas dimensões.

No quadro, ou no desenho, ou mesmo na escultura, há realização “de um mundo, pela instrumentação de uma presença concreta” seja “uma tela coberta de pigmentos coloridos” seja “uma pedra ou um madeiro, talhados nas três dimensões do espaço” ou, para outro, “a atmosfera ritmicamente agitada”, ou, ainda “as folhas impressas” (cf. Souriau, 1950: 17).

assorted photos on white table

Porém, a duração varia infinitamente: no teatro “uma duração real, à qual é dada uma certa feição”, mas, obra pictórica “o jogo é quase livre”, a contemplação é feita segundo o “nosso capricho”. Apenas as outras artes, narrativas, literárias ou não, afastam-se da pintura e aproximam-se do teatro. Mas uma desenvolvendo-se numa forma substancial totalmente diferente, a palavra apenas, outra desenvolvendo duplicações visuais de pessoas reais, e misturando essa figuração humana, com a dimensão verbal, mas numa matéria distinta, a língua oralmente modulada e a sonorização similares ao teatro (cf. Souriau, 1950: 19).

Diz-nos Montandon que, o “jogo de palavras assim como a história cómica, são formas breves, particularmente apreciadas pelos leitores de jornal, e aparecem, nestes, nos cantos das páginas […] (sublinhados nossos). Na sua opinião estas curtos narrativas, que acompanham, muitas vezes, relatos jornalísticos de intenção informativa, e vontade documental, por vezes de forte rigor factual, “são formas trivializadas, pelo conteúdo ou pela técnica […] ” entendendo que a sua técnica pode ser descrita como “um termo polissémico do qual dois termos são actualizados em simultâneo” que podem ser o “equívoco em que uma palavra tem dois sentidos”, ou “uma legião de outras figuras: Um sentido próprio e outro figurado” ou as “homonímias”, rimas, rimas “holorimas (homofonia total entre dois versos…”, o “calembour simples ou complexo” a “passagem do concreto ao abstracto” o “provébio falacioso”, a “antanáclase, que é a retomada da mesma palavra mas de modo falacioso”, que pode ser “insólita”, “gozona” ou burlesca” (Montandon, 1992: 129) e mais algumas a   em que o trocadilho aparece mas que não vamos apresentar, exaustivamente.

Bud Fisher 1913

Na banda desenhada, desde os tempos mais antigos de publicação periódica em jornais e revistas, todos estes elementos são retomados, ou trabalhados de forma distinta: a figura humana passa a traços pictóricos, o tempo é modulado pela sucessividade das imagens sequenciais, e a palavra é mantida associada a sugestão onomatopaica.   

O desenrolar de tais programas verifica-se, na comic strip apresentando com brevidade os traços acima identificados, sendo colocada na última imagem a resposta ou revelação paradoxal se apresente quase sobe a forma de um trocadilho ou dito espirituoso, elemento de gosto que os românticos tinham relegado para uma posição de inferioridade aceitando-os apenas nos modelos da diversão literária do epigrama, que os modernistas de todas as vertentes, cultivaram sob a concepção de ironia.

Não é de estranhar que o termo tenha assentado plenamente nesse tipo de pequena narrativa divertida ou histoire drôle, que, de Rabelais a Jarry, passando por Balsac, fizeram as delícias do espírito picardo (amusant, bizarre, cocasse, comique, coquin, curieux, désopilant, divertissant) encheu a cultura popular francesa do início do século XX, confundindo-se e entrecruzando-se com produções de mais elevados horizontes culturais, mas sempre presa desse gosto das drôleries,(bêtises, bizarreries, blagues, bouffonneries, clowneries, couillonnades, facéties, gaillardises), como o Dadaismo ou o Surrealismo.

Em muitos aspectos, o tipo de narrativa a que nos referimos como comic, tendo como característica de duração prevalecente, o strip, a série linearizada em poucos momento pictóricos ou gráficos, variando de dois a cinco, raramente mais ou menos, é o padrão em que assentam outras, um pouco mais longas, de um página[2] como acontece quase sempre em Little Nemo ou em Crazy Cat e obedece a um modelo linear narrativo, comum, também em manifestações apenas verbais que Violette Morin caracteriza como histoires drôles, do seguinte modo: “é algumas vezes tão curta ou tão ‘engraçada’ que seu valor de narrativa poderia ser posto em questão.

girl in purple dress painting

No entanto estas ‘historias’ são, também, narrativas. Como estas, e melhor ainda, “fazem evoluir uma situação viva em função de reviravoltas imprevistas.” (Morin, 1966: 102).

Nada mais elucidativo, para colocarmos mais uma base no nosso entendimento destes começos da banda desenhada como género, aspirando a uma colocação entre as artes, como 9ª, no dizer de muitos apologetas, do que voltar ao texto de Violette Morin sobre as “histoires drôles” que ela analisa, e, “a fim de confrontar sua inesgotável variedade de estilo e, de falas (ou expressões: paroles)”teve, “muitas vezes de reconstituir seu discurso, restabelecer aqui elipses destinadas a torná-las mais percucientes, suprimir, acolá, redundâncias destinadas a enchê-las de ‘suspense’”.

De tal modo, diz-nos a investigadora francesa, que teve “de localizar funções que sua desordem calculada tornava mais surpreendentes”, constatando que, “com a linearidade do traço de espírito restabelecida, estas narra1ivas apresentaram enfim cercas constâncias, de construção que temamos classificar” (1966: 102).

Por estas características, elas “são comparáveis” com as comic strip, “pelo número de palavras, pois que a maioria contém apenas de 25 a 40” além de que são “todas redutíveis a uma sequência única que coloca, argumenta e resolve uma certa problemática” e, ainda por cima tal sequência 

“parece ser uniformemente articulada por três funções que ordenamos como se segue: uma funçãodenormalizaçâoque situa os personagens; uma função locutorade encadeamento,com ou sem locutor, que coloca o ‘problema a resolver, ouquestiona; e, enfim, uma função interlocutora de distinção, com ou sem interlocutor, que resolve ‘comicamente’ o problema, que responde ‘comicamente à questão. Esta última faz bifurcar-se a narrativa do ‘sério’ para o ‘cómico’ e dá à sequência narrativa existência de narrativa disjunta, de ‘última’ (dernière) [versão] como história. A bifurcação é possível graças a um elemento polissémico, o, disjuntor sobre o qual a história encadeada (normalização e locução) volteia numa peripécia, para tomar uma direção nova e inesperada. É a existência necessária deste disjuntor que tende a fazer classificar indiferentemente todas estas história nas diversas variedades de jogos de palavras” (1966: 102-103).

Apresentamos, a título comparativo, como as comic strip, o exemplo de uma das história que Violette Morin apresenta: “FUNÇÃO DE NORMALIZAÇÃO: O viajante tendo perdido o comboio fala ao chefe da estação; FUNÇÃO LOCUTORA DE DESENCADEAMENTO: Oviajante: Se os comboios nunca estão no horário, para que servem os quadros afixados de horários?; DISJUNTOR:cartaz/sala de espera; FUNÇÃO INTERLOCUTORA DE DISJUNÇÃO: O chefe da estação: Se os comboios andassem no horário, de que serviriam as salas de espera?” (1966: 104). Como se pode constatar, a semelhança com as sequências narrativas em tiras de vinhetas ou quadradinhos, e o desenvolvimento que a autora descreve como próprio a estas sequências narrativas justifica-se inteiramente:

“são as narrativas em que a disjunção é apenas uma palavra-significante, uma palavra tomada somente na sua existência visual ou fónica, independentemente das significações que pode veicular. Obtém-se um jogo de palavras que liberta os significados e as significações de qualquer constrangimento do sentido. Ao cabo da sequência, a narrativa desagrega-se propositadamente num caos perfeito; pode mesmo, por essa arte de acrobacia no vazio, quase não ser uma narrativa, e com frequência não é mesmo” (1966: 103).

man in green vest and red dress standing beside woman in red dress

Usando uma outra formulação, sob a designação de piada, aproximamo-nos ainda melhor do fenómeno tal como é possível formulá-lo, mas neste caso num processo bifásico:

“[…] a piada é um texto sui generis. É uma forma de narração dialogal, tendencialmente curta, que tem por objetivo gerar um sentido humorístico. Para tanto, a piada cria uma situação verossímil, apenas para desmascará-la em seu desfecho. A mudança do modo sério (bona fide) para o modo jocoso é a fonte do riso. A semelhança na estruturação de uma piada é a maior especificidade dessa forma de texto. A estrutura, por assim dizer, é dividida em duas partes. A primeira, chamada de antecedente, introduziria o tópico, bem como os personagens e a situação verossímil. A segunda parte, o consequente, seria a conclusão do texto. […] o consequente nunca é explicitado, fica sempre implícito […]. A passagem do antecedente para o consequente é feita por um elemento mediador, de ordem linguística, em geral voltado aos níveis fonético-fonológico, morfossintático ou semântico” (Ramos, 2005: 1158-1159).

A estes traços, acrescenta o autor mais alguns que acompanham exemplos das tiras diárias, que “seria uma história que apresenta uma gag, termo entendido [..] como uma piada diária (dado que, na maioria dos casos, é publicada diariamente pelos jornais)” (p.1158) e apresenta uma tese muito próxima de Morin, e talvez de mais simples formulação: “uma situação inicial; um elemento que muda o curso da narrativa; uma disjunção provocada pelo elemento anterior. O resultado da mudança de curso na história surpreenderia a expectativa inicial do leitor, provocando em seu desfecho uma função narrativa anormal, fonte do riso. (p.1158)

shallow focus photography of books

Se dermos, mais uma vez, a palavra a Freud, verificamos a importância da colocação em posição dramática de personagens que sejam produzidas por uma encenação (no sentido mais amplo do termo, de produção representativa de uma acção, verbal ou física, numa determinada situação para obter um efeito de sentido):

“O ingênuo (no discurso) e os chistes coincidem, no que diz respeito à verbalização e ao conteúdo: efetua um uso impróprio das palavras, um non sense ou um smut. Mas nele, o ingénuo, enquanto primeira pessoa, o processo psíquico, que produz, que levanta para nós questões tão interessantes e enigmáticas a respeito dos chistes, está aqui completamente ausente. Uma pessoa ingênua pensa estar utilizando seus meios de expressão e processos de pensamento normal e simplesmente, não tendo qualquer arrière pensée em mente; não deriva igualmente o menor prazer em produzir algo ingênuo. Todas as características do ingênuo inexistem a não ser na compreensão da pessoa que o escuta – pessoa que coincide com a terceira pessoa nos chistes. Alem disso a pessoa que o produz faz isso sem o menor esforço. A complicada técnica que nos chistes se destina a paralisar a inibição procedente da crítica racional, está ausente nela; não possui igualmente a inibição, de modo que pode produzir nonsense e smut diretamente e sem compromisso. A este respeito, o ingênuo é um caso marginal do chiste; emerge quando, na fórmula de construção dos chistes, reduzimos o valor da censura a zero” (1969: 283).

Sobretudo, é importante que as personagens formem “um sistema de forças em confronto ligadas por acções e reacções de que cada momento privilegiado deve desenhas uma figura dinâmica, relativamente simples, clara, poderosa, original e intensa nesse dinamismo interior que resulta da sua estrutura” Souriau, 

black and white zebra print textile

Completaríamos melhor este raciocínio, a partir do qual pretendemos valorizar os procedimentos inerentes às histoires drôles que nos narram os comics, introduzindo, como conceito, o termo voz. Assim, o aspecto central que aqui pretendemos apresentar, como mecanismo de criação de excepcional expressividade na produção do discurso em é o da segunda voz.

Essa voz, a rigor, deveria ser chamada voz dupla, bivocalidade, já que ela irrompe, num plano do discurso aparentemente coeso, não como interlocutora, mas como enunciado simultâneo, emergência perturbante de um outro discurso que, por assim dizer, abre alas no enunciado que consideraríamos emitido pela vontade racional do locutor, no seu discorrer normal.

Assim, por dentro do próprio discurso autoral, escapando-se ao controlo do sujeito que identificamos com a identidade, essa voz imiscui-se, intromete-se, surge como que clandestinamente ou, para identificarmos melhor o fenómeno, promiscui-se. Entidade quase ilegítima, ela tem, se assim podemos dizer, um estatuto muito próximo do daquele “diabinho” irreverente e malicioso que, nalgumas circunstâncias, se revela como perturbador dos mais banais discursos, fazendo-nos dizer ou escrever o que não queríamos, assemelhando-se, nisso, à voz demoníaca — ou daimon — que também assaltava Sócrates.

Nas tiras ou mesmo nos conjuntos que formam página (ou prancha, como os autores gostam de lhes chamar) essa voz pode surgir como uma personagem onírica, ou partilhando desse estatuto, como um alter ego provocador, ou mesmo desencaminhador, que surge nas narrativas em que a personagem protagonista desafiada ou confrontada em devaneios e sonhos de que os paradigmas seriam o Grilo de Pinóquio, e o esverdeado Flip que aparece nas comics storys de Little Nemo como a que apresentamos abaixo.

O que aqui nos importa principalmente não é a visualidade, mas a própria discursividade verbal. Tudo se passa como se a voz dupla, ao surgir, criasse um mecanismo retórico em que ambas as vozes, a que esforçadamente o autor mantém como sua (a admitirmos que cada um é senhor e regulador do seu discurso) e a outra, que o invade como uma inevitável facécia, surgissem a uma distância em que tanto uma como outra (a empenhadamente “autêntica” e a  sentida como “invasora”) se dão como espectáculo verbal. Passa-se, nesse caso, qualquer coisa como uma desapropriação do autor relativamente à sua palavra, um desajuste, uma deslocação em que não só percebe a outra palavra como outra, mas também percebe a sua como alheia.

Para observarmos melhor esse mecanismo de distanciação (a que os formalistas russos chamariam de estranhamento – de que não andaria longe, também, o alheamento de Pessoa) é bom vermos como o sonhador está integrado nesse mecanismo, uma vez que é capaz de fazer da interlocução mais um elemento constituinte do espectáculo integral em que o processo imaginário cruza o elemento icónico e verbal. (cf. Jorge, 2000: 2-3) [3]

É claro que o sonho e o retorno ou despertar inconsciente da infância que Freud nos lembra (Freud, 1969: 248 e 278), e como vamos encontrar, por exemplo em Little Nemo “Entre as técnicas comuns ao espírito e ao sonho, duas oferecem um cesto interesse: a representação pelo seu contrário e o emprego de contrassenso” (Freud, 1969: “266) aqui, é claro, o repouso do leito, que levará ao sono e o sonho surge como que negado, ou invertido pela movimentação e articulação dinâmica da própria cama, e o interior do quarto muda-se para o imaginário espectáculo do “telhados” dos arranha céus visto de cima ou ao mesmo nível. 

Segundo Freud no mesmo texto um pouco adiante, essa representação pelo contrário representa uma sobrevalorização, que se “aproxima da ironia” a qual “consiste em dizer o contrário do que se pretende sugerir, evitando aos outros a ocasião de a contradizer” uma vez que ela exibe os artifícios, neste caso o aspecto hiperbólica dimensão que a cama apresenta no seu passeio.

Ora, mais pausadamente, podemos ver, na sequência da história, o modo de Flip funcionar como a emergência de um desafio ou desejo de libertação, arrastando o imaginário de Nemo à criação de uma fantasia em que a cama passeia, saltita, sobe aos telhados dos arranha céus, acabando, na euforia da exaltação libertária, por gerar no sonhador o pânico causado pela culpa da sua desobediência, e leva-o cair, num mergulho que parecia fatal e que é, afinal, um real tombo da cama para o chão.

Sobre esta matéria ainda nos parecem pertinentes as considerações de Freud “A elaboração onírica, entretanto, exagera esse método de representação indireta além de todos os limites. Sob a pressão da censura, qualquer espécie de conexão é bastante boa para servir como substitutivo por alusão, permitindo- se o deslocamento de um a outro elemento. A substituição de associações internas (similaridade, conexão causal etc.) por outras, conhecidas como externas (simultaneidade no tempo, contigüidade espacial, similaridade fônica), é muito especialmente notável e peculiar à elaboração onírica. Todos esses métodos de deslocamento ocorrem também como técnicas do chiste. (p.264)

E, completaríamos esta percepção da comic story, na sua dimensão onírica com apoio no seguinte excerto do mestre austríaco sobre a matéria:

 “Na elaboração onírica, a representação pelo oposto desempenha uma parte ainda maio que nos chistes. Os sonhos não são simplesmente favoráveis à representação de dois contrários pela mesma e única estrutura composta, mas tão frequentemente mudam parte dos pensamentos oníricos nos seus opostos, o que leva o trabalho de interpretação a impasses difíceis. Não há maneira de decidir à primeira vista se algum elemento que admite um contrário está presente nos pensamentos oníricos como um positivo ou como um negativo.

Devo afirmar enfaticamente que esse fato até agora não mereceu reconhecimento. Mas parece apontar para importante característica do pensamento inconsciente no qual, com toda probabilidade, não ocorre nenhum processo que se assemelhe ao ‘julgamento’. No lugar da rejeição por um julgamento, o que encontramos no inconsciente é a ‘repressão’. Esta pode, sem dúvida, ser corretamente descrita como estágio intermediário entre um reflexo defensivo e um julgamento condenador.

O nonsense, o absurdo, que aparece com tanta frequência nos sonhos, condenando-os a desprezo tão imerecido, nunca ocorre por acaso através da mesclagem dos elementos ideacionais, podendo sempre demonstrar sua admissão intencional pela elaboração onírica, cabendo-lhes representar nos pensamentos oníricos a crítica amargurada e a contradição desdenhosa. Assim o absurdo no conteúdo dos sonhos assume o lugar do julgamento ‘isto é apenas nonsense‘ nos pensamentos oníricos.” (268-269).

Jost Amman – Xilogravura de 1568 mostrando a produção de xilogravuras: na primeira um homem usa um buril para cortar o bloco de madeira; na segunda ele entinta a matriz realizada para a impressão.

A estrutura que o pequeno relato em quadradinhos, cuja modalidade dominante, fundadora do género se verificou como comic americano é a da narrativa fundada na sequencialidade, num sistema gráfico de leitura que tem como aspecto fundamental, como já vimos acima os vectores direcionais: da esquerda para a direita e de cima para baixo, aproveitando o modelo da própria escrita.

Tal dinâmica vectorial cria o sentido da história com a concepção de um antes e de um depois, inserida nas práticas milenares da cultura ocidental, com pequenas variantes, das quais, a principal é a variabilidade horizontal (esquerda —> direita), que pode ter a variante inversa, ou a mista, bustrofédon, (βουστροφηδόν[4]), podendo, eventualmente, essa a variante ser a da vectorialidade ascendente, ou seja, de baixo para cima. Esses dois últimos casos verificam-se nalguns registos mais antigos e a na nossa cultura, entre o Médio Oriente e a Europa, sendo o primeiro, a inversão apenas ou as sequências de imagens de culturas não ocidentais, cujo exemplo mais impressionante é o da Coluna de Trajano, em Roma com feitos e eventos sequenciais talhados na pedra em sentido ascendente em sequência pela curvatura elicoidal, em ordem horizontal bustrofédon (ou que a torna uma excepção no que respeita ao sentido de leitura).

Thomas Rowlandson (britânico, Londres 1757-1827) – Reform Advised, Begun and Compleat, 1793.

Devemos notar, no entanto, no caso que nos interessa e, maioritariamente, se podem considerar “duas grandes classes de unidades, funções e índices”, as quais “deveriam já permitir uma certa classificação das narrativas.

Certas narrativas são fortemente funcionais (assim os contos populares), e, em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os romances ‘psicológicos’)” caracterização a que voltaremos, adiante, a propósito daquilo na BD se tem chamado “romance” ou narrativa romântica” (1966: 10) “entre estes dois pólos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do género” (1966: 10).

Para falarmos das comic strips, sobretudo, mas mesmo das comic, em geral, até à dimensão da prancha ou página retomar será interessante retomas, de Barthes a “classe das Funções” uma vez que, suas unidades. não têm todas a mesma ‘importância’ e isso ajuda-nos a analisar melhor o processo, destas pequenas histórias. “Algumas”, dado que “constituem verdadeiras articulações da narrativa (ou de um fragmento da narrativa)” o que as torna importantes para nós, dado que a dimensão das histórias cómicas assentam sobretudo na força de uma articulação nuclear” e pouco utilizam as “outras” que, segundo o mesmo autor “não fazem mais do que ‘preencher’ o espaço narrativo que separa as funções-articulações: chamemos as primeiras de funções cardinais (ou núcleos) e as segundas, em consideração à sua natureza completiva, catálíses.

Ora, ainda segundo Barthes, “para que uma função seja cardinal, é suficiente que a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa consequente para o seguimento da história, enfim que ela inaugure ou conclua uma incerteza” (1966: 10) e é  nesta incerteza que, como vimos acima, na análise de Violette Morin, a ruptura ou irrupção cómica se torna possível, pela intromissão de um disjuntor, a que Barthes preferiria, certamente, chamaria índice[5] visto que “os índices implicam uma atividade de deciframento: trata-se para o leitor de aprender a conhecer um caráter, uma atmosfera […]serve para dar autenticidade à realidade do referente, para enraizara ficção no real: é um operador realista […] possui uma funcionalidade incontestável, não ao nível da história, mas ao nível do discurso.” (1966: 11), no fundo são imformantes que, num troço da história cómica a fazem inflectir para um sentido inesperado, como que um choque de real interrompendo o curso da expectativa.

E neste caso das comic strip, ou comic, tout court, é depois dessa disjunção provocada pelo índice, que se reata o  “liame que une duas funções cardinais, o qual se investe de uma “funcionalidade dupla”, tornando-as “ao mesmo tempo consecutivas e consequentes.

Tudo deixa pensar, com efeito, que a mola da atividade é a própria confusão da consecução e da consequência, o que vem depois sendo lido na narrativa como causado por; a narrativa seria, neste caso, uma aplicação sistemática do erro lógico denunciado pela escolástica sob a fórmula post hoc, ergo propter hoc, que bem poderia ser a divisa do Destino, do qual a narrativa não é em suma mais que a «língua» (Zangue); e este ‘esmagamento’ da lógica e da temporalidade é a armadura das funções cardinais que o realiza. Estas funções podem ser à primeira vista muito insignificantes; o que as constitui não é o espetáculo (a importância, o volume, a raridade ou a força da ação enunciada), é, se assim se pode dizer, o risco: as funções cardinais são os momentos de risco da narrativa.

Para terminar sobre este modelo aparentemente embrionário da narrativa, a partir do qual a própria banda desenhada assentou, em base que consideramos sólida, lembremos, com Eisenstein, ao falar de Disney, que os comics se fortalecem exemplarmente como narrativas de metamorfoses. Mesmo que isso não implique modificações excessivas, como em tiras modernas quase universais, como Mafalda, de Quino, ou Mónica e sua Turma, de Maurício a verdade é que ela é cultivada à exaustam, e, tão fundamental se tornou, que muitas vezes não damos por ela, e não reparamos na mobilidade fantástica dos elementos do universo de um Winsor McCay, e no seu espectro altamente transfigurável. Assim:

  “Em Shakespeare […] nas suas comédias, as personagens metamorfoseiam-se até ao infinito…travestizam-se ou sofrem uma mudança mágica” lembramo-nos de Alice, do Burro de Oiro, mas

“Em Disney passamos de um processo a outro, porque um dos recurso do cómico é a literalização da metáfora. […] É por isso, então que a metáfora poética actua comicamente em Disney, porque a apresenta como transposição literal. A metamorfose não é um lapso ─ porque, quando folheamos Ovídio, <vemos que> algumas das suas páginas têm ar de curtas metragens de Disney”[6] (Eisenstein, 2013: 53)

Por outro lado, no plano do discurso, naquilo que a própria Retórica tão rigorosamente formalizou, pelo menos desde Aristóteles, se a epopeia e tragédia tinham origem em hinos laudatórios ou discursos ecomiásticos e epidícticos, “A comédia é”, segundo o mesmo Estagirita, na sua Poética, “imitação de homens inferiores, mas não, todavia, quanto a toda a espécie dos vícios, mas só quanto àquela parte do torpe e do ridículo.

eyeglasses near mug on table

O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anónima e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cómica que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor. (1986: 109 [V; 22]). Característica clássica e fundadora que nos ajuda a compreender melhor o próprio funcionamento dos comics, na sua origem, de difusão entre as massas leitoras pouco exigentes, dificilmente cultivadas, mas sempre perante o espectáculo do mundo em que tinham de abrir espaço para a sua própria existência ser possível, mundo esse carregado de personagens típica que um discípulo de Aristóteles arruma em quatro grandes grupos: sujeitos auto-depreciados, impostores, e bufões, normalmente acompanhados por um outro que os confronta, como herói, quase sempre um vigarista simpático e la dino “na arte de explorar as fraquezas alheias” (Escohotado, 2006: 10).

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

Alain, 1948 [1920/1926], Système des beaux-arts, Gallimard, Paris

Aristóteles, 1986, Poética, IN/CM, Lisboa (trad. Eudoro de Sousa)

Aumont, Jacques, 1990, L’image, Nathan, Paris

Bakhtine, Mikhail, 1978, Esthétique et théorie du roman, Gallimard, Paris

Bakhtine, Mikhail, 1998, La poétique de Dostoïevski, Seuil/Points, Paris

Barbieri, Daniel, 1991, Il linguaggi del fumetto, Bompiano, Milano

Barthes, Roland,1987, A Aventura Semiológica, Ed. 70, Lisboa

Barthes, Roland,1966 “Introduction à l’analyse structurale des récits”, in Comunications, nº 8, Seuil, Paris  

Brooks, Peter, 2010, L’imagination mélodramatique ― Balzac, Henry James, le mélodrame été le mode de l’excés, Garnier, Paris

Damisch, Hubert, 1993, L’origine de la perspective, Flammarion, Paris

Eisenstei, Serguei, 2013, Walt Disney,

Freud, Sigmund, 1969, Le mot d’esprit et ses rapports avec l’inconscient, NRF/Idées, Paris

Fuchs, Barbara, 2004, Romance, Routledge, London

Gaunt, Simon, 2000, “Romance and Other Genres” in Roberta L. Kruger (ed), The Cambridge Companion to Medieval Romance, Cambridge University Press, Cambridge

Goliot-Leté, Anne, e outros, 2011, Dicionário da Imagem, Edições 70

Jolles, Andrá, 1972, Formes simples, Seuil, Paris

Lessing, Gottold Ephraim, 1990, Laocoonte, Tecnos, Madrid

McCloud, Scott, 1994, Understanding Comics, The Invisible Art, Harper Collins, Nova Iorque

Moliterni, Claude et al., 2003, BD Guide – Encyclopédie de la bande dessiné International, Omnibus, Paris

Montandon, Alain, 1992, Les formes brèves, Hachette, Paris

Neylon, Virginia Lyn, 2016, Reading and Writing the Romance Novel – An Analysis of Romance Fiction and its Place in the Community College Classroom

Panovsky, Erwin, 1989, O Significado nas Artes Visuais, Presença, Lisboa

Poe, Edgar Allan, 2004, Poética (Textos Teóricos), Gulbenkian, LIsboa  

Ramos, Paulo, 2005, “Piadas e tiras em quadrinhos: a oralidade presente nos textos de humor”, Estudos Linguísticos XXXIV, p. 1158-1163 cf. São Paulo

Stempel, Wolf-Dieter, 1988, “Aspectos genéricos de la recepción”, in, Teoría de los géneros literários, Garrido Gallardo (Org), Arco/Libros, SA, Madrid

Stevenson, John Allen, 1990 The British Novel, Defoe to Austen, Twayne Publishers, Boston:

Williams, Ioan, ed., 1970 Novel and Romance 1700-1800, Barnes & Noble, New York


[1] “Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assumptos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas… Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão… Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?” // “Eusebiozinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sério! O Palma é que lá tinha aparecido com uma rapariga portuguesa… Tinha agora um jornal, A Corneta do Diabo.

– A Corneta…?

– Sim, do Diabo, disse o Eusebiozinho. É um jornal de pilhérias, de picuinhas… Ele já existia, chamava-se o Apito; mas agora passou para o Palma; ele vai-lhe aumentar o formato, e meter-lhe mais chalaça

– Enfim, disse Carlos, qualquer coisa sebácea e imunda como ele…(Os Maias, caps. 4 e14, pp.76 e302, Círculo de Leitores, 1975; itálicos nossos)

[2] Daniel Barbieri, esclarece os parâmetro históricos destes factos lembrando que no em finais do século XIX e pincípios do século seguinte, “tradicionalmente a unidade gráfica de narrar em BD (‘fumetto) são de dois tipos: a tira e a página (ou prancha ─ ver imagens de Yellow Kid em baixo). A BD [no sentido de comic, em italiano, fumetto] nasce como página dominical a cores, dos quotidianos, e só depois de alguns anos se torna, também tira quotidiana. Apenas nos anos 30 nasce, enfim, o comic book, ou seja, o álbum de Bd. Em geral a tira é […] composta de três ou quatro quadradinhos ou vinhetas, raramente de duas ou quatro” (1991: 149). YellowKid4É claro que é o uso sistemático balão (no vestido, amarelo, primeiro, mas depois no gramofone e no papagaio) com fala que determina, historicamente, o nascimento, questão histórica a que voltaremos adiante. As manga, bandas desenhadas japonesas, têm uma configuração de leitura diferente que não trataremos aqui, por obedecerem a códigos mistos da cultura nipónica e ocidental, cada vez mais sob influência ocidental, para entras no mercados europeus e americanos

[3]Texto apresentado a 17 de Outubro de 2000, em Évora, a convite da Delegação Regional da Cultura, numa sessão integrada nas comemorações do Centenário da Morte de Eça de Queirós.

[4]  Transcrição fonética: boustrophēdón , um composto de βοῦς , bous , “boi”; στροφή , strophē , “virar”; e o sufixo adverbial – δόν , “semelhante, na maneira de” – isto é, “como o boi vira [ao arar]”. Curiosidade: O folclorista húngaro Gyula Sebestyén (1864–1946) escreve que a escrita boustrophedon antiga se assemelha aos rovás-sticks húngaros da escrita húngara antiga, que  foram feitos por pastores. Primeiro o entalhador segura a vara de madeira com a mão esquerda, cortando as letras com a mão direita da direita para a esquerda até ao fim do pau. Para continuar ele vira o pau, invertendo as pontas, e começa a entalhar o lado oposto da mesma maneira. Quando é desdobrado horizontalmente (como no caso das inscrições do boustrofédon lapidadas), o resultado final é uma escrita que começa da direita para a esquerda e continua da esquerda para a direita na linha seguinte, com as letras viradas de cabeça para baixo. Sebestyén afirma que os antigos escritos do boustrophedon foram copiados de tais varas de madeira com letras recortadas, requeridas para inscrições epigráficas (não reconhecendo o real significado do tipo original de madeira). Hieróglifos Rongorongo, escritos com dentes de tubarão na Ilha de Páscoa, permanecem indecifráveis.

[5] 2 ‘índices’ (no sentido muitogeral da palavra) […] a unidade remete então, não a um acto  complementar e consequente, mas a um conceito mais ou menos difuso, necessário entretanto ao sentido da história: índices caracteriais concernentes às personagens informações relativas à sua identidade, notaçõesdas «atmosferas», etc.; (1966: 8-9).

[6] “[…] Eis que a patrona do herói, Palas, descendo do céu, ordena-lhe que ponha sob a terra os dentes vipérios, matriz de homens futuros. Ele obedece e, abrindo sulcos com o arado, lança os dentes, sementes de mortais, ao solo.  Logo, incrível prodígio, o chão põe-se a mover, e, então, dos sulcos surge a ponta de uma lança, logo, elmos com penachos multicores trêmulos emergem, e ombros, peitos e braços armados, e uma seara de homens com escudo cresce.  Assim, quando em teatro em festa o pano desce, surgem figuras que primeiro a cara mostra, e após o resto; até que se tornam visíveis por completo e se põem de pés no proscênio. Aterrado com a nova hoste, Cadmo se arma […]” Ovídio, Livro III, Cadmo, v. 101-115 ─ Trad. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.