Declarações estapafúrdias, diz fundador da AMI

“Negacionista”: Directora do Diário de Notícias diz que Fernando Nobre devia vacinar-se para dar “o exemplo”

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por Pedro Almeida Vieira // Outubro 23, 2022


Categoria: Imprensa

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O Diário de Notícias foi o paradigma da rotulagem à contestação da gestão da pandemia com os epítetos de “negacionismo” e “negacionistas”. Em resposta a uma queixa junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a directora do periódico da Global Media, Rosália Amorim, defendeu que “os portugueses” esperavam que Fernando desse “o exemplo na vacinação”, e que, por não o ter dado, colocou “em causa a segurança de outros cidadãos”, constituindo “especial motivo de indignação”. O fundador da AMI diz que estas declarações são “estapafúrdias”. Por sua vez, a ERC defende agora que, “doravante”, o Diário de Notícias deve “diligenciar no sentido de um mais amplo e rigoroso enquadramento dos factos noticiados”.


São 834 resultados disparados numa pesquisa interna do site do Diário de Notícias quando se colocam as palavras “pandemia” e “negacionistas”. No topo dos mais relevantes, destaca-se uma notícia de 31 de Março de 2021 intitulada “Extrema-direita e negacionistas da pandemia aproximaram-se”. Estava lançado o mote.

Seguem-se também, na longa lista, duas polémicas notícias de Novembro do ano passado, em que explicitamente se chama “negacionistas” a agentes da Polícia Judiciária, da GNR e da PSP e a militares das Forças Armadas que tomaram a decisão voluntária e legal de não se vacinarem. E também diversas sobre “ameaças à saúde pública” supostamente causadas pelos “negacionistas”.

Rui Castro, sempre chamado “juiz negacionista”, foi uma presença constante nesta pesquisa, sobretudo durante o processo que levou à sua expulsão pelo Conselho Superior da Magistratura. Há, no site do Diário de Notícias, por agora, 148 notícias com esta expressão no título ou no conteúdo.

Fernando Nobre, fundador e presidente da AMI, em Março de 2020, apresentando recomendações sobre a covid-19.

A polarização social, política e mesmo partidária foi uma constante desde o início da pandemia nas páginas deste secular diário. Num artigo de opinião de Bernardo Pires de Lima, actual conselheiro político do presidente da República, publicado em 4 de Abril de 2020, no início da pandemia, e sugestivamente intitulado “A insustentável leveza dos negacionistas”, começou a ser óbvia a colagem ideológica que se preparava então para pôr políticos polémicos (Trump, Bolsonaro, Salvini, Órban) em linha com qualquer pessoa que contestasse minimamente a narrativa imposta. E vice-versa.

Com efeito, nas centenas e centenas de notícias e artigos de opinião do Diário de Notícias onde o tema central é a pandemia, “negacionista” é o rótulo invariavelmente escolhido quer para quem jurava que o SARS-CoV-2 nunca existiu, quer para quem dizia que se está perante uma cabala, quer para quem contestava que a gestão da pandemia violava direitos fundamentais – que, aliás, agora têm estado a ser confirmadas pelo Tribunal Constitucional –, quer para quem alertava para os riscos de se menorizar as outras doenças, quer para quem denunciava a existência de manipulação e sonegação de informação por parte das autoridades; quer para quem questionava a vacinação universal em todos os grupos etários…

Nunca interessou ao Diário de Notícias, e a bem dizer à imprensa mainstream, fazer distinções nem promover o debate: tudo foi metido no mesmo saco, numa explícita e depreciativa alusão aos movimentos negacionistas do Holocausto.

Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias.

Por isso, não surpreende que aquando do anúncio de a Ordem dos Médicos ter aberto um processo disciplinar a Fernando Nobre, fundador da AMI e antigo candidato à Presidência da República, o Diário de Notícias tenha escrito, em 21 de Setembro do ano passado, que essa decisão advinha das declarações que prestara “numa manifestação de negacionistas da pandemia de covid-19 realizada junto à Assembleia da República”.

Ora, tal como já sucedera com a notícia sobre os “agentes negacionistas” (assim rotulados só por não se terem vacinado), também este artigo do Diário de Notícias, desta vez sobre Fernando Nobre, caiu na alçada da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em resultado de uma queixa não-identificada. E em deliberação de Setembro passado (mas apenas divulgada na passada semana), o regulador concluiu que “a abordagem jornalística dada pelo Diário de Notícias deveria ter providenciado um enquadramento mais amplo e fundamentado da problemática”. A ERC acrescentou ainda que o jornal da Global Media deverá, “doravante, diligenciar no sentido de um mais amplo e rigoroso enquadramento dos factos noticiados”.

Sem relevância significativa, por não ter efeitos sancionatórios, quer o processo quer esta deliberação contra o Diário de Notícias têm, contudo, dois aspectos peculiares muito relevantes.

Por um lado, o Conselho Regulador da ERC foi muito mais crítico com o Diário de Notícias do que fora, numa análise similar, com o Observador que, também em 21 de Setembro do ano passado, noticiara, nos mesmos moldes, o processo aberto contra Fernando Nobre.

O Diário de Notícias usou e abusou de expressões que, antes da pandemia, estavam “reservadas” apenas para quem negasse o Holocausto.

Essa notícia do Observador, tal como a do Diário de Notícias, também destacou que a causa do processo da Ordem dos Médicos tinha sido as declarações “numa manifestação de negacionistas em frente à Assembleia da República”, salientando, igualmente, as posições do fundador da AMI sobre o uso da máscara, os testes e os medicamentos que, alegadamente, “não têm eficácia comprovada no tratamento da covid-19”.     

A deliberação da ERC sobre o Observador, logo aprovada em Dezembro do ano passado, foi porém muitíssimo mais branda. Na verdade, o regulador arquivou a queixa, “por não se verificarem indícios de desrespeito pelos limites à liberdade de imprensa”.

Note-se, contudo, como o PÁGINA UM já revelou noutros casos, a ERC tem vindo, ao longo deste ano, a mudar a sua posição sobre o uso indiscriminado do termo “negacionista”, muito em voga pela imprensa durante a pandemia. Até finais de 2021, aceitava o uso desta terminologia; a partir deste ano começou a “torcer o nariz”.

Por esse motivo, a defesa da directora do Diário de Notícias, Rosália Amorim, não foi particularmente bem acolhida pelo regulador. E compreende-se. Nas nove páginas da sua argumentação, a que o PÁGINA UM teve acesso – e que divulga na íntegra por o considerar um testemunho relevante sobre a imprensa nacional –, a directora daquele periódico tece considerações surpreendentes.

O uso do termo “negacionista” foi mediatizado como sinónimo de anti-ciência e de ideologias extremistas.

Rosália Amorim começa logo por evocar, através do seu advogado, o adágio popular: “Quem não quer ser lobo, não lhe vista a pele”, aludindo assim ao suposto direito de se chamar “negacionista” a Fernando Nobre e a quem estivesse presente na manifestação em frente à Assembleia da República.

Alegando que o termo “negacionista” sempre foi usado por vários órgãos de comunicação social e opinion-makers – remetendo mesmo para artigos de Pacheco Pereira e do ex-secretário de Estado Manuel Delgado, demitido por causa do escândalo da associação Raríssimas em 2017 –, Rosália Amorim defendeu que “é, cremos, medianamente evidente, [que] escrever sobre o tema [pandemia e vacinação], censurando a palavra em causa [negacionismo], será pretender ‘enfiar a cabeça na areia’ e fazer o serviço que tais movimentos pretendem”.

Apesar de rejeitar a existência de “qualquer incentivo ao ódio e à discriminação contra pessoas que não se querem vacinar”, e também considerar que as queixas junto da ERC por jornalistas usarem indistintamente a palavra “negacionista” configuram “uma pressão ao jornalismo”, a directora do Diário de Notícias acaba por se insurgir sobretudo com as posições de Fernando Nobre.

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Não apenas foram catalogados de “negacionistas” quem negava claramente a existência do vírus SARS-CoV-2; o termo passou a ser aplicado para qualquer pessoa que fugisse da “narrativa oficial”.

Na carta à ERC, Rosália Amorim assegura que “os portugueses [presume-se que todos] esperam que cidadãos com as especiais obrigações de Fernando Nobre (como responsável médico e anterior candidato à Presidência da República) dêem o exemplo na vacinação e, se o não fazem, além de poderem pôr em causa a segurança de outros cidadãos e de instigarem outros a fazê-lo, causam especial motivo de indignação”.

E acrescenta que “foi este o objecto noticioso, cumprindo o DN [Diário de Notícias]– a quem compete sempre noticiar (e não esconder) –, o dever de informação aos leitores acerca do que se passa no seu país, observando os princípios fundamentais que regem a liberdade de imprensa”.

Contactado pelo PÁGINA UM, Fernando Nobre considera serem “estapafúrdias” as declarações da directora do Diário de Notícias. “Foi precisamente por eu ter a responsabilidade que tenho perante o povo português que fiz questão de deixar a minha posição como testemunho futuro”, diz o presidente da AMI.

“Não podia ficar calado”, acrescenta o médico, para se insurgir sobre a questão do exemplo que deveria supostamente dar: “Só faltava essa”. E afirma que voltaria a defender o que afirmou diante da Assembleia da República há um ano.

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Destacando os efeitos secundários que, na sua opinião, estas vacinas têm, Fernando Nobre garante que nunca se vacinará para dar o exemplo, porque “seria violar a minha consciência enquanto pessoa, enquanto médico, cientista e também político, que fui.”

Sobre o andamento do processo disciplinar instaurado em Setembro de 2021 pela Ordem do urologista Miguel Guimarães, o fundador da AMI adianta nada saber. “Há um ano que aguardo para ser ouvido na Ordem dos Médicos; há um ano que as minhas testemunhas, incluindo figuras de relevo, aguardam para serem ouvidas na Ordem dos Médicos”, salienta.

Fernando Nobre acusa ainda a comunicação social, em geral, de ter sido parcial ao longo da pandemia. “Nunca deu direito ao contraditório. Houve dois posicionamentos e devia ter havido contraditório para o esclarecimento da população”, argumenta. E conclui: “O unanimismo [que se criou] só existe em regimes ditatoriais, não é compatível com a argumentação científica”.

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