Uma empresa da freguesia de Milheirós, no concelho da Maia, com uma experiência de 40 anos a reparar automóveis, passou em três tempos a entregar muitos milhões de luvas de nitrilo a hospitais, facturando, em ajustes directos, mais de 1,5 milhões de euros. Tudo parece legal, e sempre justificável com a urgência da pandemia, mas já se mostra anormal a facilidade com que as administrações hospitalares fizeram ajustes directos sem contrato escrito de produtos que, sem justificação económica plausível, quadruplicaram de preço. Esta é a segunda parte da investigação do PÁGINA UM sobre o LUVASGATE.
Saberá bem a uma empresa com quatro décadas de existência ver as portas do Estado abrirem-se. Em 2 de Março de 2020, a Escape Forte Lda. – com oficinas numa freguesia da Maia e outra de Vila do Conde – teve o seu primeiro contrato público: a reparação do motor de uma ambulância do Instituto Nacional de Emergência Médica. Custo do serviço: 7.261 euros, acrescidos de 76 cêntimos. Ajuste directo, como se compreenderá numa urgência.
A partir dessa “encomenda”, a vida começou a correr melhor à gerência da Escape Forte. Não que passassem a vender a instituições públicas mais serviços de reparação, descarbonização e reconstrução de filtros de partículas ou de substituição de catalisadores – o seu forte, ou, se se quiser, o seu core business. Nada disso. A visita por razões mecânicas do INEM foi pontual. Isolada.
Mas há mistérios na vida das empresas, que não são fáceis de prever, mesmo em Março de 2020, quando já se estava a anunciar a pandemia por terras portuguesas. Não se sabendo se houve qualquer associação, porque ninguém a admite, certo é que quatro meses após este conserto da ambulância do INEM, a Escape Forte estava a ter a sua segunda experiência com entidades da área da saúde: entrava portões dentro no Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, para cumprir um contrato de venda de luvas de nitrilo.
Era o dia 2 de Julho e o contrato com o Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga (CHEDV) – que gere os hospitais de Santa Maria da Feira, Oliveira de Azeméis e São João da Madeira – não era pequeno: quase 850 mil luvas de nitrilo no valor de 80.820 euros. Preço por luva: 9,58 cêntimos, mais de quatro vezes o valor unitário no início da pandemia. Ajuste directo sem necessidade de redução a escrito, por alegados “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”.
Esse contrato foi, curiosamente, aprovado pela administração do CHEDV no mesmo dia em que a Escape Forte fez a alteração do seu objecto social, passando a partir daí a ser também uma empresa de “comércio por grosso de produtos farmacêuticos, comércio por grosso de produtos de proteção individual e material hospitalar”, e ainda de “produção e fabrico de produtos de proteção individual e material hospitalar (EPI)”.
Nada mau, portanto: no primeiro dia em que passou a poder vender luvas de nitrilo, conseguiu mesmo vender luvas de nitrilo.
E não parou por aí.
Pouco mais de um mês depois, em 6 de Agosto, novo contrato. Ajuste directo, claro. Para a mesma entidade pública. Mais substancial: 108.658 euros. O preço reduziu um pouquinho: 8,98 cêntimos por unidade, pelo que, nos meses seguintes, a Escape Forte foi ao Hospital de São Sebastião fazer entregas de 1.210.000 luvas de nitrilo.
Ganhou-lhe o gosto, o hospital de Santa Maria da Feira, porque ainda nesse ano, em 3 de Novembro, saiu um terceiro contrato com a Escape Forte, que se comprometeu, a troco de 142.400 euros, a entregar esterilizadas mais cerca de 1,5 milhões luvas de nitrilo, a um preço unitário de 9,58 cêntimos. Também novamente por ajuste directo e sem contrato escrito.
Como não há três sem quatro, em Janeiro de 2021, lá veio a administração do CHEDV concordar com mais um contrato por ajuste directo com a Escape Forte. E bem forte, porque foi por um montante superior a metade da facturação que esta empresa tinha tido em 2019 a prestar serviços com filtros de partículas e catalisadores.
Neste quarto contrato, o Hospital de São Sebastião comprou à empresa da Maia, desta vez, luvas num montante total de 557.600 euros, o que significa que foram entregues 5,44 milhões de unidades. O preço de cada luva subiu para os 10,25 cêntimos, mais de cinco vezes superior ao valor imediatamente anterior à pandemia.
No total, a Escape Forte conseguiu em sete meses, sempre por ajuste directo com a administração do Hospital de São Sebastião, contratos no valor de quase 890 mil euros para a entrega de nove milhões de luvas de nitrilo. Esta unidade hospitalar tem cerca de mil funcionários, incluindo serviços técnicos e administrativos. Em Setembro passado, os três hospitais do CHEDV contava com 2.415 funcionários, dos quais 505 médicos (incluindo internos) e 779 enfermeiros.
Mas não foi apenas o CHEDV que se abriu ao Escape Forte. O Hospital Distrital da Figueira da Foz pagou 95.950 euros por um número indeterminado de luvas, em contrato por ajuste directo sem redução a escrito feito em Outubro de 2020.
Em 20 de Janeiro do ano passado, o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) decidiu que a empresa da Maia seria a mais ajustada para ser a receptora de 522.650 euros de dinheiro público em troca de um número indeterminado de luvas, cujo número se desconhecer por também não haver contrato reduzido a escrito nem a administração daquela unidade do SNS os ter desejado revelar.
Certo é que, apesar da concorrência num mercado com empresas detentora de larga experiência no sector, o sucesso repentino da Escape Forte na venda de luvas de nitrilo levou o seu gerente, Rui Lopes a criar ainda em 2020 outras empresa, a Be Epic Pharma, com um capital social de 5.000 euros, alargando a actividade para outros materiais e produtos descartáveis na área da saúde.
Esta nova empresa, sem loja física e sem sequer indicar preço no respectivo site, foi constituída em 19 de Agosto daquele ano, e até final de Dezembro encaixou seis contratos com entidades públicas: um com a Administração Regional de Saúde do Algarve (50.600 euros), outro com o município de Albergaria-a-Velha (12.140 euros) e quatro com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (no valor global de 149.900 euros).
No ano seguinte, em 2021, a Be Epic Pharma apenas fez três contratos públicos. Um com o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (157.000 euros), outro com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (33.800 euros) e um terceiro com o Hospital da Horta (21.726 euros).
Este ano, a empresa associada à Escape Forte conta já com cinco contratos, sendo dois com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (55.000 euros, no total), um com o Serviço Regional de Protecção Civil da Madeira (46.165 euros), um com o Hospital de Ponta Delgada (13.200 euros) e um com o Centro Hospitalar Barreiro-Montijo (1.350 euros). Apenas estes dois últimos contratos foram firmados por concurso público; todos os outros foram por ajuste directo ou mera consulta prévia.
Para explicar como conseguiu estabelecer-se tão rapidamente neste mercado, a Escape Forte mostrou-se parca em explicações, através de Rui Pinto, que se assumiu como representante de Rui Lopes, apresentado como “Administrador do Grupo Escape Forte”. A empresa Escape Forte, diga-se, é uma simples sociedade por quota unipessoal, com um capital social de 5.000 euros. Tem assim gerentes, pois só há administradores em sociedades anónimas. Além disso, não existe uma holding nem grupo económico.
Independentemente desta frivolidade, sobre as questões colocadas pelo PÁGINA UM sobre como se iniciaram e frutificaram os negócios das luvas de nitrilo, que contactos tinham ou estabeleceram com os hospitais (sobretudo o CHEDV), como adquiriam os produtos que vendiam e os preços praticados, o representante da empresa diz que, além dos dados constantes no Portal Base, “toda e qualquer informação está protegida pelo sigilo contratual previsto no Código dos Contratos Públicos, entre a entidade adjudicante e o adjudicatário, estando a Escape Forte e os seus profissionais, vinculados ao mesmo.”
Em todo o caso, Rui Pinto adianta que as mercadorias vendidas pela Escape Forte provieram de “algumas operações de importação e fornecimento de material de combate à pandemia, quer a entidades públicas, quer privadas”. E diz ainda que a empresa cumpriu a legislação em vigor, designadamente o “Despacho 4699/2020 de 18 de abril, que limitava as margens de lucro nos produtos necessários ao combate à pandemia”, além de ter pautado a sua conduta pelo “bom senso comercial e pessoal.”
Sendo certo que a Escape Forte não teve um desempenho que se aproxime da Raclac – também alvo da investigação do PÁGINA UM –, uma vez que não é produtora de luvas de nitrilo (as margens operacionais são assim mais baixas), não se pode dizer que a empresa de filtros de partículas da Maia se tenha saído mal nos últimos dois anos. Face a 2019 – antes da pandemia –, os nove empregados (com um salário de mil euros) conseguiram uma facturação de 901 mil euros e um lucro de 31 mil euros.
Com a pandemia a “desviar” a actividade da empresa para a venda de luvas de nitrilo, a facturação da Escape Forte em 2020 ultrapassou os 1,7 milhões de euros e o lucro subiu para os 82 mil euros. E isto com apenas dois empregados, deduzindo-se assim que a empresa tenha suspendido grande parte da sua actividade normal nas oficinas por via dos lockdowns.
No ano passado, o volume de negócios ainda aumentou mais, para cima dos 2,25 milhões de euros, com os lucros a aproximarem-se dos 147 mil euros. O número de empregados aumentou para os 13, significando assim que a Escape Forte retomou também a sua actividade original, mantendo forte a venda de luvas de nitrilo.
A estes resultados da Escape Forte em 2021 devem acrescentar-se os da Be Epic Pharma. Nesse ano, a novel empresa registou uma facturação de cerca de 1,76 milhões de euros e um lucro de 82 mil euros, fruto do trabalho de apenas duas pessoas.
Mas, enfim, porque motivo foi a Escape Forte, que nunca tivera qualquer experiência com luvas de nitrilo ou equipamentos de protecção individual, escolhida por hospitais e outros entes públicos?
O PÁGINA UM perguntou a três dos hospitais que lhes fizeram compras: Hospital da Figueira da Foz, Centro Hospitalar do Algarve e o CHEDV, que foi o melhor cliente da Escape Forte.
Ilda Geraldo, do gabinete de relações públicas do CHEDV, diz que “tivemos conhecimento da disponibilidade de oferta destes produtos por parte da empresa [Escape Forte] através de comunicações que chegaram ao conhecimento do Serviço de Compras da instituição.
Aquela responsável alega que, “quando se iniciou a relação” com a Escape Forte, “o mercado era altamente deficitário em termos de resposta face às necessidades de aquisição, acrescentando que “a credibilidade da empresa foi aferida através da validação das luvas a fornecer pela Comissão Técnica da instituição, constituída por profissionais de saúde habilitados para o efeito.”
E não se diga que o CHEDV esteja arrependido. “Numa altura em que era frequente o não cumprimento dos prazos de entrega de material, esta foi uma das empresas mais cumpridoras, deslocando-se ao hospital sempre que necessário”, refere Ilda Geraldo, informando que “não foi registada qualquer queixa da qualidade das luvas por parte dos serviços utilizadores.” Caso a Escape Forte “decida concorrer e cumprir o estabelecido no Código dos Contratos Públicos para o tipo de procedimentos a desenvolver, nomeadamente, concursos públicos”, o CHEDV “poderá vir a adquirir[-lhe] mais luvas ou outros materiais”, adianta.
Mais a sul, o gabinete de comunicação do CHUA disse apenas ao PÁGINA UM que as aquisições de louvas de nitrilo à Escape Forte foram feitas “como último recurso, porquanto, devido à pandemia”, uma outra empresa que tinha ganhado uma adjudicação “no âmbito de um concurso realizado ao abrigo do acordo quadro, não conseguiu garantir o fornecimento”.
E acrescenta ainda que “na falta de fornecimento por parte dessa empresa, não se encontrou mais nenhuma outra no mercado [a não ser a Escape Forte] que comercializasse este material e que garantisse as entregas atempadamente.”
Tudo, portanto, perfeito… E normal, cada vez mais normal, em Portugal.
Leia a primeira parte desta investigação PÁGINA UM: Raclac: com luvas (de nitrilo) lucrou em 2020 tanto como em 42 anos